sábado, 31 de dezembro de 2011

Amor Confesso (RJ)

Foto: Silvana Marques



As histórias alheias


Reconhecer que Claudia Ventura é Mestre em Artes Cênicas explica o fato de “Amor Confesso” ser um espetáculo que chama a atenção tanto do público comercial como da academia, agradando a todos, no fim de tudo, pelos mesmos aspectos. Idealizado em conjunto com Alexandre Dantas, o espetáculo consiste na tradução de oito contos de Arthur Azevedo (1855-1908), dramaturgo brasileiro pré-modernista cujas peças podem facilmente ser lidas a partir da ótica do teatro de costumes.

As histórias de Azevedo, autor da peça “A Capital Federal”, também outrora encenada por Ventura e Dantas, giram em torno de traições e de conquistas, aventuras amorosas e tragédias sentimentais que, por seu tom irônico tipicamente brasileiro, fogem do romantismo de Alencar e do realismo machadiano, embrenhando-se nas ruelas, nos bondes, nos morros do Rio de Janeiro sem muitas descrições idealizadas nem tampouco reflexões psicológicas sobre as intenções dos personagens. A partir do espetáculo dirigido por Inez Viana, o leitor de Azevedo se encontra com uma obra cujo ritmo é rápido, leve, engraçado sem ser, nem de longe, superficial. Diretora de “As Conchambranças de Quaderna”, Viana traz para a comédia de costumes resquícios bem-vindos das máscaras farsescas dos personagens de Suassuna, se utilizando delas, nesse outro universo, como um recurso inevitável para a agilidade da encenação que se auto-referencia a cada nova cena. Todos os personagens, e são muitos, se apresentam a partir de uma marca definitiva sem a qual se perderiam em meio à selva narrativa de múltiplas histórias. Ao dar a ver um personagem com um dedo indicador sobre o dente canino, a direção permite que a construção seja viabilizada tanto por Cláudia como por Alexandre, sem que nos confundamos com o personagem com sotaque lusitano, a mulher caolha ou o homem prognata. O gesto de dar o lugar no assento do bonde se repete em várias passagens dando positiva unidade ao espetáculo. Os jogos são rápidos, as cenas são encadeadas, a evolução é positivamente pobre em termos de sua estética visual e bastante rica no modo como os detalhes preenchem a tela do palco italiano. Assinado por Carlos Alberto Nunes, no cenário, há apenas duas cadeiras e uma negra rotunda, acrescentando, à titulo de ilustração cênica, o fraque completo do noivo e o vestido branco de noiva suspensos nas laterais. O figurino, também de Carlos Alberto, é inteligentemente composto por partes de baixo da caracterização de um noivo e de uma noiva que ainda estão se arrumando para sair, não se modificando ao longo da apresentação apesar dos muitos personagens que os atores interpretam. Deve-se dizer, antes de mudar o ponto de vista, que todos os méritos de Viana e do casal de atores já tratados são plenamente visíveis na passagem do primeiro para o segundo conto de Azevedo. A grata surpresa, a novidade, a motivação em “Amor Confesso” em sua totalidade espetacular vêm da trilha sonora dirigida por Marcelo Alonso Neves e interpretada pelo pianista Roberto Bahal. De músicas a la Richard Clayderman (“Balade pour Adeline”, entre outras), a um repertório nacional conhecido e desconhecido, o espetáculo se renova e ganha corpo desde os mais simples inserts sonoros até a versão de “La donna è mobile”, da ópera Rigoletto de Verdi, brilhantemente cantada por Ventura num dos momentos mais brilhantes de toda a representação. Neves e Bahal participam da cena, bem como Viana, fincando suas presenças no trabalho de interpretação cênica, fazendo ampliar o olhar para o teatro como fruto de algo que vai além do trabalho dos atores, embora, sem dúvida, parta deles.

Mas há, conforme o prometido, um outro ponto de vista possível para “Amor Confesso”. A dramaturgia parte, como já se disse, de contos de Arthur Azevedo e não de seus célebres textos dramáticos e a novidade já nem tão nova assim é o fato da prosa centenária estar presente na narrativa cênica que, claro, não chega a se desprender da linguagem dramática. Assim, os diálogos permanecem convivendo com a narração em terceira pessoa própria dos contos e romances que todos conhecemos. O pesquisador (e diretor teatral) Luiz Arthur Nunes trata desse efeito em um artigo chamado “Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e teatral”, cuja leitura é recomendável. Nele, tratando do conceito do ator-rapsodo, há a reflexão para esse exercício já presente na história do teatro que fornece para a arte novas possibilidades de polifonia e manutenção de um discurso autoral e, por isso, épico. Nunes destaca dois tipos de narradores: aquele que participa da encenação e aquele que não participa. No caso de “Amor Confesso”, o diferencial está para uma variação do primeiro caso. Vestindo-se de personagens cênico-narrativos cujos nomes se confundem com os de seus intérpretes, Claudia e Alexandre não só participam da encenação por eles narrada como fazem dessas histórias as suas próprias histórias ou seus motivos para refletirem sobre os seus futuros. Na cena de abertura, os dois personagens, após cumprimentarem o público, explicam que estão indo para a cerimônia de seu casamento quando começam a representar os contos de Azevedo. A sucessão das narrativas deixa ver pequenos conflitos que dão dúvida para o iminente acontecimento de forma que a cena final guarda uma resposta vital para os espectadores: eles vão mesmo se casar ou não? O épico, que aqui não é politicamente ideológico, está no exercício de se utilizar de histórias alheias para 1) contar a própria; e 2) refletir sobre a própria; ações que, sem dúvida, são próprias da assistência, lugar em que todos estamos.

