domingo, 23 de outubro de 2011

Dúplice (GO)


Foto: Angela Alegria

Barato

A pior coisa de um relacionamento é quando ele fica estável demais. Outro dia encontrei um amigo que queria viajar porque “precisava dar um up na sua relação”. Quando a conquista deixa de ser um desafio, é preciso acrescentar novos assuntos para haver desafio. E só queremos conquistar aquilo que necessitamos, nos interessamos por e, infelizmente, não temos. Não temos ainda.

Ainda é uma palavra que expressa tempo. Um tempo intervalo entre o não ter e o ter, ou o ter e o não ter. O valor de tudo no mundo humano é dado a partir da relação do ter, da posse, com a presença da necessidade e do interesse. (Querer algo que de que não necessitamos ou pela qual não nos interessamos é uma patologia, sobretudo, lingüística) O valor das coisas, assim,não está no ter, nem no não ter. Mas ter ou não ter as coisas ainda.

Sendo mais claro: “Temos petróleo” dá ao petróleo um valor menor do que o dado a ele na frase “Temos petróleo ainda.” A possibilidade de acabar o petróleo, que nos interessa e dele necessitamos, dá a ele muito valor. Uma relação, seja ela de que tipo for, muda de valor (ou pra melhor, ou pra pior) quando está na iminência de acabar. Fato: ao infindável damos bem menos importância, mesmo que haja necessidade ou interesse.

“Dúplice” foi umas das peças mais tediosas entre as dezesseis a que assisti em quatorze dias de Porto Alegre em Cena. Os dois bailarinos são ótimos, corpos rítmicos, luz eficiente, propostas ricas em conteúdo e temas para reflexão. Há movimentos que chamam a atenção do espectador, despertam a vontade de fruir. Mas parece não ter fim. Do décimo quinto minuto em diante já percebemos que tudo está valendo. E como tudo é algo que não tem fim, só nos resta olhar o programa ou consultar o amigo pra lembrar qual a duração do espetáculo indicada na sinopse do Festival. E esperar. Esperar pelo fim.

Os Rodrigos de “Dúplice” não trazem de Goiás um espetáculo pós-dramático como ouvi dizer. Trazem um espetáculo chato mesmo. O pós-dramático de Lehmann não apaga o drama. Subverte-o. Esse negócio de dizer que o que não se entende é pós-dramático é uma ofensa teórica. O que faz das propostas inteligentes desses bailarinos uma chatice é a ausência total de articulação.

Articular e tornar linear são coisas diferentes. O segundo diz respeito a estabelecer uma ordem. O primeiro a anunciar a existência de uma hierarquia. Pós e dramático divergem não pela linearidade, mas pela hierarquia. No primeiro, é o expectador quem define o que lhe é mais significativo. No segundo, é a produção. Em “Dúplice”, ficamos com a sensação de que alguns exercícios foram escolhidos e postos sobremaneira um lado ao lado do outro e isso se transformou num espetáculo. Agradeço a vinda, mas valorizo demais a existência de uma concepção que me garanta não estar assistindo a qualquer coisa. Qualquer coisa que não me interessa e dela não necessito.

“Dúplice” dura cinqüenta e cinco minutos. Cinquenta e cinco caros minutos. E minutos nada mais são do que a articulação de segundos. Caros segundos.

*

Ficha técnica
Autores-intérpretes: Rodrigo Cunha e Rodrigo Cruz
Música: Jelem - Loyko
Iluminação: Rodrigo Assis
Fotos: Layza Vasconcelos
Colaboradores: Valéria Braga, Erica Bearls, Souhail Assal

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!