segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A lua vem da Ásia (RJ)

Foto: divulgação

A lua vem da Ásia

Baseado no romance surrealista A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho (1916-1998), publicado pela primeira vez em 1956, e já traduzido em diversas línguas, o espetáculo dirigido por Moacir Chaves (também diretor de Labirinto) e interpretado por Chico Díaz é um dos melhores espetáculos do 18º Porto Alegre em Cena. Em uma hora e meia de um discurso pra lá de verborrágico o ator, num monólogo em noventa e cinco minutos, estabelece várias situações sem jamais perder o foco sobre a própria situação, ou melhor, sobre o lugar em que se encontra seu personagem: preso em si mesmo.

O espetáculo se divide em dois momentos. No primeiro, o personagem, cujo último nome dado a ele por ele mesmo é Astrogildo, está num quarto onde tudo parece menor que ele. Um piano, uma cama, uma prateleira: os móveis parecem servir a um anão. Não há paredes, mas o público percebe uma diferenciação entre o piso desse quarto e o além. A iluminação de Renato Machado, bastante significativa, marca não só a divisão entre esses dois espaços, como define um terceiro. Há um corredor onde o prisioneiro pode estar em alguns momentos do seu dia (para pegar sol). Em várias ocasiões, os movimentos de luz, através do jogo de cores, vai auxiliando o ator na narrativa e o espectador na interpretação dela de forma esteticamente valorosa. Em um determinado momento, um homem entra em cena e alcança para o Díaz um prato de sopa. O signo será repetido mais adiante e ganhará, assim, grande importância. A situação inicial e os pontos fundamentais a partir dos quais a história ganhará força estão dados nesse primeiro momento. Há ainda que se destacar a divisão da peça em capítulos: desde o início, a linguagem surreal, gênero no qual o texto se insere, marca a encenação uma vez que, por exemplo, as partes surgem numa ordem sem lógica, ou numa organização paralela. Capítulo um, capítulo quartorze, capítulo CLXXXIII, capítulo (sem número) e assim por diante, são os números que, projetados, marcam a passagem das cenas ou o seu perpetuar.

Na segunda parte do espetáculo, aparentemente, a história já não é contada no mesmo lugar em que o fora na abertura. O espaço é outro, um não-espaço talvez. A falta de continuidade dos fatos narrados prossegue numa verborragia ilimitada cheia de imagens, rica exploração da sonoridade (mérito do ator que dá esse tom às palavras do autor) e forte apelo à atenção da audiência pelas bem executadas pausas. É como se fosse incrível não compreender a lógica que une os fatos, esses não-ligados ou continuados em outra esfera de compreensão que não a natural. É quando Díaz, através de seu personagem já despido de qualquer segredo, parece estar intimamente relacionado ao público que o assiste. Apresentada no Theatro São Pedro, espaço formal e privilegiado das artes cênicas em solo gaúcho, a peça, nesse ponto, ganha ares intimistas que quebram o distanciamento existente entre o ator e quem lhe assiste. O teatro, nesse contexto especial, celebra o encontro, o convívio entre quem conta histórias e quem as ouve com carinho. O segundo se relaciona com o primeiro a partir da entrada do mesmo homem com um novo prato de sopa. Sem qualquer outro gesto, ao público é permitido pensar que o lugar de narração continua sendo o mesmo e que o seu desaparecimento é, na verdade, um ponto de vista de quem narra. Nessa direção, o surrelismo conversa com o impressionismo, gênero estético anterior na cronologia das obras de arte, em um excepcional modo de conduzir a organização dos signos imagéticos.

A lua vem da Ásia: projeções, figurinos, adereços e cenários, iluminação e trilha sonora são elementos que, magnificamente bem arranjados, constroem um belíssimo objeto artístico que celebra a arte, o artista e os simpatizantes. O texto, que se fosse um pouco mais curto, esbarraria menos no perigoso tédio, também é um elemento utilizado a contento, ainda que, nessa montagem, adquira tão nobre responsabilidade. Em todas as possibilidades de construção do sentido, o espetáculo ganha, mas quem recebe o prêmio é quem lho assistiu.

* Texto escrito em setembro de 2011 por ocasião do 18º Porto Alegre em Cena.

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