Em “Amor Confesso”, dois personagens se utilizam dos contos clássicos da literatura brasileira para refletir sobre seus caminhos. Além dessa seleção, o espectador tem, a sua disposição, uma nona história, a de Cláudia e de Alexandre, para se divertir, pensar e celebrar as próprias histórias de amor confessadas ou não.

*

Ficha técnica:


Autor: Arthur Azevedo
Direção: Direção Inez Viana
Elenco: Claudia Ventura e Alexandre Dantas
Pianista: Roberto Bahal
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Cenário e Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Preparação Vocal: Marcelo Rodolfo
Projeto Gráfico: Mais Programação Visual
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Fotografia: Silvana Marques
Produção de Fotos: Lucília de Assis
Produção: Falantes
Produção Executiva e Administração: Christina Carvalho
Assessoria de Produção: Leila Moreno
Assistente de Direção: Luiz Antonio Fortes
Assistente de Cenário e de Figurino: Gabi Windmüller
Assistente de Assessoria de Imprensa: Bruna Amorin
Operador de Luz: Boy Jorge
Bilheteria: Anderson Aragón
Costureira: Adélia Andrade
Cenotécnico: Marcos Souza

Ilustração de Esteban Crotti

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os Náufragos do Louca Esperança / Les Naufragés du Fol Espoir (França)

Fotos: Michèle Laurent

“Há-há-há-há-há: Capitão!”


Numa união de três estados, diversos municípios (incluindo Canoas/RS) e vários patrocínios de peso, o Théâtre du Soleil volta ao Rio Grande do Sul depois de quatro anos. “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)”, que reúne Ariane Mnouchkine, uma das diretoras mais celebremente conhecidas ao redor do mundo, e mais 75 profissionais (30 atores) em uma estrutura trazida diretamente da Cartoucherie de Vincennes, uma antiga fábrica de cartuchos dos arredores de Paris/França, fica em cartaz até o dia 11 de novembro (de 2011) no Brasil, seguindo depois para o Chile e outros lugares do mundo. Ao longo de três horas e quarenta e cinco minutos, o espectador está diante de um espetáculo teatral de primeira grandeza: uma peça que homenageia o teatro, o cinema, os artistas e, sobretudo, a humanidade contida em cada homem, mas nem sempre lembrada pelos próprios.

Segundo Les Echos, “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)” é a primeira obra prima desde “1789”, espetáculo produzido há 40 anos pelo grupo criado em 1964 por Ariane Mnouchkine (1939) e seus companheiros da ATEP (Associação Teatral dos Estudantes de Paris). A peça conta a história de um grupo de artistas que se reúne, no verão de 1914, em Paris, a fim de adaptar para o cinema um livro póstumo de Júlio Verne (1828-1905). Ele se chama “Os Náufragos do Jonathan” (Magellania), escrito em 1897, mas só publicado em 1909, quatro anos após a morte do escritor francês. Monsieur Félix Courage (interpretado pela atriz Eve Doe-Bruce) é dono da Louca Esperança, uma guinguette (um restaurante em que, além de servir comida e bebida, possui um salão de bailes) às margens do Rio Marne (conhecido pelas pinturas de Cézanne). Apaixonado pelo cinematógrafo (uma invenção que os franceses, ainda hoje, reivindicam), ele decide abrigar os irmãos Jean e Gabrielle LaPalette (Maurice Durozier e a atriz brasileira Juliana Carneiro da Cunha), recém demitidos da Pathé, uma das mais antigas produtoras de cinema. A demissão dos estúdios ocorreu em função dos ideais socialistas de Jean, leitor comprometido de Karl Marx (1818-1883), cuja maior obra é “O Capital”, de 1867, que aparece em cena. O sótão do estabelecimento de Monsiuer Courage se torna o estúdio em que os irmãos LaPalette e o auxiliar Tommaso (Duccio Bellugi-Vannuccini) vão filmar “Os Náufragos do Louca Esperança” com a ajuda de todos os funcionários da guinguette que se alternarão entre interpretar os personagens e auxiliar nos diversos trabalhos relativos à produção das sequências.

(Ariane Mnouchkine faz, com o espetáculo, uma dupla homenagem. Seu pai, o russo Alexandre Mnouchkine (1908-1993), foi fundador e proprietário da Ariane Films, que tem uma vasta e importante produção cinematográfica desde 1945. Além disso, o discurso socialista que inspira o fazer cinematográfico de LaPalette faz uma clara alusão ao conceito de trupe teatral utilizado pelo Théâtre du Soleil, em que todos os envolvidos, incluindo a diretora, ganham o mesmo salário e dividem todas as funções: da interpretação à bilheteria, da cozinha à faxina, da recepção do público à manutenção do espaço.)

O filme fictício produzido pelos irmãos LaPalette é, nesse contexto anterior a 1927, mudo. Ele trata, entre 1889 e 1895, da história de um navio, chamado “Louca Esperança”, numa homenagem de LaPalette à guinguette a Courage, que parte de Cardif (País de Gales) em direção à Austrália, naufragando no distante Cabo Horn (o ponto mais meridional da América do Sul). A história contada no filme mistura Julio Verne com os acontecimentos políticos reais. A Primeira Guerra Mundial está para eclodir e suas causas estão na formação do Império Austro-Húngaro (1867) sob a égide da Casa de Habsbourg, cujos descendentes (arquiduques) vão sendo rapidamente substituídos em função de suas mortes prematuras (assassinatos e suicídio).

