segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Produto (RJ)

Foto: divulgação

Ouvir-se pelo contar-se: divertir-se


Pertence ao imaginário de todo mundo o índio velho e nu cheio de penas e colares sentado perto de uma fogueira contando histórias pra sua tribo. Os mais novos com a admiração de quem escuta pela primeira vez, os mais adultos com o respeito de quem ouve novamente e os mais idosos com a humildade de tirar sempre novas lições. Não se duvida se as histórias são verdadeiras. Todos sabem que verdade é um conceito sem fim, um poço sem limite, uma escuridão que só o indivíduo e seus próprios achares pode iluminar. Assim, o contador conta a si mesmo, ou reconta-se. Consequentemente, o ouvinte ouve a si mesmo, ou ouve-se mais uma vez.

“Produto”, escrito pelo inglês Mark Ravenhill em 2005, nos coloca na situação de índios em volta do pajé. Em volta, do grande rei oriental ou africano. Perto do pastor luterano, ao lado da vó que borda e conta como conheceu o vô. Hora de abrir o coração para uma boa história mais que tudo bem contada. Ary Coslov (James) interpreta um diretor de cinema que tenta convencer (Olívia) uma atriz, Gabriela Munhoz, a fazer um filme. O pajé ensina, o pastor prega, o rei manda, a vó nos faz dormir. Todo narrador quer algo na desculpa de contar uma história. Parábolas servem para quê mesmo?

James narra o filme, conta o roteiro inteiro para Olívia. A tela prateada fica onde está a verdade: no lugar de cada um. Com uma crítica mordaz ao gosto estético, ao cinema, ao produto cinematográfico, à narrativa em si, o roteiro provoca risos, gargalhadas, pausas para respirar. O ator, abrigado nas quatro paredes do teatro, conta a história de um filme ainda roteiro para a atriz, conta de si para ela: ouvimos suas opiniões, seus gostos, seus desejos, seu horror. Olívia somos nós: a presença fundamental.

Teatro só é algo sério porque há público. Se uma pessoa resolver falar sozinha, agir sozinha como sendo algo que, de fato, não é, duvidar-se-á de sua sanidade. A sobriedade do teatro é o público e ele se encontra, de forma muito interessante nesse trabalho, em Olívia que, como nós, não fala nada, mas reage. Presa a atenção na história, há tempo para olhar para Olívia, para olhar-se. O olhar debochado, a descrença, a ira, a pena que a atriz sente do diretor estão expressas em apenas algumas viradas de olhar, soltar de ombros, cair pela cadeira. É na presença de Olívia que “Produto” se separa da “contação de histórias”, que envolve signos teatrais, para ser teatro, que envolve signos prosódicos. James conta pra nós o que Coslov finge contar para Olívia. Fingimos ser Olívia quando, como Munhoz, ouvimos o enredo do roteiro cinematrográfico em questão.

A simplicidade do projeto dirigido pelo gaúcho Marcelo Aquino está apenas na metodologia: todo o resto é uma complexa e profícua produção teatral. O cenário deixa ver algo que não é de todo visto como também são as imagens que, a cada nova modificação, vão sendo construídas e desconstruídas. A trilha ludibria a contagem e se torna resultado final: o filme pronto, do que retiramos muitas e boas gargalhadas. O figurino sóbrio do diretor e a elegância da atriz nos deixa à vontade para fruir a proposta. Índio que é índio usa pena e colares, pastor com seu hábito, vovó com seu bordado. Aquino que, em quatro anos, dirigiu oito espetáculos, deixa ver o cuidado de um produto sem medo da lupa para os detalhes: tudo é bem pensado, posto e oferecido.

Não posso contar se Olívia aceita ou não fazer o filme de James. Não importando o final, logo estaremos sentados ouvindo novamente essa ou outra história. Só assim nos tornamos índios adultos, idosos, contadores e, sobretudo, ouvintes.

*

Ficha Técnica:

Texto: Mark Ravenhill
Tradução: Rachel Ripani
Direção: Marcelo Aquino

Elenco:
Ary Coslov
Gabriela Munhoz

Cenário: Marcos Flaksman
Figurino: Rô Nascimento
Iluminação: Aurélio de Simoni
Trilha Sonora: Ary Coslov
Direção de Cena: Gilberto Faria
Produção Executiva: Lilian Bertin
Direção de Produção: Celso Lemos

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