quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cartas para além dos muros (RJ)


Foto: Renato Mangolin

Disforme

Dirigido por Daniel Pereira, “Cartas para além dos muros” é um espetáculo da Cia. Epifania (não confundir com Epifania Companhia de Teatro) e realizado pela Diboa Produções que remete a algumas crônicas de Caio Fernando Abreu. No total são cinco: Carta para além do muro, publicada em (25 de) maio de 1971, no Suplemento Literário de Minas Gerais; Primeira, Segunda e Última carta para além dos muros, em 1994; e Mais uma carta para além dos muros, em dezembro de 1995, essas quatro últimas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo.

Caio tinha 23 anos quando publicou a primeira “carta”, entre as citadas no parágrafo acima. Exatos 23 anos depois, vieram as outras. Desse contexto, uma das investigações mais interessantes da obra do escritor gaúcho pode ser identificar as relações entre a primeira carta (que nunca foi republicada pelo autor em vida e que só foi reaparecer na obra recente Caio em 3D) e as últimas. Da mesma forma, pode interessar (e interessa) a diversos pesquisadores (e leitores) ler essas cartas tendo como “pano de fundo” os acontecimentos reais da vida do seu autor no contexto em que elas foram publicadas. Em agosto de 1994, Caio descobriu que era soropositivo, satisfazendo uma dúvida que ele já tinha há dez anos. As três cartas desse período exibem uma substancial ficcionalização de Caio na situação real em que ele se encontrava: o hospital, a sensação da morte e da sua ligação com os demais artistas que morreram por doenças causadas através do vírus HIV, bem como o sentimento de prisão e de tragédia diante de um fato irrevogável. A última carta acontece dois meses antes da morte de Caio e é um dos seus últimos textos. Então, conclusão minha, identificar a poética de um paciente terminal e de um jovem no início da vida como aproximadas pode fazer ver um Caio raro, um Caio poucas vezes descoberto por quem não tem proximidade com seus textos: o Caio da dúvida, do disfarce, da vida intermediária e alternativa. É notório que a maior contribuição de Caio Fernando Abreu para a literatura brasileira é a sua habilidade de mesclar gêneros narrativos e tipos textuais, explorando desde o início as referências visuais e os diálogos com o cinema que o escritor foi acumulando ao longo do tempo. No início dos anos 70, Caio fugia da homossexualidade. Depois, da Aids. Por fim, da morte. E é justamente essa insegurança, esse desconforto que o fez/faz grande entre os autores brasileiros, bem como riquíssima a sua literatura.

Atualizar Caio para outros ambientes estético-artísticos que não literatura é um grande desafio. Feito de movimentos, o teatro, quando não é a retórica da tragédia grega, não tem habilidade com palavras. O texto pós-dramático, entre todos os gêneros, é o que melhor obtém resultados nesse sentido e é possível vislumbrar algumas intenções de Daniel Pereira em direção a esse objetivo. No entanto, há muito pouco de Caio Fernando Abreu no espetáculo “Cartas para além dos muros”.

A produção tem uma forma que não resiste a si mesma. Em vários dos seus aspectos, como foi dito, é possível notar que houve intenções em vincular a peça ao gênero pós-dramático (Lehmann) ou contemporâneo (Ryngaert). O gênero, não importa o nome que os diferentes autores dêem, consiste em um passo além do drama, isto é, parte do drama, mas avança sobre ele. Enquanto no teatro dramático, vale a convergência estrutural (estruturante) dos diferentes signos, no pós-dramático vale a divergência também estrutural (e estruturante). No segundo, (em linhas superficiais e rápidas) é essencial que o espectador reconheça a sua função enquanto produtor de sentido e seu estado de liberdade para significar do jeito que melhor lhe aprouver. No primeiro, por outro lado, cenários combinam com figurinos que combinam com os personagens que combinam com os atores que fazem movimentos todos coerentes e visivelmente relacionados entre si dispostos a dar um sentido global para o todo da narrativa. O pós-dramático contribui para a exercício da palavra cênica quando faz o tom discutir com o significado da palavra, o que, via de regra, é mais próximo da realidade do que a convergência. O disforme do espetáculo dirigido por Daniel Pereira aparece tanto nos aspectos dramatúrgicos, como dos cênico-plásticos, ora convergindo, ora divergindo.