(Politicamente unidas, as nações Austro-Húngara, Alemanha e Rússia entram em choque na Guerra dos Balcãs. Quando Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro é morto em Saravejo (Sérvia) em 28 de junho de 1914, Áustria, Alemanha e Itália (Tríplice Aliança - 1882) declaram guerra aos Balcãs. Rússia, França e Inglaterra (Tríplice Entente - 1907) se unem para defender a Sérvia. É o início da Primeira Guerra Mundial, que um dos primeiros movimentos foi a Batalha dos Falklands (Ilha das Malvinas), travada na região do Cabo Horn entre navios britânicos e alemães.)

O Louca Esperança parte com um grupo heterogêneo de tripulantes: nobres, artistas, colonos e prisioneiros. Ao chegar na Região da Terra do Fogo chamada de Magellania, os náufragos se encontram com indígenas e brancos (missionárias católicas salesianas e colonizadores argentinos, chilenos, ingleses e de outras nacionalidades, entre eles Jean Salvatore de Habsbourg-Toscane, personagem interpretado por Serge Nicolaï). O encontro tem dois resultados: de um lado, o grupo pretende estabelecer a primeira nação socialista da história; de outro, a guerra pela descoberta do ouro, iniciada por Émile (Maurice Durozier) e seu irmão Simon Gautrain (Sebastien Brottet-Michel), acaba por produzir um auto-massacre em série da pequena população. O filme termina com a construção do Farol que deverá auxiliar as embarcações para que com elas não aconteça o mesmo que aconteceu com o Louca Esperança, construção que será importante na batalha dos Falklands de que já se falou. As filmagens terminam junto com um comentário acerca da morte de Jean León Jaurès (1859-1914), um pacifista francês que escrevia contrariamente à participação da França na guerra entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia, propondo acordos sem violência entre as nações.

Adaptado por Hélène Cixous, o texto, como se vê, é repleto de referências históricas que podem auxiliar o espectador na fruição do espetáculo, cuja narrativa se organiza em um jogo complicado de passagens de tempo e mudanças de lugar. Com uma narrativa lenta, porque pesada em função dos muitos detalhes, o discurso é, muitas vezes, cheios de teses ideológicas, o que, de forma positiva, faz da produção francesa um meio universal de reflexão, mas, de forma negativa, pesa ainda mais o trabalho do espectador. A encenação, por sua vez, não é menos pesada, sendo, assim, coerente consigo própria: “Os Náufragos do Louca Esperança” é um espetáculo realista em que cada um dos mínimos detalhes está para ser apreciado.

Em cena, está o sótão da guinguette de Félix Courage. A cenográfica luz do dia entra pelo telhado do sótão, onde todos os cenários do filme são construídos e desmontados a cada sequência que é filmada. Os figurinos são coerentes com a segunda década do século XX quando se tratam dos atores de LaPalette e com a última década do século XIX quando se tratam dos personagens do filme. Cordas, neve, blocos de gelo, efeitos de ventilação, carruagens e navios cenográficos entram e saem pelas mãos dos atores de LaPalette a todo o momento enchendo os olhos do espectador que se sente, de fato, num antigo set de filmagens. A dublagem da peça se mistura com a dublagem do filme, sendo diferenciada pelos tipos de fontes escolhidas para as suas grafia. Os atores de LaPalette, assim como os de Mnouchkine, se dividem em diversas funções e o jogo do monta e desmonta, convivendo com a iminente eclosão da grande guerra, é o que dá positiva e negativamente ritmo à encenação do Théâtre du Soleil.

“Os Náufragos do Louca Esperança” é um espetáculo de tecnologia. Roldanas que fazem subir cenários fictícios, neve de papal picado, ventiladores e toda uma série de detalhes (minuciosamente cuidados) concorrem com igual, por vezes, maior, força com o texto e as interpretações dos atores. A cada nova sequência do filme que é gravada, um arsenal de objetos surge e o próprio meio através do qual ele surge é um signo a se prestar a atenção. De forma que o espectador, enquanto se sente alimentado pela novidade surpreendente que está em cena e pela promessa da que está por vir, tem motivos visuais para se interessar pelo espetáculo (além dos motivos pessoais). Isso, no entanto, não dura os 225 minutos da representação, apesar da pausa de 15 minutos entre os dois atos. Em um determinado momento, em especial na cena em que os náufragos resolvem criar uma sociedade totalmente socialista com ideais humanitários a serem estabelecidos plenamente naquela distante Ilha Hoste, têm-se a impressão de que tudo que era para ser visto já se viu: já se sabe como entram e saem os cenários, como funciona a neve, já se contemplou as interpretações dos atores de LaPalette interpretando cinema mudo, já se prestou a atenção nos abajures, nas roupas, nos fios elétricos, no piano, nos cabelos e na maquiagem e já se conhece todos os ambientes do palco (o sótão de Courage) que foram sendo explorados paulatinamente ao longo da peça. A partir de então, só resta saber como a história termina, narrativa essa que, por ser repleta de referências histórico-políticas, deve ainda encarar o desafio de se compreendida para segurar a atenção, o que, de fato, não acontece em plenitude. Por fim, colaboram para o cansaço final do espectador, os desconfortáveis assentos do Théâtre du Soleil, que, por serem muito baixos, exigem do joelho que ele fique mais alto que o quadril (se você tiver mais de 1,65m), de forma que todo o peso do corpo fique ou sobre o cóccix ou sobre os joelhos, em um vai e vem constante em busca da melhor posição.

