sábado, 3 de dezembro de 2011

Estamira - Beira do Mundo (RJ)


Foto: divulgação

A genialidade de Dani Barros

Estamira – Beira do Mundo” é uma peça de teatro. A palavra peça significa Parte e está em oposição à Todo. Se Teatro é o Todo, a Peça é a Parte. Não acho que seja possível medir o talento, mas, no caso de Dani Barros, idealizadora do projeto aqui em questão, há que se identificar as marcas de sua genialidade. Entre as várias Partes que o Teatro oferece, quem se embrenha por essa “mata” cada vez mais sem fim, precisar ser/estar também cada vez mais consciente do poder de suas decisões. O Teatro não tem signos próprios, mas tudo pode ser tornado signo teatral. Recolher aqui e ali os signos dos outros e torná-los, com vistas à construção de uma estrutura, alicerces para um objeto que possa ser chamado de Peça (ou Parte) é tarefa que merece atenção. Em “Estamira – Beira do Mundo”, nenhum signo parece ter sido desperdiçado e suas possíveis articulações são aparentes, vastas e nobres. Ao longo deste texto, pretendo apenas descrever criticamente alguns desses usos.

Inspirada no filme documentário de Marcos Prado “Estamira” (Brasil, 2006, 115min), a peça tem a sua importância pela gênese teatral. Enquanto o cinema é uma articulação de imagens (e sons), o teatro é um objeto estético em que alguém (A) interpreta outro alguém ou algo (B) diante de um terceiro ou quarto alguém (C). No caso da Peça (filme é Peça, cinema é Todo) de Marcos Prado, a personagem Estamira Gomes de Souza (1941-2011) ganha marcas de ficcionalização no tratamento fotográfico, na edição das imagens e na inclusão da trilha sonora. De resto, o que vemos não é ficção. A senhora com problemas mentais, trabalhadora do Jardim Gramacho, o maior aterro sanitário da América Latina (Duque de Caxias/RJ), mãe e avó, realmente existiu, vivendo no mundo além de qualquer narrativa. No caso do monólogo dirigido por Beatriz Sayad e interpretado por Dani Barros, o exercício (rico) de ficção tem possibilidades de ir (e vai) além. Dani Barros não é Estamira Gomes de Souza, o Espaço Rogério Cardoso (Porão) da Casa de Cultura Laura Alvim não é o lixão e nós não somos os urubus que sobrevoam os detritos materiais e humanos (?) que perambulam por ali. E é aqui que iniciam as evidências da genialidade.

O B interpretado por Barros é resultado de três construções (B1, B2 e A2): Estamira Gomes de Souza (a protagonista do documentário que a atriz Dani Barros conheceu e com quem conviveu proximamente nos últimos dias de sua vida), a mãe de Dani Barros e uma versão (relação mãe e filha) da própria Dani. O teatro expresso no monólogo não é realista uma vez que a estrutura está nua: aos espectadores é dado ver a evolução das personagens, o jogo entre elas, os sinais de transformação. O objetivo é claro: se a emoção vier (e ela vem desde os primeiros momentos), será bem vinda, mas terá que conviver com razão inevitavelmente. O espaço é pequeno e organizado em semi-arena, de forma que os espectadores se enxergam quase todo o tempo da encenação. Dani Barros controla o ar condicionado, ajuda o público a escolher o lugar para se sentar, não se distancia de si em favor de sua personagem e nem da personagem em favor de si. A atriz (a preparação de ator é assinada por Georgette Fadel) muda a voz, assume diferentes posturas, maquia as mãos e o corpo, redireciona o olhar, controla o fluxo de sua respiração e usa com excelência o direito de se emocionar. “Estamira – Beira do Mundo” é documentário e é ficção e apenas gênios (há poucos) conseguem mesclar diferentes gêneros cênico-narrativos com tanta habilidade (Nelson Rodrigues unia melodrama com realismo naturalismo, por exemplo).

Não há vídeos, não há trocas de cenário ou de figurino e Dani Barros nem canta, nem dança. Com uso extremamente rico dos recursos simples que a montagem escolheu para se viabilizar, ao espectador está à disposição um magnífico trabalho estético. O figurino de Juliana Nicolay sobrepõe uma capa de sacola plástica por cima de uma camiseta cheia de objetos. A capa nunca sai, mas o espectador, através do recuso, tem permissão para pensar que a peça é apenas Parte (não só do Teatro, mas da vida da personagem), isto é, Estamira (de Barros) existia antes da cena começar e continuará existindo após ela. O cenário de Aurora dos Campos localiza um banco cujo estofamento é em tom terra. Em volta, centenas de sacolas plásticas de várias cores, cuja leveza, cujos sons, cujas texturas acrescenta, ratifica, amplia o universo de possibilidades significativas, oferecendo uma belíssima cena final. A direção musical de Fabiano Krieger e Lucas Marcier age no mesmo sentido, auxiliando na convergência, mas oferecendo outros pontos de ancoragem para possíveis níveis mais aprofundados de leitura. (Um dos grandes momentos da peça é quando a personagem ouve uma canção, um fado brilhantemente interpretado por Soraya Ravenle.). A iluminação de Tomás Ribas é delicada, eficiente e pontual. Assim, do início ao fim dessa Peça que se faz Todo, o Teatro serve como base para a reflexão sobre o homem, esse sim, material básico de que a cena é verdadeiramente feita. As relações humanas e o que nos faz Parte de uma humanidade que é Todo são o assunto dessa Estamira teatral e tão viva como só o teatro pode fazer e do qual não deve se esquecer o espectador, justificando assim a constante presença da racionalidade comentada acima.

“A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar.” – diz a personagem do documentário e da peça. Revelado, pois, está o Teatro em “Estamira – Beira do Mundo”. Aqui, apenas uma pequena parte desse grande espetáculo, está descrito. Isso, com certeza, porque meu olhar é apenas uma única e minúscula Parte. Mas, sincera.

*

Ficha técnica:
Direção e Dramaturgia: Beatriz Sayad
Atuação, Dramaturgia e Idealização: Dani Barros
Luz: Tomás Ribas
Cenário: Aurora dos Campos (Col.: Beatriz Sayad e Dani Barros)
Figurino: Juliana Nicolay
Direção Musical: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Assistente de Direção e Operação de Som: Marina Provenzano
Preparação de Ator: Georgette Fadel
Preparação Vocal: Luciana Oliveira (Fonoaudióloga) e Marina Considera (Canto)
Condicionamento Corporal: Cristina Wenzen
Voz do Fado: Soraya Ravenle
Preparador Vocal – Soraya Ravenle: Felipe Abreu
Assistente de Luz e Operador de Luz: Sandro Lima
Assistente de Cenografia: Camila Cristina
Costureira: Cleide Moreira
Produção: Ana Kutner
Produção Executiva: Gabriela Rocha
Coordenação Geral do Projeto: Dani Barros
Realização: Momoenddas Produções Artísticas

3 comentários:

  1. Como uma branca interpreta uma mulher negra. Há atrizes negras também.
    Que vergonha...

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  2. Conhecem a música Estamira? www.oinovosom.com.br/lucianoterra

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  3. Dani Barros está Genial! Brilhante! Emocionante!
    Não tem vergonha nenhuma uma mulher branca viver Estamira. Tudo isso está para além da cor... Assista e reconsidere, Anônimo.

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