domingo, 22 de janeiro de 2012

Criados em Cativeiro (RJ)

Foto: divulgação

Alcemar Vieira

                Escrito em 1995, “Criados em Cativeiro” (Raised in Captivity) é considerado o segundo melhor texto do americano Nicky Silver, só perdendo para “Pterodáctilos”. No Rio de Janeiro, a produção a partir do mesmo autor de “Os Altruístas”, também em cartaz, desempenha um importante papel: mostrar que um bom texto não é garantia de um bom espetáculo cênico (e vice-versa). Dirigido por Jefferson Miranda, o espetáculo em cartaz no Teatro Oi Futuro reúne em si uma série de problemas, a maioria deles vinculados a questões referentes à direção: uma concepção cenográfica histriônica e atrapalhada, uma trilha sonora dispersante e, o mais importante, trabalhos de interpretação que, nem de longe, fazem ver os méritos do texto do grande autor do humor negro. Mas há exceções felizmente e elas têm nome: Valéria Stefani, Alcemar Vieira e Alonso Zerbinato.
                Não é só porque uma das personagens fura os próprios olhos que, nesse texto, Silver chega mais próximo do gênero trágico como poucas vezes além (Em “Fat Man in Skirts”, há outros flertes do autor nesse sentido). “Criados em cativeiro” é sobre culpa, sobre perdas, sobre arrependimentos e autopunições. Na tragédia, os personagens são vítimas de uma situação que independe de suas ações, embora elas possam trazer-lhes, conforme o destino de cada um, benesses ou terríveis castigos. Jasão foi punido porque se casou com uma bárbara, Antígona foi punida porque enterrou o seu irmão, Édipo foi punido porque nasceu, Agamenon foi punido porque matou um animal de Artemisa, etc. Aqui, no texto contemporâneo, também há punições: Frederico (Sebastian no original) e Bernadette são irmãos gêmeos e, conforme a explicação do fantasma de sua mãe, nasceram a partir de um estupro. A primeira cena acontece no enterro da mãe, que morreu no box do banheiro quando o chuveiro se desprendeu e atingiu a sua cabeça, quando Frederico e Bernadette, depois de anos sem se ver, se encontram. Ela vive assombrada pela sensação de obesidade e ele convive com a solidão que já se estende por onze anos desde que viu o seu namorado falecer vítima da AIDS. Cada novo dia na vida dos gêmeos é mais um dia de castigo e de trágica punição, temas que também estão presentes na construção das demais figuras da dramaturgia: Kip, marido de Bernadette, é um dentista (profissional que trabalha em favor de dentes brancos) que desiste da profissão para pintar quadros (e apenas usa em suas telas tinta branca); Angeli (Hillary no original), terapeuta de Frederico, é abandonada por todos os pacientes, incluindo Frederico, sentindo-se bastante sozinha; Marlon (Dylan) é um assassino que está preso na penitenciária com quem Frederico se corresponde com cada vez mais freqüência. O cativeiro desses personagens consiste, assim, nos seus destinos aprisionantes, estes traçados como que antes de nascerem e contra os quais não se revoltam, embora, talvez, tenham “liberdades condicionais” por conta de seus bons comportamentos: uma criança nasce, um casal se forma, alguém é libertado. Aqui, como em todos os textos de Silver, o ritmo rápido do diálogo bem construído é ponto de partida para a comédia. Como sempre se chama a atenção em análises de textos desse autor, ri-se a valer em suas plateias, saindo, ao final da apresentação, com um gosto amargo na boca. Mas, para o teatro conquistar força similar à literatura, é preciso que a peça seja tão bem escrita como é o texto, o que, infelizmente, não é o caso.