Brilhantes são as interpretações de todo o elenco com alguns destaques para a sensibilidade cativante de Juliana Carneiro da Cunha ao se expressar com docilidade e ironia nos seus diálogos. Também para a força cênica de Maurice Durozier, cuja paixão do seu personagem Jean pelos ideais marxistas é transmitida a ponto de identificá-lo como líder não só pelas falas, mas por seus posicionamentos em cena. Entre todos, o ator que consegue resultados mais vezes aparentes e de forma mais interessante dos signos da interpretação própria do cinema mudo é Serge Nicolaï, embora bastante positivas sejam, no mesmo sentido, as pequenas participações de Astrid Grant (Rainha Victória), Seer Kohi (Yuras, o jovem índio) e Armand Saribekyan (o pintor Vassili). Sem duvida, está em Eve Doe-Bruce (Félix Courage), o resultado mais positivo em termos de interpretação. A atriz obtém resultados magníficos na forma como localiza a coluna, como sustenta os ombros, como movimenta as mãos em gestos pontuais, como elegantemente se mantém equilibrada no figurino de homem barrigudo e suíças, expressando peso e leveza ao mesmo tempo.

O realismo que norteia todas as opções estéticas de “Os Náufragos do Louca Esperança - (Auroras)” é, em resumo, um espetáculo. Cristais, telas, chapas de cobre, rendas, iluminação nos mínimos detalhes evidenciando não só compromissos com a estética do espetáculo, mas um extremo bom gosto da direção de arte: tudo isso faz dessa segunda vinda do Théâtre du Soleil para o Brasil um evento imperdível.

Em uma das cenas, no início do segundo ato, uma das ajudantes de Monsieur Courage vai até o patrão para pedir que ele interceda por ela junto a La Palette em favor de sua participação na equipe de filmagem. Courage, então, discursa sobre alguns detalhes da arte de interpretar numa das cenas mais interessantes do espetáulo apesar de, comparada com as demais, sem grandes investimentos de cenário e de movimentação. Então, ele fala para a funcionária, citando como exemplo, sobre Ravisharanarayanan (Vijayan Panikkaveettil) que, apenas por rir fortemente, ganhou o personagem de Capitão, estando no lugar certo e na hora certa. Essa é a metáfora para o município de Canoas que tem a honra de receber uma das mais importantes companhias teatrais do mundo, nos dando o privilegio de assistir Ariane Mnouchkine e seu grupo: “Há-há-há-há-há: Capitão!”

*

Ficha técnica:

Uma criação coletiva do Théâtre Du Soleil
Escrita em parceria com Hélène Cixous e inspirada num misterioso romance póstumo de Júlio Verne
Encenação de Ariane Mnouchkine
Música de Jean-Jacques Lemêtre
Duração: 3h45min
Classificação etária: 14 anos

Elenco feminino:
Eve Doe-Bruce
Juliana Carneiro da Cunha
Astrid Grant
Olivia Corsini
Paula Giusti
Alice Milléquantt
Dominique Jambert
Pauline Poignand
Marjolaine Larranaga Y Ausin
Ana Amelia Dosse
Judit Jancso
Aline Borsari
Frédérique Voruz
Gabriela Rabelo

Elenco masculino:
Jean-Jacques Lemêtre
Maurice Durozier
Duccio Bellugi-Vannuccini
Serge Nicolai
Sebastien Brottet-Michel
Sylvain Jailloux
Andreas Simma
Seear Kohi
Armand Saribekyan
Vijayan Panikkaveettil
Samir Abdul Jabbar Saed
Vincent Mangado
Sébastien Bonneau
Maixence Bauduin
Jean-Sébastien Merle
Seietsu Onochi
Jean-Jacques Lemêtre – trilha sonora

Ariane Mnouchkine – idealizou o espaço do espetáculo executado por Everest Canto de Montserrat
Charles-Henri Bradier – assistente de direção
Lucile Cocito – assistente de direção (colaboração)
Serge Nicolaï, Sébastien Brottet-Michel, Elena Antsiferova, Duccio Bellugi-Vannuccini, Andreas Simma, Maixence Bauduin – cenografia
Elsa Revol, Hugo Mercier e Virginie Le Coënt – criação e operação de luz
Yann Lemêtre, Thérèse Spirli e Marie-Jasmine Cocito – criação de som
Nathalie Thomas, Marie Hélène Bouvety, Annie Tran, Simona Grassano e Cecile Gacon – criação de figurinos, com a colaboração do elenco
Danièle Heusslein-Gire – pintou as telas do espetáculo
Adolfo Canto Sabido, Kaveh Kishipur, David Buizard, Johann Perruchon e Jules Infante – construções em metal e madeira
Elena Antsiferova – acessórios de cena
Vincent Mangado e Dominique Jambert – acastelagem e mastreação
Erhard Stiefel – blocos de gelo e iceberg
Paula Giusti – reconstituiu câmeras
Olivia Corsini, Aline Borsari, Ana Amelia Dosse, Alice Milèquant, Martha Kiss Perrone – confecção da grande banquisa
Sylvain Jailloux – regulação de chassis
Andrea Marchant e Ebru Erdinc – canhões e cabines de luz
Naruna de Andrade e Pedro Guimarães – tradução
Marie Constant e Judith Marvan Enriquez – operadores de legendas
Dominique Lebourge – piso e cenário
Everest Canto de Montserrat – técnica
Etienne Lemasson – informática e organização
Claire Van Zande e Pierre Salesne – administrativo
Liliana Andreone, Sylvie Papandréou, Marian Adroher Baús e Svetlana Dukovska – relações públicas
Franck Pendino – questões editoriais
Karim Gougam, Augustin Letelier e Julia Marin – chefes de cozinha
Thomas Félix-François e Catherine Schaub-Abkarian – cartazes e programa
Marc Pujo – fisioterapeuta

sábado, 3 de dezembro de 2011

Estamira - Beira do Mundo (RJ)