Em termos de dramaturgia, o espetáculo não se consolida. O espectador que vai ver um espetáculo chamado “Cartas para além dos muros – de Caio Fernando Abreu” não precisa de um jogo de “Era uma vez” para ser contextualizado no tema. Dessa forma, a cena inicial em que um dos personagens/figuras propõe: “Vamos brincar de dizer frases de Caio?!” é desnecessária (e rasteira). Evoluindo para cenas em que as cartas são lidas diante de máquinas de escrever (os melhores momentos, porque os mais inteligentes e corajosos), o espetáculo ganha cor, ganha força, ganha intensidade e é, finalmente, Caio Fernando Abreu. Mas as cenas, por algum motivo obscuro, não receberam investimento ideal da dramaturgia e não se estabelecem. Tão logo se dão a ver, as palavras de Caio são interrompidas pelas vozes dos personagens/figuras que “quebram o clima”, movimentam estranhamente o encontro (pois não há narrativa), trocando o tema de lugar, sem oferecer-lhe um outro para repousar. Cenas entre casais heterossexuais, que soam estranhas no universo alternativo de Caio, são duplas de momentos em que os atores, que se chamam pelo próprio nome, instigam a participação do público através de frases ou palavras escritas. Há ainda a cena, tão deslocada como as outras, em que um dos atores (Ike Santos) narra a sua vinda de São Leopoldo, uma cidade do Rio Grande do Sul (Caio é de Santiago do Boqueirão e viveu em Porto Alegre), para o Rio de Janeiro e suas primeiras impressões na Cidade Maravilhosa. Tudo isso acontece em uma encenação que explora o teatro-ritual: os espectadores ouvem, durante quinze minutos, os atores confraternizando entre si e ouvindo músicas no espaço cênico antes de entrarem e ocuparem os seus lugares, o público é abraçado pelos atores tão logo entregam os seus ingressos e são convidados para escrever uma carta para quem desejarem no final da peça. Sendo a falta de sentido também um sentido e sendo o deslocamento constante também uma forma de localização, falta no espetáculo, em termos do seu discurso no espaço-tempo, uma linha que permita ao espectador reconhecer a obra como um todo.

Com relação aos aspectos cênico-plásticos, a divergência sígnica da dramaturgia é menos fácil de encontrar. A tecnologia se resume a duas máquinas de escrever sob pequenas e pontuais luminárias e os atores vestem roupas que remetem aos anos setenta: cabelo soltos, estampas fortes, tecidos crus, camisas abertas até a metade do peito, sandálias de couro, pés descansos, faixas na cabeça. O espaço II do Teatro Solar Botafogo recebeu pouca direção de arte, ficando ainda mais convergente com os anos de chumbo: livros, rosas vermelhas, textos escritos pregados na parede. O cenário é escuro, o clima é obscuro, ratificando a falsa ideia que os não conhecedores de Caio tem de que sua literatura é depressiva e mórbida.

Assim, diante do exposto, o espetáculo “Cartas para além dos muros” não atualiza (Pierre Levy/Júlio Plaza) a obra de Caio Fernando Abreu, embora se utilize de suas palavras em algumas cenas/eventos soltas/os. Tampouco, há nele a consolidação de uma obra estética independente que parta de ou estruture o universo significativo de Caio. Há, por fim, os atores com seus nomes próprios, suas histórias pessoais e quase nada além de boa vontade que expressa no brilho dos olhos a felicidade de estar em cena.

Nas "cartas para além do(s) muro(s)”, Caio deixa claro a importância que ele dá para o ato de escrever e, sobretudo, o ato de escrever para alguém, o que justifica o tipo textual escolhido: uma carta geralmente tem um destinatário. Do que foi dito sobre o espetáculo “Cartas para além dos muros”, vale ainda encerrar dizendo que é válida a sua intenção de nos fazer sentir saudades de um tempo em que escrevíamos cartas, “cartas gordas como as cantoras líricas”.

*

Ficha técnica:

De: Caio Fernando Abreu
Adaptação/Direção: Daniel Pereira
Direção Musical: Daniel Carneiro
Elenco: Adriana Perim, Bárbara Fernandes, Daniel Carneiro, Giancarlo Di Tommaso, Ike Santos, Leandro Caris e Rômulo Chindelar
Cenário e Figurino: Monique Rodrigues
Iluminação: Daniel Pereira
Direção de Movimento: Priscila Vidca
Assistente de Direção: Bruno Heitor
Produção Executiva: Mônica Varella e Silvana Lima
Direção de Produção: Amanda Lima
Realização: Diboa Produções

Um comentário:

  1. Rodrigo, parabéns pelo texto mas o persoangem de Jean-Jacques Lemêtre, o músico/maestro do Théâtre du Soleil não se chama Jean, chama-se Camille lá acho que você misturou as bolas...

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