segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Médée (França/Burkina Faso)

Foto: divulgação

Médée

O espetáculo Médée (Medeia), participante do 18º Porto Alegre em Cena, não é a atualização para teatro do clássico de Eurípedes, mas a versão teatral do texto de Max Rouquette (1908-2005), autor expoente da língua occitana, idioma falado no sul da França. Escrito em 2003, o texto substituiu o projeto inicial do diretor Jean-Louis Martinelli, diretor do Théâtre Nanterre-Amandiers, desde 2002, que era produzir um texto de Heiner Müller, com o elenco Burkina Faso, país do centro-oeste africano. A primeira montagem, de 2003, foi sucedida por mais duas 2008 e 2009. Nela, o espectador se encontra com uma Medeia vista a partir de sua relação com as forças superiores (versão que também pode ser encontrada na Medeia de Pasolini, filme de 1969, cuja protagonista é Maria Callas), sem dúvida, um ponto de vista diferente e interessante de trazer a personagem clássica para os dias de hoje.

O palco é a frente da casa de Medeia. A peça começa quando já faz três dias que Jasão está sumido e ninguém sabe de seu paradeiro. Há uma criada um criado e os dois filhos do casal, esses últimos interpretados, em Porto Alegre, por dois atores mirins alunos da atriz Gabriela Greco. Há, também, o célebre coro de mulheres, que, nessa versão, canta salmos em uma língua africana, cujas legendas não apareceram na sessão a que eu assisti (e não fizeram falta, impressionando positivamente pela sua peculiar sonoridade). Em todas as cenas, é possível encontrar muitas marcas que embasam a tese exposta no parágrafo de abertura: a) a fala inicial, em que a Ama se reporta a Deus; b) os títulos do coro: Salmo do Perdão, Salmo das Crianças, Salmo das Mulheres, Salmo do Pressentimento...; c) a postura curvada dos atores que interpretam servos versus a coluna ereta dos atores que interpretam nobres, além das expressões faciais neutras de todos, o que exibe a submissão ao destino; d) o tom ritualístico com que o Rei é recebido (a acolhida não é espontânea, mas cultural, isto é, o Rei não é recebido daquele jeito porque esse é sentimento, mas porque aquele é o costume); e) o jogo cênico estabelecido na cena entre o Creonte e Medeia, ambos de linhagem real (rei = ungido pelo sagrado); f) a recuperação do passado de “feiticeira” de Medeia; g) o final, em que a protagonista é vista voando pelo espaço; etc. Em várias passagens, a concepção se reafirma, converge, se estrutura enquanto um objeto único, coeso e coerente consigo próprio, tornando a produção bastante valorosa. Um autor, diretor ou/e ator pode ter o ponto de vista que quiser sobre um determinado texto na hora de concretizá-lo cenicamente, mas o ato da encenação precisa ser fundamentado em bases sólidas que, no todo de suas potencialidades, seja o resultado de um projeto pensado esteticamente em cada uma de suas partes. EmMédée, é exatamente isso o que se vê para o deleite da plateia da capital gaúcha.

Odile Sankara, que interpreta Medeia, está excelente em todos os pontos elementares de sua construção. Junto dela, o elenco, de um modo geral, ajuda a construir grandes momentos. Para destacar um instante que poderia parecer um detalhe dispensável, cito a expressão da líder do grupo de mulheres (Corifeu): na cena em que as mulheres tentam demover Medeia do assassinato dos próprios filhos, o rosto da atriz está impassível, forte, concentrado, potente. Tem grande mérito a produção em que, da alta protagonista ao mais coadjuvante dos personagens, todos exibem o resultado de um trabalho de primeiríssima qualidade como é o caso aqui.

Se figurinos, cenário e trilha sonora estão impecáveis, a iluminação apresenta-se como um recurso bastante mal utilizado. A produção está quase durante todo o tempo da encenação iluminada com luz geral, sem focos que favoreçam os diferentes momentos/lugares de sua narração. Luzes atrás do cenário vazam pessimamente para a plateia e, o pior de tudo, um objeto espelhado reflete a forte luz dos refletores nos olhos da audiência que é perturbada por isso.

Termina o Festival com a graça de um elenco de artistas que recebe os aplausos como se celebrasse a sua vida, a sua vinda, o seu talento expresso na peça a que acabou-se de assistir. Um brinde a todos nós.

* Texto escrito em setembro de 2011 por ocasião do 18º Porto Alegre em Cena.

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