Foto: divulgação

A genialidade de Dani Barros

Estamira – Beira do Mundo” é uma peça de teatro. A palavra peça significa Parte e está em oposição à Todo. Se Teatro é o Todo, a Peça é a Parte. Não acho que seja possível medir o talento, mas, no caso de Dani Barros, idealizadora do projeto aqui em questão, há que se identificar as marcas de sua genialidade. Entre as várias Partes que o Teatro oferece, quem se embrenha por essa “mata” cada vez mais sem fim, precisar ser/estar também cada vez mais consciente do poder de suas decisões. O Teatro não tem signos próprios, mas tudo pode ser tornado signo teatral. Recolher aqui e ali os signos dos outros e torná-los, com vistas à construção de uma estrutura, alicerces para um objeto que possa ser chamado de Peça (ou Parte) é tarefa que merece atenção. Em “Estamira – Beira do Mundo”, nenhum signo parece ter sido desperdiçado e suas possíveis articulações são aparentes, vastas e nobres. Ao longo deste texto, pretendo apenas descrever criticamente alguns desses usos.

Inspirada no filme documentário de Marcos Prado “Estamira” (Brasil, 2006, 115min), a peça tem a sua importância pela gênese teatral. Enquanto o cinema é uma articulação de imagens (e sons), o teatro é um objeto estético em que alguém (A) interpreta outro alguém ou algo (B) diante de um terceiro ou quarto alguém (C). No caso da Peça (filme é Peça, cinema é Todo) de Marcos Prado, a personagem Estamira Gomes de Souza (1941-2011) ganha marcas de ficcionalização no tratamento fotográfico, na edição das imagens e na inclusão da trilha sonora. De resto, o que vemos não é ficção. A senhora com problemas mentais, trabalhadora do Jardim Gramacho, o maior aterro sanitário da América Latina (Duque de Caxias/RJ), mãe e avó, realmente existiu, vivendo no mundo além de qualquer narrativa. No caso do monólogo dirigido por Beatriz Sayad e interpretado por Dani Barros, o exercício (rico) de ficção tem possibilidades de ir (e vai) além. Dani Barros não é Estamira Gomes de Souza, o Espaço Rogério Cardoso (Porão) da Casa de Cultura Laura Alvim não é o lixão e nós não somos os urubus que sobrevoam os detritos materiais e humanos (?) que perambulam por ali. E é aqui que iniciam as evidências da genialidade.

O B interpretado por Barros é resultado de três construções (B1, B2 e A2): Estamira Gomes de Souza (a protagonista do documentário que a atriz Dani Barros conheceu e com quem conviveu proximamente nos últimos dias de sua vida), a mãe de Dani Barros e uma versão (relação mãe e filha) da própria Dani. O teatro expresso no monólogo não é realista uma vez que a estrutura está nua: aos espectadores é dado ver a evolução das personagens, o jogo entre elas, os sinais de transformação. O objetivo é claro: se a emoção vier (e ela vem desde os primeiros momentos), será bem vinda, mas terá que conviver com razão inevitavelmente. O espaço é pequeno e organizado em semi-arena, de forma que os espectadores se enxergam quase todo o tempo da encenação. Dani Barros controla o ar condicionado, ajuda o público a escolher o lugar para se sentar, não se distancia de si em favor de sua personagem e nem da personagem em favor de si. A atriz (a preparação de ator é assinada por Georgette Fadel) muda a voz, assume diferentes posturas, maquia as mãos e o corpo, redireciona o olhar, controla o fluxo de sua respiração e usa com excelência o direito de se emocionar. “Estamira – Beira do Mundo” é documentário e é ficção e apenas gênios (há poucos) conseguem mesclar diferentes gêneros cênico-narrativos com tanta habilidade (Nelson Rodrigues unia melodrama com realismo naturalismo, por exemplo).

Não há vídeos, não há trocas de cenário ou de figurino e Dani Barros nem canta, nem dança. Com uso extremamente rico dos recursos simples que a montagem escolheu para se viabilizar, ao espectador está à disposição um magnífico trabalho estético. O figurino de Juliana Nicolay sobrepõe uma capa de sacola plástica por cima de uma camiseta cheia de objetos. A capa nunca sai, mas o espectador, através do recuso, tem permissão para pensar que a peça é apenas Parte (não só do Teatro, mas da vida da personagem), isto é, Estamira (de Barros) existia antes da cena começar e continuará existindo após ela. O cenário de Aurora dos Campos localiza um banco cujo estofamento é em tom terra. Em volta, centenas de sacolas plásticas de várias cores, cuja leveza, cujos sons, cujas texturas acrescenta, ratifica, amplia o universo de possibilidades significativas, oferecendo uma belíssima cena final. A direção musical de Fabiano Krieger e Lucas Marcier age no mesmo sentido, auxiliando na convergência, mas oferecendo outros pontos de ancoragem para possíveis níveis mais aprofundados de leitura. (Um dos grandes momentos da peça é quando a personagem ouve uma canção, um fado brilhantemente interpretado por Soraya Ravenle.). A iluminação de Tomás Ribas é delicada, eficiente e pontual. Assim, do início ao fim dessa Peça que se faz Todo, o Teatro serve como base para a reflexão sobre o homem, esse sim, material básico de que a cena é verdadeiramente feita. As relações humanas e o que nos faz Parte de uma humanidade que é Todo são o assunto dessa Estamira teatral e tão viva como só o teatro pode fazer e do qual não deve se esquecer o espectador, justificando assim a constante presença da racionalidade comentada acima.