              Christiana Guinle (Bernadette), Márcio Vito (Kip) e Deise Manttuano (Angeli) apresentam construções constrangedoramente ruins. Bastante longe do ritmo da comédia, suas entonações são monótonas, a retórica é fraca, as intenções são frágeis. Protagonistas de cenas longas, os três atores não apresentam um trabalho corporal rígido, fazendo com que, pela ausência de partituras, seja possível pensar que estamos diante de um melodrama ou uma comédia de costumes, o que não é o caso. O cenário de Cristina Novaes, nesse contexto, só ajuda a complicar. O palco transformado em labirinto de escadas, sem propriamente alguma relação visível com Escher, e com degraus coloridos no primeiro ato, sem propriamente alguma relação visível com Mondrian, mostra-se como um difícil obstáculo para os sapatos altos das atrizes, para o jogo de bola (sem bola) de Alonso Zerbinato, para o elenco, de forma geral, que precisa subir e descer toda vez que tem que se movimentar. Com o mesmo resultado negativo, a trilha sonora de Felipe Storino oferece à obra algo que parece ser um relaxante lounge, bastante inconveniente para o tenso diálogo. De forma que, ao invés de haver uma direção, cuja elementar importância é justamente dar liga para as diversas relações sígnicas possíveis pelos diversos signos oriundos todos eles de diferentes sistemas primeiros (não existem signos teatrais, mas signos tornados teatrais), há, aqui, uma dispersão, o que seria bastante positivo se estivéssemos diante de uma obra de teatro pós-dramático (Lehmann), o que não é o caso. Para não dizer que não falei de flores, o final do primeiro ato, com “Sweet Dreams”, é uma acertada, porque rica, opção do diretor.
                Salvos estão os figurinos de Valéria Stefani, pontuais, sóbrios, ilustrativos e contributivos, e as participações de Alonso Zerbinato, que interpreta Marlon e Roger, e de Alcemar Vieira, que dá vida a Frederico. Zerbinato, o ator mais inexperiente do grupo, atinge resultados bastante relevantes nessa produção porque dá a ver marcas que permitem chegar a essa conclusão: concentrado, o ator não constrói suas aparições com movimentos exagerados, mas priva pela discrição, puxando o foco para os detalhes. Disso, é possível reconhecer traços de verossimilhança (verdade) em seu discurso tanto verbal como corporal – o modo como mexe com as mãos e os pés nas cenas do presidiário Marlon e o jeito como mobiliza sensualmente o corpo na contracena com Vieira nas cenas do michê Roger. Por se movimentar bem menos do que os demais, suas aparições não são prejudicadas pelo cenário, mas o desafio dos monólogos é vencido com êxito. Alcemar Vieira é o grande momento da produção, porque seu trabalho de interpretação apresenta-se como, sem reservas, comparável ao preciosismo de Gene Wilder. Vieira faz comédia com os olhos e com as pausas, talvez certo de que o texto é suficiente forte. Suas aparições, as melhores de toda a encenação, fazem rir e permitem que o texto, assim, chegue a sua plenitude: há ironia em seu olhar bem como no desenho de seu gestual, o texto é dito de forma impecável e sua pesada movimentação permite fazer relação com a timidez de seu personagem ou simplesmente sua apatia diante do mundo.
                Da mesma forma que a peça em relação ao texto, na análise de um espetáculo em sucessão a de outro, um mau desempenho agora não é garantia do mesmo insucesso no futuro (e vice-versa). Prova disso são as análises das participações de Alcemar Vieira em “Histórias de Amor Líquido” e “Medida por Medida”, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão concretamente vivas como só o teatro pode oferecer, causando, quem sabe, certa inveja na literatura.

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Ficha Técnica:

Texto: Nicky Silver
Tradução: Cláudia S. Cruz
Direção: Jefferson Miranda
Elenco: Christiana Guinle, Alcemar Vieira, Marcio Vito, Deise Manttuano e Alonso Zerbinato
Cenário: Cristina Novaes
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha Sonora: Felipe Storino
Figurino: Valéria Stefani
Projeto Gráfico: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque – Cubículo
Fotos: Daniela Dacorso
Direção de Produção: Faliny Barros e Francisco Accioly
Produção Executiva: Tereza Durante
Vídeo- projeções: Eduardo Morotó, Renan Brandão e Marcelo Santiago
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Preparação Vocal: Ana Frota
Preparação Corporal: Toni Rodrigues
Preparação para canto: Célio Rentroya
Assistente de direção: Júlia Lund
Direção de Cena: Marco Bay
Operação de Som: Fábio Storino
Operação de Luz: Leopoldo Victor
Projeção: Lucas Canavarro
Cenotecnia: Flávio Roza – Camuflagem Produções
Realização: Expansão 2 – Produções Artísticas

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