domingo, 23 de outubro de 2011

Rebu (RJ)

Foto: Paula Kossatz

Duas dramaturgias

O excelente “Rebu”, espetáculo participante da 6ª edição do Palco Giratório do SESC/Porto Alegre, disponibiliza uma excelente oportunidade para refletir sobre dramaturgia. Nesse sentido, a peça, por acontecer, cumpre o seu papel de existir enquanto objeto de arte, mas vai além: propicia que a arte cênica ganhe novas idéias. A produção é realizada pelo Grupo Teatro Independente, do Rio de Janeiro, cujo primeiro trabalho foi o esquete “Cachorro!”, de 2006. Com um elenco de grandes artistas, sobre os quais, falarei a seguir, a obra oferece duas dramaturgias para o debate, ou seja, dois nomes: o dramaturgo Jô Bilac e o diretor Vinícius Arneiro.

“A primeira dramaturgia” diz respeito ao texto de Jô Bilac. Escrito com a mesma preciosidade dos grandes sucessos da literatura brasileira do século XIX, o texto exibe um uso da língua portuguesa invejável. Além disso, as situações criadas, a construção dos personagens, o criar e o desenrolar da trama situam Bilac como, de fato ele é conhecido, um dos mais valorosos dramaturgos brasileiros dessa última safra de escritores recém descoberta.

Vladine (Carolina Pismel) e Matias (Paulo Verlings) são irmãos. Ele é casado com Bianca (Júlia Marini). O casal recebe uma carta anunciando a vinda de Vladine. Ela passará uns tempos com o irmão e a cunhada e solicita uma série necessidades para a sua ideal estadia. Trará Nataniel (Diego Becker), que só depois, fica-se sabendo ser um bode. A relação entre a esposa e a cunhada se torna cada vez mais complicada: Vladine faz exigências cada vez menos toleráveis e Bianca suporta cada vez menos a presença de Nataniel dentro de sua casa como se fosse um ser humano. Por outro lado, Matias e Nataniel se afeiçoam mutuamente de forma que parecem inseparáveis. Algo surge e o jogo de poder entre Vladine e Bianca se inverte. A esposa tem um trunfo diante de Bianca e começa a fazer exigências.

Em sua estrutura, o texto é um melodrama com todas as características que fizeram do gênero o que ainda hoje ele é. Há a idealização dos personagens e das situações, a extrema clareza nas relações entre os acontecimentos, a evolução é crescente, o final é surpreendente, a quarta parede é mantida (recurso que dá o efeito de separação entre o palco e a plateia de forma que parece que os atores não reconhecem a presença de um público diante deles). Jô Bilac escreve “Rebu” como se estivesse há mais de cem anos atrás e a perfeição do seu traço é um dos seus grandes sinais de talento e técnica.

“A segunda dramaturgia” diz respeito à encenação dirigida por Vinícius Arneiro. O diretor e o grupo, consciente de que estamos no século XXI, manifesta no palco, por primeiro, o entendimento de que o mesmo melodrama que fazia os leitores de José de Alencar chorar, hoje, faz rir. Mantém, então, o mesmo texto e as mesmas situações propostas por ele, mas se utiliza do seu rebuscamento como trampolim para criar uma sintaxe corporal que garanta uma estrutura cênica que contribua com o texto e dê lugar ao bom teatro. Os atores de “Rebu” têm uma dicção perfeita: nenhuma sílaba, nenhum som fica distante do espectador. Tudo é bem dito, bem entoado, o discurso se dá de forma clara e segura como o texto requer. Além disso, o ritmo escolhido, esse uma opção estética do diretor, é criativo e inconstante, embora ratifique a curva ascendente da trama. Os corpos, por sua vez, são coerentes com a opção pelo ritmo e a união entre a movimentação corporal e o discurso verbal constroem uma linguagem que, pela sua redundância, apresenta-se como repleta de êxitos. Carolina Pismel e Júlia Marini, ao alongar as vogais em alguns momentos conferem um desenho concreto ao signo sonoro. O texto torna-se corpo, a literatura vira teatro. Paulo Verlings, não por menos, atua como que entre as duas figuras: forte em alguns momentos, sensível em outros, repetindo o mesmo sucesso que seus parceiros de palco e de narrativa. Diego Becker, o Bode, que não fala uma só palavra e teve uma construção de personagem conduzida para longe da que se deu com Verlings, Marini e Pismel, atinge, no seu paralelo, os exatos muito positivos resultados. O balanço dos braços e da cabeça, o desequilíbrio aparente no caminhar, a cabeça manifestando um efeito de soltura exibem a técnica da segmentação dos movimentos corporais que também pode ser vista nos demais atores, mas, nele, ganha impressionante verdade. Esta avaliação não encontra, em todas as unidades visitadas, um só ponto negativo.

Trilha sonora e figurino, em acerto com o texto, deixam seu lugar de importância a ser ocupado pela trama, o que lhes faz bastante eficiente em seu uso. A iluminação, em acerto com a encenação, estabelece uma linguagem que, ao concordar com a movimentação, torna-se também ela um personagem quinto na peça. O casamento entre Jô Bilac e Vinícius Arneiro se reflete nos excelentes frutos que seu trabalho produz: literatura e teatro, atores e público, história e ouvintes estão de braços dados, soltando-se as mãos apenas para, de pé, aplaudir.

*

Ficha técnica:
Texto: Jô Bilac / Direção: Vinícius Arneiro / Elenco: Carolina Pismel, Julia Marini, Diego Becker e Paulo Verlings / Figurino: Marcelo Olinto / Iluminação: Paulo César Medeiros / Cenário: Daniele Geammal / Trilha Sonora Original: Luciano Corrêa / Classificação
etária: 14 anos / Gênero: tragicomédia / Duração: 75 minutos

* Texto escrito em maio de 2011 por ocasião do 6º Festival Palco Giratório do SESC/RS

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!