“A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar.” – diz a personagem do documentário e da peça. Revelado, pois, está o Teatro em “Estamira – Beira do Mundo”. Aqui, apenas uma pequena parte desse grande espetáculo, está descrito. Isso, com certeza, porque meu olhar é apenas uma única e minúscula Parte. Mas, sincera.

*

Ficha técnica:
Direção e Dramaturgia: Beatriz Sayad
Atuação, Dramaturgia e Idealização: Dani Barros
Luz: Tomás Ribas
Cenário: Aurora dos Campos (Col.: Beatriz Sayad e Dani Barros)
Figurino: Juliana Nicolay
Direção Musical: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Assistente de Direção e Operação de Som: Marina Provenzano
Preparação de Ator: Georgette Fadel
Preparação Vocal: Luciana Oliveira (Fonoaudióloga) e Marina Considera (Canto)
Condicionamento Corporal: Cristina Wenzen
Voz do Fado: Soraya Ravenle
Preparador Vocal – Soraya Ravenle: Felipe Abreu
Assistente de Luz e Operador de Luz: Sandro Lima
Assistente de Cenografia: Camila Cristina
Costureira: Cleide Moreira
Produção: Ana Kutner
Produção Executiva: Gabriela Rocha
Coordenação Geral do Projeto: Dani Barros
Realização: Momoenddas Produções Artísticas

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cartas para além dos muros (RJ)


Foto: Renato Mangolin

Disforme

Dirigido por Daniel Pereira, “Cartas para além dos muros” é um espetáculo da Cia. Epifania (não confundir com Epifania Companhia de Teatro) e realizado pela Diboa Produções que remete a algumas crônicas de Caio Fernando Abreu. No total são cinco: Carta para além do muro, publicada em (25 de) maio de 1971, no Suplemento Literário de Minas Gerais; Primeira, Segunda e Última carta para além dos muros, em 1994; e Mais uma carta para além dos muros, em dezembro de 1995, essas quatro últimas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo.

Caio tinha 23 anos quando publicou a primeira “carta”, entre as citadas no parágrafo acima. Exatos 23 anos depois, vieram as outras. Desse contexto, uma das investigações mais interessantes da obra do escritor gaúcho pode ser identificar as relações entre a primeira carta (que nunca foi republicada pelo autor em vida e que só foi reaparecer na obra recente Caio em 3D) e as últimas. Da mesma forma, pode interessar (e interessa) a diversos pesquisadores (e leitores) ler essas cartas tendo como “pano de fundo” os acontecimentos reais da vida do seu autor no contexto em que elas foram publicadas. Em agosto de 1994, Caio descobriu que era soropositivo, satisfazendo uma dúvida que ele já tinha há dez anos. As três cartas desse período exibem uma substancial ficcionalização de Caio na situação real em que ele se encontrava: o hospital, a sensação da morte e da sua ligação com os demais artistas que morreram por doenças causadas através do vírus HIV, bem como o sentimento de prisão e de tragédia diante de um fato irrevogável. A última carta acontece dois meses antes da morte de Caio e é um dos seus últimos textos. Então, conclusão minha, identificar a poética de um paciente terminal e de um jovem no início da vida como aproximadas pode fazer ver um Caio raro, um Caio poucas vezes descoberto por quem não tem proximidade com seus textos: o Caio da dúvida, do disfarce, da vida intermediária e alternativa. É notório que a maior contribuição de Caio Fernando Abreu para a literatura brasileira é a sua habilidade de mesclar gêneros narrativos e tipos textuais, explorando desde o início as referências visuais e os diálogos com o cinema que o escritor foi acumulando ao longo do tempo. No início dos anos 70, Caio fugia da homossexualidade. Depois, da Aids. Por fim, da morte. E é justamente essa insegurança, esse desconforto que o fez/faz grande entre os autores brasileiros, bem como riquíssima a sua literatura.

Atualizar Caio para outros ambientes estético-artísticos que não literatura é um grande desafio. Feito de movimentos, o teatro, quando não é a retórica da tragédia grega, não tem habilidade com palavras. O texto pós-dramático, entre todos os gêneros, é o que melhor obtém resultados nesse sentido e é possível vislumbrar algumas intenções de Daniel Pereira em direção a esse objetivo. No entanto, há muito pouco de Caio Fernando Abreu no espetáculo “Cartas para além dos muros”.

A produção tem uma forma que não resiste a si mesma. Em vários dos seus aspectos, como foi dito, é possível notar que houve intenções em vincular a peça ao gênero pós-dramático (Lehmann) ou contemporâneo (Ryngaert). O gênero, não importa o nome que os diferentes autores dêem, consiste em um passo além do drama, isto é, parte do drama, mas avança sobre ele. Enquanto no teatro dramático, vale a convergência estrutural (estruturante) dos diferentes signos, no pós-dramático vale a divergência também estrutural (e estruturante). No segundo, (em linhas superficiais e rápidas) é essencial que o espectador reconheça a sua função enquanto produtor de sentido e seu estado de liberdade para significar do jeito que melhor lhe aprouver. No primeiro, por outro lado, cenários combinam com figurinos que combinam com os personagens que combinam com os atores que fazem movimentos todos coerentes e visivelmente relacionados entre si dispostos a dar um sentido global para o todo da narrativa. O pós-dramático contribui para a exercício da palavra cênica quando faz o tom discutir com o significado da palavra, o que, via de regra, é mais próximo da realidade do que a convergência. O disforme do espetáculo dirigido por Daniel Pereira aparece tanto nos aspectos dramatúrgicos, como dos cênico-plásticos, ora convergindo, ora divergindo.

