domingo, 23 de outubro de 2011

Kiss Bill (Canadá)


Foto: Paul Antoine Taillefer

Emersão e submersão

Há um sistema chamado Kill/Kiss Bill que se atualiza num/dois filmes de Quentin Tarantino e num espetáculo de teatro/dança dirigido por Paula de Vasconcelos / Yan Lee Chan.

Formalizar a construção de um todo significativo existente anterior ao filme e ao espetáculo facilita a análise porque explica as pontes que se faz entre um e outro. Quem viu o filme lembrou dele ao assistir à peça até porque é como uma releitura que ela é vendida no programa do festival. Quem for ver o filme lembrará da peça a partir de agora. Embora filme e peça existam em separado, Kill/Kiss Bill é visto nas duas atualizações, estando aos nossos sentidos disponível todo o universo simbólico composto pela junção de um, de outros e de terceiros que ainda, talvez, não conhecemos. Em miúdos, falar de um é falar de outro.

· Ausência de humanidade que se reduz à palavra sarcasmo;
· Ritmo acelerado nos cortes, nos diálogos, nos movimentos dentro e fora dos quadros/cenas;
· Redundância, recorrência, reforço;
· Repaginação do faroeste e dos filmes orientais de ninja, kung fu, anime;

Destaquei acima alguns dos sistemas que destaco na formalização Kill/Kiss Bill lembrando que existem sistemas que só emergem no filme e não na peça e vice-versa. Os que trago são aqueles que encontro na superfície dos dois. E gosto!

Os gestos secos, a reprodução da frieza do deserto em oposição ao sol escaldante que faz sair de buracos fechados animais discretos e perigosos. A coreografia de Kiss Bill preenche o palco em busca desse sarcasmo absurdo que só encontra lugar onde a humanidade já foi embora. Os personagens da peça só se tocam quando se ferem, embora firam sem se tocar. O beijo é mortal, o abraço é cínico. As aranhas (?) – um dos melhores momentos – são egoístas, rápidas, discretas: comem quietas.

A personagem de Sylvie Moreau fala sem parar, sem parar, sem parar. A coreografia de abertura é a troca contínua de gestos nervosos de homens que se impõem para mostrar o que já vemos. As cenas são rápidas como os cortes o são em Tarantino.

A trilha se repete. Se renova. Renova a cena. A ação retorna sempre: uma lista de mortes se sucede, uma lista de movimentos se repete. Um ciclo se fecha e outro reinicia.



A estética oriental com ninjas aparecendo do céu e do inferno, bem como o extremo oposto da dureza do cowboy e sua pistola e chapéu se encontram na vitória de um contra duzentos mil. Tarantino/Vasconcelos pincelam a atualização do sistema trazendo dois gêneros para falar mal deles. Há um motivo para trazê-los e está exposto: Kill/Kiss Bill veio construir em cima da desconstrução. A ausência sobre a presença. O liminar do ciclo fim e do novo.

Falando em novo, de Bang Bang pra diante só encontramos Vasconcelos e não mais Tarantino. A peça pára de atualizar o sistema e vive só do estabelecimento de uma nova organização. E afunda. O ritmo cai, a humanidade retorna, os ninjas e cowboys vão embora. O personagem de Alexandre Goyette se mostra apaixonado pela de Natalie Zoey Gauld e o que nutria a configuração de sentido já não existe. Tentamos e tentamos reconstruí-lo, mas a direção propõe um conceito camaleônico resistente aos nossos antivirais. Não apreendemos o sentido e um tédio imenso emerge, fazendo submergir o cenário do jardim, as coreografias finais, a trilha.

Atualizar um sistema significa re-hierarquizar sentidos a partir do dispositivo. Tarantino fez isso usando a linguagem cinematográfica. Vasconcelos usando a dança. Em cada ato, alguns significados emergem outros submergem. Kiss Bill, lá pelas tantas, dorme e bate num iceberg. O transatlântico canadense, lindo e badalado, afunda.

E lembramos, com saudade, do bom e velho assobio da enfermeira Ellen Driver (Daryl Hannah).

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

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