domingo, 23 de outubro de 2011

Medida por medida (RJ)


Foto: divulgação

Quando a estética chama mais a atenção num texto dramático


A versão de Gilberto Gawronski para “Medida por medida”, de William Shakespeare, apresenta ao espectador uma estética fetichista sado-masoquista, gay, “dress code leather”.

As músicas foram escolhidas dentro dessa concepção: Madonna reina. Os figurinos são todos na mesma linha: couro, borracha, correntes, botas. Duas personagens femininas são vestidas como drag queens. Os cabelos são arrepiados, penteados e coloridos, assim como as maquiagens, coerentes com a proposta. O cenário é todo baseado em preto com luzes coloridas, linhas desenhadas no chão, ferro bruto, austero e picante. As interpretações foram, com algumas exceções, construídas dentro da ironia gay e da intensidade sado-masoquista. De um modo geral, assim, “Medida por medida”, em termos de estética, é um espetáculo muito bem amarrado e bastante coerente. Forma um todo coeso em que as poucas exceções não chegam a atrapalhar.

Daí que fiquei pensando onde estaria, no texto, a inspiração para isso. Texto, mesmo que o encaremos como apenas um dos elementos da encenação, havemos de concordar que é, no caso de Shakespeare, um dos aspectos mais importantes. O enredo shakespeareano dificilmente não será o carro chefe de um espetáculo teatral desse importante autor inglês.

“Medida por medida”, escrito em 1604, e apresentado na corte de Jaime I, nomeia a história do Duque Vicêncio, chefe de Viena, que resolve punir seu substituto com a mesma lei que ele, Ângelo, usou para punir um dos seus cidadãos. Ângelo usou de uma medida para apontar no outro uma falha, a mesma medida lhe será apontada por Vicêncio. A chave é simples: não façamos para o outro aquilo que não gostaríamos que fizessem para a gente. Ou: Não atiremos pedra no telhado alheio se o nosso é de vidro. Ou ainda: Jogar cocô no ventilador não é uma boa idéia...

Gawronski, pode-se supor, não tirou da chave narrativa a estética, mas de um detalhe: o motivo pelo qual Cláudio é punido por Ângelo. Havia na cidade uma antiga lei que o substituto do duque recupera. Diz respeito à fornicação. Cláudio engravidou Julieta e não se casou com ela (ainda) por causa de um problema de dote. Outros cidadãos (Pompeu e Madame Japassada) são presos por crimes semelhantes: o sexo por prazer e não como compromisso familiar. Ângelo por sua vez também havia engravidado sua antiga namorada, Mariana, sem que tivesse se casado com ela.

O encenador, assim, desloca a lente do espetáculo do conflito que move a trama para a situação em que ela acontece. O conflito é punir o outro por um erro que eu cometi. A situação é uma comunidade que, descumprindo a lei, vê o sexo de forma não compromissada. E nisso eu explico o porquê da platéia ter dificuldade de entrar na narrativa, de engolir a produção cênica. Em resumo: a história contada por Gawronski e seu grande elenco demora para andar.

Luis Salém (Duque), Nildo Parente (Esquilo), Celso André (Lúcio), Tatsu Carvalho (Delegado), Alcemar Vieira (Pompeu) e Sergio Maciel (Isabela) desfilam em suas construções de forma bastante à vontade trazendo ótimos resultados. No entanto, é muito difícil ser páreo para a estética escolhida pelo diretor. É só a partir do meio em direção ao final da encenação, que conseguimos identificar as boas interpretações e sorrir com o todo da história. Até aí as risadas vêm de eventos. E eles são muitos.

Cada figurino é uma coleção de novas informações. O cenário e as movimentações dos Coringas enchem os olhos, rebuscando nossa visão. Olhares, andares, paradas, marcas tudo é bastante poluído. No início, todo o elenco está em cena, mesmo quando não participam da cena o que contribui para um recheio ainda maior. E a dicção da maioria dos atores, ou talvez o sotaque muito carregado de alguns, dificulta ainda mais a audição dos diálogos e a compreensão da história. A isso, acrescenta-se, o fato de que são homens que interpretam os personagens femininos não havendo mulheres no elenco, o que não relacionamos com o modelo de produção pré-elizabetano, mas como uma ratificação da estética, entre outras, gay. Enfim, a situação, escolhida por Gawronski para aparecer mais que o conflito, é pesada demais para uma boa fruição.

Quando, finalmente, nossos olhos se acostumam, aí conseguimos suportar o que é apresentado e entrar na história contada. Pena que, já próximos do final, poucos nos resta senão,

Aplaudir.

*

Ficha Técnica:
Texto: William Shakespeare
Tradução: Barbara Heliodora
Direção: Gilberto Gawronski
Direção de movimento: Deborah Colker
Direção musical: Studio ARP.X
Figurinos: Antonio Medeiros e Cao Albuquerque
Cenografia: Maria Sarmento e Beanka Mariz
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Visagismo: Hélio Dias
Programação visual e Maquiagem: Fabrizio Sá
Video: Paulo Severo
Direção de Produção: Wagner Uchoa
Produção Executiva: Luana Cabral
Assistente de Direção: Fernando Philbert
Elenco:
Luis Salem | Duque
Nildo Parente | Éscalo
Alex Nader | Ângelo
Celso André | Lúcio
Rodolfo Bottino | Japassada
Alcemar Vieira | Pompeu
Gustavo Wabner | Cláudio
Tatsu Carvalho | Delegado
Sergio Maciel | Isabela
Rafael Leal | Mariana
Gilberto Gawronski | Bernardino
Murilo Fontes e Wallace Lima | coringas

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

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