Em termos de dramaturgia, o espetáculo não se consolida. O espectador que vai ver um espetáculo chamado “Cartas para além dos muros – de Caio Fernando Abreu” não precisa de um jogo de “Era uma vez” para ser contextualizado no tema. Dessa forma, a cena inicial em que um dos personagens/figuras propõe: “Vamos brincar de dizer frases de Caio?!” é desnecessária (e rasteira). Evoluindo para cenas em que as cartas são lidas diante de máquinas de escrever (os melhores momentos, porque os mais inteligentes e corajosos), o espetáculo ganha cor, ganha força, ganha intensidade e é, finalmente, Caio Fernando Abreu. Mas as cenas, por algum motivo obscuro, não receberam investimento ideal da dramaturgia e não se estabelecem. Tão logo se dão a ver, as palavras de Caio são interrompidas pelas vozes dos personagens/figuras que “quebram o clima”, movimentam estranhamente o encontro (pois não há narrativa), trocando o tema de lugar, sem oferecer-lhe um outro para repousar. Cenas entre casais heterossexuais, que soam estranhas no universo alternativo de Caio, são duplas de momentos em que os atores, que se chamam pelo próprio nome, instigam a participação do público através de frases ou palavras escritas. Há ainda a cena, tão deslocada como as outras, em que um dos atores (Ike Santos) narra a sua vinda de São Leopoldo, uma cidade do Rio Grande do Sul (Caio é de Santiago do Boqueirão e viveu em Porto Alegre), para o Rio de Janeiro e suas primeiras impressões na Cidade Maravilhosa. Tudo isso acontece em uma encenação que explora o teatro-ritual: os espectadores ouvem, durante quinze minutos, os atores confraternizando entre si e ouvindo músicas no espaço cênico antes de entrarem e ocuparem os seus lugares, o público é abraçado pelos atores tão logo entregam os seus ingressos e são convidados para escrever uma carta para quem desejarem no final da peça. Sendo a falta de sentido também um sentido e sendo o deslocamento constante também uma forma de localização, falta no espetáculo, em termos do seu discurso no espaço-tempo, uma linha que permita ao espectador reconhecer a obra como um todo.

Com relação aos aspectos cênico-plásticos, a divergência sígnica da dramaturgia é menos fácil de encontrar. A tecnologia se resume a duas máquinas de escrever sob pequenas e pontuais luminárias e os atores vestem roupas que remetem aos anos setenta: cabelo soltos, estampas fortes, tecidos crus, camisas abertas até a metade do peito, sandálias de couro, pés descansos, faixas na cabeça. O espaço II do Teatro Solar Botafogo recebeu pouca direção de arte, ficando ainda mais convergente com os anos de chumbo: livros, rosas vermelhas, textos escritos pregados na parede. O cenário é escuro, o clima é obscuro, ratificando a falsa ideia que os não conhecedores de Caio tem de que sua literatura é depressiva e mórbida.

Assim, diante do exposto, o espetáculo “Cartas para além dos muros” não atualiza (Pierre Levy/Júlio Plaza) a obra de Caio Fernando Abreu, embora se utilize de suas palavras em algumas cenas/eventos soltas/os. Tampouco, há nele a consolidação de uma obra estética independente que parta de ou estruture o universo significativo de Caio. Há, por fim, os atores com seus nomes próprios, suas histórias pessoais e quase nada além de boa vontade que expressa no brilho dos olhos a felicidade de estar em cena.

Nas "cartas para além do(s) muro(s)”, Caio deixa claro a importância que ele dá para o ato de escrever e, sobretudo, o ato de escrever para alguém, o que justifica o tipo textual escolhido: uma carta geralmente tem um destinatário. Do que foi dito sobre o espetáculo “Cartas para além dos muros”, vale ainda encerrar dizendo que é válida a sua intenção de nos fazer sentir saudades de um tempo em que escrevíamos cartas, “cartas gordas como as cantoras líricas”.

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Ficha técnica:

De: Caio Fernando Abreu
Adaptação/Direção: Daniel Pereira
Direção Musical: Daniel Carneiro
Elenco: Adriana Perim, Bárbara Fernandes, Daniel Carneiro, Giancarlo Di Tommaso, Ike Santos, Leandro Caris e Rômulo Chindelar
Cenário e Figurino: Monique Rodrigues
Iluminação: Daniel Pereira
Direção de Movimento: Priscila Vidca
Assistente de Direção: Bruno Heitor
Produção Executiva: Mônica Varella e Silvana Lima
Direção de Produção: Amanda Lima
Realização: Diboa Produções

Mão na Luva (RJ)

 Foto: divulgação

Para onde levam as discussões?

