segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Happy Days (Itália)

Foto: Luciano Romano

Winnie e seu buraco
Para mim, há duas questões fundamentais em Happy days: Winnie e o buraco. E quando esses dois pontos são colocados acima de Beckett, de Wilson e de Asti, o escritor irlandês, o diretor norte-americano e a atriz italiana, tudo fica melhor.

Tratemos do buraco:

É imprescindível que Winnie esteja enterrada num buraco. Ele é a metáfora dos relacionamentos, do emprego, da condição social, da doença, da virtualidade e de qualquer situação que aprisione o homem. Winnie não pode sair desse buraco que, cada vez mais, a prende até escondê-la por completo. Nisso consiste a tragédia beckettiana: há algo exterior aos personagens e à situação que determina o destino da história. Nada é possível fazer e lutar contra isso consiste no mal de quem o ousa.

O buraco é uma pequena elevação de terra, o que possibilita ao espectador pensar que, em volta, há mais buracos e, consequentemente, mais pessoas enterradas. É tudo muito simples, porque deve ser tudo muito cotidiano. Todos estamos metidos em buracos e disso não pode ser feito um drama. Beckett não é nem dramático, nem pós-dramático: é adramático, porque, em seus textos, não há nem drama convergente, nem divergente. Não há princípio, nem fim, nem começo, nem causa, nem efeito.

Willie, o marido de Winnie, sai do buraco, mas isso não se trata de um clímax no texto de 1961. Beckett apenas usa de seu sadismo para destruir Winnie que, gostaria de sair e sai através de sua imaginação. Os olhos de Willie caem porque não conseguem fitar a esposa. Terá ele mesmo saído? Será ele o próprio Willie ou já outro ser? Por que eles nunca se olham? Não há, para Winnie, a possibilidade de saída de sua condição e ela precisa se conformar com isso. E essa conformação fica, com certeza, muito difícil diante da saída de Willie. O destino não é nem mal, nem bom. Ele é.

Bob Wilson não prendeu sua Winnie (Asti) num buraco. Em primeiro lugar, o cenário não é uma elevação casual, mas um pequeno vulcão. Em segundo lugar, Adriana Asti se movimenta bastante em sua cadeira e a possibilidade da atriz pôr-se em pé é sempre presente. É sabido que Wilson, em sua técnica bem marcada, leva os sentidos de seus trabalhos para lugares divergentes, o que, muitas vezes, enriquece a produção. Aqui, a divergência confunde, atrapalha, empobrece. As cores fortes, a iluminação excessiva cansa o olhar e desvia a atenção para o aspecto plástico de algo que não carece de plasticidade, porque vive de palpabilidade. Duas peças em uma só: uma Wilson e uma de Beckett. E eu prefiro ficar com a segunda nesse caso, apesar de achar bonito o raio em neon e o cabelo amarelo, ambas grafias sem nenhuma importância para a narrativa.

Tratemos de Winnie:

Há uma frase de Alfred Alvarez, um ensaísta inglês bastante conhecido por seus textos sobre o suicídio, e que também escreveu um livro cujo título é Samuel Beckett (lançado em 1973), que torna presente qualquer coisa que se diga sobre Winnie:

“Benditos sejam os otimistas, porque eles serão enterrados vivos.”

Winnie dá boas vindas ao dia todo o dia. Reconstrói o seu mundo com suas palavras, se diverte com tarefas simples, engrandece a pequenice do seu contidiano. Em nenhum momento, ela reage contra a sua condição de forma direta, mas, indiretamente, não se deixa abater por ela. Winnie é a heroína contraépica, a vilã de nossas histórias pessoais. Quem almeja por um levante, por um mudar de posição, por uma ação, odeia Winnie. Winnie que canta “A viúva alegre”, uma opereta do fim do século XIX, com a letra de Beckett, sorri sempre.

Tua mão está fria
E tem um tremor
Ela não tremia
Sem o teu amor.
Mas se me desdouro
Em me declarar,
Tendo tu tanto ouro
Não devo te amar.

Winnie de Asti: as palavras têm cores e têm ritmos, têm ondas e têm marés. Excelente a interpretação da personagem que cativa o público sorridente com suas piadas, suas memórias, sua doçura. Nisso, Asti concretiza o que dissera o diretor sobre a peça:

“Eu gosto de “Happy days”, porque é, ao mesmo tempo, muito simples e extremamente complexo. Algo que diz de imediato o que é a situação. Se você compra um ingresso para uma peça chamada “Dias felizes”, e você entra no teatro e vê uma mulher enterrada até o pescoço, você pode esquecer as especificidades e começar a experimentar algo que o prende.”

E esse algo que nos prende, por mais presos que possamos estar, não precisa tornar nossos dias tristes. E, se assim ficamos, é porque não temos a mesma força de Winnie, aquela que nasce da terra e pode dar frutos, apesar das amarras de Wilson, nessa produção, serem tão frágeis.

*
Ficha Técnica:

Texto: Samuel Beckett
Direção, cenário e concepção de luz: Robert Wilson
Assistente: Daniel Schulze
Assistente de Direção: Christoph Schletz
Dramaturgia: Ellen Hammer

Elenco:
Adriana Asti (Winnie)
Yann de Graval (Willie)

Diretor Técnico: Amerigo Varesi
Desenho de Luz: A.J. Weissbard
Supervisão: Marcello Lumac
Figurinos e Maquiagem: Jacques Reynaud

Desenho de Som: Emre Sevindi
Técnico de Som: Paolo Cillerai
Eletricista: Fabio Bozzetta
Diretora de Palco: Sue Jane Stoker/Sara Thaiz Bozano
Técnico de Palco: Antonio Verde
Cabelo e Maquiagem: Jacques Reynaud/Mariarita Parisi
Administração da Companhia: Gaia Scaglione
Direção de Produção: Kristine Grazioli
Produção: Change Performing Arts e CRT (Milão/Itália) Elisabetta di Mambro e Franco Laera

* Texto escrito em setembro de 2010 por ocasião do 17º Porto Alegre em Cena.

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