domingo, 23 de outubro de 2011

Quartett (França)


Foto: divulgação

As coisas não ditas

As coisas que ficam por dizer não desaparecem. Empedram. Esfriam. Endurecem. Mas estão ali. “Quartett”, como também “Ligações Perigosas”, me lembra sempre das coisas que não foram ditas, talvez, porque não precisavam ser ditas; talvez, porque não poderiam ou, quem sabe, porque não mesmo deveriam. Como aquilo que não é, o dito também não desaparece, embora nem sempre endureça, empedre, ou esfrie. “Quartett” fala do frio. E é frio.

O espaço permanece amplo já sendo. A ausência de cenário confere à pontualidade da luz a tarefa de delimitar de espaços e os seres. Luz é o contrário de sombra e só isso. Vai e vem num apertar de botão e qualquer barreira simples a transforma. O mesmo se diz sobre o som. O som é o contrário de silêncio. Tanto um como o outro é sensível ao tempo, ao ritmo, às barreiras da mente e dos ouvidos. No palco, vemos amplas zonas escuras que valorizam os pequeníssimos espaços iluminados, como também somos recebidos por quase quinze minutos de ausência de diálogos. Potentes focos coloridos e flashes sonoros nos fazem entrar numa caverna cheia de estalactites, sem vida tranqüila, mas bastante ardilosa e escorregadia. Quem, depois de muito tempo guardando para si, encontra-se na oportunidade de dizer o até agora não dito, encontra-se no meio do iceberg cuja pontinha, porque a maré baixou, vê o sol do oceano. A proteger-se, o gelo fica ainda mais gelado. É hora do iceberg falar.

Robert (Bob) Wilson é um dos diretores de teatro mais conhecidos no mundo, pelo menos, ocidental. E, trabalhando com a síntese que lhe é característica nos seus trabalhos há quarenta anos vanguardistas, impõe ao texto de Heiner Müller as mesmas ordens dadas às outras linguagens trazidas à “Quartett”: frieza, marcas pontuais, frivolidades meramente ilustrativas, ausência corporal. O elenco liderado por Isabelle Huppert e Ariel Garcia Valdès é tão plastificado como tudo nessa produção. Não há movimentos, mas valorização dos gestos, esses muito específicos. As vozes são quase sempre expelidas no mesmo tom, a exceção, como nos gestos, de arrebates emocionais. Pequenos gritos, grandes risadas, e lamentos incluem-se como a ilustração de um comportamento exterior ao iceberg que ora vive dentro desses outrora amantes. A tela inicial (Concerto Campestre, Frans Wouters), as caídas e voltas de Valmont, os giros de Merteuil são exemplos não sonoros de materialização da mesma concepção.

A qualidade plástica de “Quartett” pode ser enaltecida a partir de vários aspectos: cores fortes reagem contra a escuridão e pontuam o encontro do iceberg contra seu inimigo, o calor. Wilson começa falando de oposição pelos tons que emprega em sua encenação e pela própria cena da moeda em que vemos cada um de seus lados. Mas avança à luz de Müller que faz Merteuil falar por Valmont e ele por ela, seja colocando uma tela entre Valmont e seu duplo num jogo de espelhos, seja manipulando o casaco vermelho no palco, ou jogando com cores contrastantes ou trazendo à cena um peixe a nadar num aquário. Se as linhas são contrárias no início, misturam-se no fim sem perder suas idiossincrasias. O sol derrete o iceberg, mas a nuvem que se forma lhe impede de ver a terra. Chove e da água mais gelo é feito.

O espetáculo de encerramento do XVI Porto Alegre em Cena chama a atenção por proporcionar ao público, através de uma experiência sonoro-visual de grande impacto, uma distribuição de potências significativas que eu tenho a impressão de serem difíceis de recuperar. Durante a assistência, me peguei várias vezes pensando em outras coisas, distraído com minhas próprias lembranças e reflexões, mas longe de estar entediado, cansado ou mesmo desatento. Não senti passarem-se quase duas horas e me surpreendi comigo mesmo, na volta catártica a que Wilson parece rejeitar com todo o seu aparate pouco cênico, mas muito plástico, a permanecer com a síntese viva nos meus sentidos. “Quartett” subverte as relações como reação a elas, não contra elas. E isso faz com que, mesmo após o fim, sempre sobra algo para se dizer.

Algo que esfria e endurece.

*

Ficha técnica
Quartett de Heiner Müller
Tradução de Jean Jourdheuil e Béatrice Perregaux
Direção, cenografia e design de luz: Robert Wilson
Composição original da música: Michael Galasso

com
Isabelle Huppert - Merteuil
Ariel Garcia Valdès - Valmont
e
Rachel Eberhart, Philippe Lehembre, Benoît Maréchal

Figurino: Frida Parmeggiani
Colaboração direção: Ann-Christin Rommen
Colaboração cenografia: Stephanie Engeln
Iluminação: AJ Weissbard
Maquilagem e penteados: Luc Verschueren
Músicos: Cyril Atef, Jeffrey Boudreaux, Michael Galasso, Vincent Ségal e David Taïeb
Som: Jean-Louis Imbert e Thierry Jousse
Assistente de maquilagem: Sylvie Cailler
Assistente de penteados: Jocelyne Milazzo
E a equipe técnica do Odéon-Théâtre de l’Europe

Produção: Odéon-Théâtre de l"Europe, La Comédie de Genève, Théâtre du Gymnase/Marseille

*Texto escrito em setembro de 2009 por ocasião do 16º Porto Alegre em Cena 

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