“Mão na Luva”, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), foi finalizado em 27 de julho de 1966 ainda como “Corpo a Corpo”, que dá nome também a um outro texto do mesmo autor. O título oficial foi dado pelo diretor Aderbal Freire Filho na ocasião da sua primeira montagem, 18 anos depois, quando o texto foi encontrado pela viúva do dramaturgo. O engavetamento tem sentidos possíveis. Vianninha era um autor engajado politicamente, de mesma cepa que Plínio Marcos, e “Mão na Luva” trata, em linhas superficiais, de um casal (“Ele” e “Ela”) que, depois de nove anos, se separa. Além disso, logo depois de tê-lo escrito, Vianninha foi trabalhar na TV Globo e “Lúcio Paulo”, o personagem marido de “Sílvia”, vive justamente o conflito de vender-se ou não para quem não concorda, entregar-se ou não ao sistema. Com uma desordem cronológica em que o presente da discussão se mistura com as lembranças do passado de ambos, homem e mulher trazem à tona as suas inseguranças, os seus medos, as suas frustrações. “Mão na Luva” pode decepcionar quem vai esperando o mesmo tom de “Rasga Coração” e outros textos de cunho ideológico, mas oferece, para os mais atentos, a questão política como pano de fundo para um debate sobre a vida a dois. Essa é, aliás, uma de suas maiores belezas.

Dirigida por Rubens Camelo, que recentemente assinou “Navalha na Carne”, a peça coloca o espectador no mesmo lugar realista naturalista de Plínio Marcos, embora não seja esse o gênero que melhor propicie uma leitura para esta obra de Vianinha. Se Neusa Sueli, Vado e Veludo não possam ser entendidos como livres de sua natureza e responsáveis por seus atos, se o sufocamento lá é essencial para a fruição do ecossistema dramático (o puteiro), aqui a trama, um drama de costumes, é justamente construída por personagens diante de encruzilhadas: separar ou permanecer junto? Vender-se ao sistema ou permanecer fiel às convicções ideológicas? A prejudicial ausência de distanciamento, opção estética de Camelo, faz com que as cores aumentem de tamanho, os animais fiquem mais ferozes, os traumas sejam mais tensos. Nesta encenação de “Mão na Luva”, fazem falta o distanciamento (o público lê os personagens de fora da situação) e a quarta parede (grande número de marcas cênico-narrativas que fazem com que o público sinta-se como voyer e não como testemunha), dois instrumentos necessários para a catarse através da qual a assistência seja mais positiva. Há que se dizer, no entanto, que o espaço da Galeria de Daniel Senise garante uma boa narração. É amplo e cheio de possibilidades espaço-cênicas que foram de forma rica e inteligente bem aproveitadas por Jorge de Tharso Ramos, que assina a direção de arte. Os quadros na parede, o carpete vermelho, os móveis pesados, a luz pontual de Paulo Denizot com fontes específicas, a escolha pelos tons escuros para os figurinos, enfim, tudo é coerente com os personagens e com a narrativa apresentada por eles: a) Sílvia é artista plástica e Lúcio escreve sobre arte; b) a cena acontece na madrugada, enquanto as crianças dormem.

A dinâmica estabelecida por Camelo na composição dos personagens e na sua contracenação é bastante interessante. Os pontos nervosos dos personagens são opostos: enquanto Marta Paret deixa ver uma Sílvia que não consegue relaxar os ombros, está nos pés de Isaac Bernat a insegurança de Lúcio Paulo. O jogo permite, então, pensar que o chão em que o homem pisa é quente na mesma medida em que fervente está o ar que a mulher respira. E ambos clamam por alívio, um descanso que talvez só seja encontrado fora dessa situação. Os movimentos são certeiros: nenhum gesto é irresponsavelmente desperdiçado, o que é bastante positivo, considerando o fato de que está nesses personagens a responsabilidade única por seus destinos. Os olhares exibem um estudo da cena e a relação proxêmica (distância de um ator para o outro) providencia um dos poucos ganhos em relação ao ritmo da encenação.

É, pois, o ritmo o maior de todos os problemas de “Mão na Luva”. Sem uma dosagem de tons, a encenação passa a ter apenas duas intensidades: baixa, quando a conversa é amena, e alta, quando eles brigam. Uma vez que o texto se alonga na sucessão dos momentos conversa-briga, o espectador tem dificuldades de que se encontrar aprofundando as relações percebidas e tem a sua disposição meios de pensar que, nos primeiros vinte minutos, já viu tudo o que tinha para ver. Em outras palavras, se os gritos da primeira discussão são iguais aos da última, qual é a novidade/importância desta em relação a primeira? Se a encenação circular é benéfica no realismo naturalismo de Plínio Marcos, em que a base conceitual é a auto-preservação pela reciclagem das relações, aqui, neste específico texto de Vianninha, a evolução é aspecto positivo que pouco se encontra na encenação proposta por Camelo.

Com belas, boas e elogiáveis interpretações e uma direção de arte valorosa, “Mão na Luva”, como está, só perde por ratificar a tese nem sempre verdadeira de que discussões não levam a nada. E, nesse caso, muito pouco.



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Ficha técnica:
Texto: Oduvaldo Vianna Filho
Elenco: Isaac Bernat e Marta Paret
Direção: Rubens Camelo
Direção de Arte: Jorge de Tharso Ramos
Iluminação: Paulo Denizot
Diretor Assistente: Rodrigo Hinrichsen
Cenotécnicos: Leandro Ribeiro e Carlos Augosto Campos
Contrarregra: Washington Marques
Direção de Produção: Marcelo Cabanas
Produção Executiva: Camila Martins e André Rocha
Assistente de Produção: Marcela Cavalcanti
Produtoras Associadas: Sete Sóis Produções Artísticas e Bateia Cultura
Realização: Sete Sóis Produções