terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Deus da Carnificina (RJ)

Foto: Fábio Seixo

Sucesso garantido


                Escrito pela francesa Yasmina Reza (1959) em 2006, “Deus da Carnificina” (Le Dieu Du Carnage) acumula, enquanto texto, prêmios de dramaturgia nas principais capitais do mundo (Infelizmente, o Brasil não valoriza como deveria os seus próprios dramaturgos quanto menos os estrangeiros.). As encenações mais conhecidas deste texto, da mesma forma, têm obtido o mesmo resultado positivo felizmente. Não basta, pois, um bom texto, é preciso que haja bons intérpretes e uma competente ficha técnica. O espetáculo dirigido por Emílio de Mello, brilhante ator de “In On It”, cumpre todos esses requisitos e, por isso, coleciona aplausos do público e da crítica especializada mês após mês desde sua estreia, ocorrida no final de 2010. Com Prêmios APTR e Quem de Melhor Atriz (Júlia Lemmertz) e indicações ao Shell de Melhor Direção e de Melhor Ator (Paulo Betti), ao Quem de Melhor Espetáculo de Comédia e ao APTR de Melhor Iluminação e de Melhor Espetáculo, a peça é, antes de tudo, uma homenagem ao trabalho de interpretação: quatro atores conversam no palco, cujo cenário não se modifica, cujo figurino não tem nada de extraordinário e em que a trilha sonora é extremamente secundária, o que, talvez, desde “Quem tem medo de Virgínia Wolf?", de Edward Albee, o teatro não produz com a mesma qualidade.  Vale dizer, no entanto, que, até mesmo, em todos esses últimos aspectos, é possível identificar excelentes resultados.
                Como em Albee, um casal recebe outro em sua casa. Diferente dele, as duplas regulam de idade, embora tudo leve a crer que são de classes sociais diferentes. Como ele, ao longo da conversa, os personagens se revelam, mostrando traços de si até então escondidos, tornando-se, assim, uma excelente metáfora para o homem contemporâneo, cansado manter-se em tantos discursos. Aí vêm as preciosas contribuições de Flávio Graff e de Marcelo Alonso Neves no que diz respeito ao cenário e à trilha sonora. Graff situa os personagens numa sala construída a base de pilhas de livros. Umas em cima das outras, diferentes edições formam colunas, pilares por onde as quatro figuras caminham. Livro é símbolo de erudição, conhecimento e teoria. Exige-se de um homem letrado mais formalidade, polimento, verniz. Espera-se dele que apresente “boas maneiras”, civilidade, comedimento, parcimônia. A trilha sonora inicial age na construção do mesmo universo significativo, o que, a cada passo na evolução da narrativa, vai se tornando cada vez mais uma crítica à cena. Em outras palavras, se, no início, o que se vê é coerente com a situação, no fim, os livros empilhados são, sem dúvida, uma bela risada da superficialidade de nossas crenças enquanto homens da sociedade moderna, na mesma direção, agindo o rap ouvido pelos espectadores na saída do teatro. Vendo imagens de outros cenários em montagens do mesmo texto em diversos lugares no mundo, é possível reconhecer nelas também vários livros espalhados, sorrindo dos personagens na cena final. Aqui, porém, poder-se-ia dizer que eles gargalham, expressão latina que todos conhecemos (e gostamos de). Concepções que norteiam decisões estéticas como essas, incluindo a mesa em Lego, fonte de vários possíveis significados, são exemplos de inteligência, porque são responsáveis pelo estabelecimento de níveis mais profundos de fruição da obra, o que é elogiável.
                Alan e Anette (Paulo Betti e Julia Lemmertz) são pais de Ferdinando, que é colega de Bruno, esse por sua vez filho de Michel e Verônica (Orã Figueiredo e Deborah Evelyn). Os dois garotos têm onze anos e um agrediu o outro de forma que a “vítima” perdeu dois dentes no golpe. O tema do encontro dos pais é, então, esse: resolver questões relativas ao ocorrido de forma civilizada: tratamento, punição, futuro. Como as palavras são apenas modos como os sentidos são expressos, as confusões começam quando os personagens precisam estabelecer entendimentos comuns para dar continuidade às tratativas. Alan é advogado de uma empresa farmacêutica e passa o tempo envolvido em ligações a respeito do caso da iminente retirada de um dos remédios por conta de efeitos colaterais não previstos (e graves). (O mesmo remédio é usado pela mãe de um dos personagens.) Quanto à Anette, sua esposa, pouco sabemos de início, de forma que somos levados a pensar que se trata de uma tímida dona de casa. Do outro lado, Michel é um vendedor de artigos para casa (objetos hidráulicos, maçanetas, etc...) e Verônica, fascinada por livros de arte, está perto de lançar um livro sobre o Conflito de Darfur, oeste do Sudão. Em meio a uma grande metrópole, a disputa por mostrar mais civilidade no trato com as questões pertinentes aos filhos de ambos casais envolve a construção de um discurso que se relaciona com diferentes posições acerca desde a educação dos filhos e de pensamentos sobre arte e política internacional até do relacionamento entre marido e mulher e das visões dos homens sobre as mulheres e de ambos sobre o casamento e a família. Alan e Anette são estranhos para Michel e Verônica, mas, ao longo da encenação, se reconhecem enquanto homens e mulheres, maridos e esposas, pais e mães. As diferenças culturais ora se apagam, ora se aguçam, enquanto, paulatinamente, o comedimento dá lugar, com a ajuda de cucas, cafés, conhaques e charutos, a uma certa selvageria grotesca com direito a vômitos, a corridas ao banheiro e a lírios destroçados. A comédia de Reza, em substituição ao neo-realismo de Albee, se constrói na precisão dos diálogos, eficientemente ritmados por Emílio de Mello e por seu elenco valoroso, no qual não há quem se destaque em detrimento dos outros, porque todos apresentam resultados excelentes. O tom cortante de Evelyn e a voz alta de Figueiredo são marcas visíveis dos personagens que interpretam, bem como a relutância de Lemmertz e o olhar irônico de Betti, apenas detalhes de construções visivelmente ricas, todas elas pontualmente marcadas pelos figurinos de Marília Carneiro.
                A forma como a encenação estabelece a tensão e apaga as marcas de evolução dos quadros de jeito que seja difícil saber como uma conversa simples evoluiu ao caos é o mais claro sinal de que “Deus da Carnificina” é entretenimento de altíssima qualidade. O público se envolve com a trama de forma desconfiada, mas acaba por se encontrar complemente conquistado pela obra, descobrindo-se, talvez, dentro dela. Sucesso garantido!

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Ficha técnica:

Elenco: Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Orã Figueiredo e Paulo Betti
Texto: Yasmina Reza
Direção: Emílio de Mello
Tradução: Eloisa Ribeiro
Cenografia: Flavio Graff
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Marília Carneiro
Música original e Projeto de Som: Marcelo Alonso Neves
Relações Públicas: Liège Monteiro
Assessoria de Imprensa: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Projeto Gráfico: Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia / Radiográfico
Assistente de direção: Raquel Karro e Leonardo Carvalho
Técnica de Alexander: Valéria Campos
Assistente de figurinos: Paula Carneiro
Assistente de cenografia: Markoz Vieira
Cenotécnico: Humberto Silva, Humberto Júnior e Equipe
Equipe Montagem de Luz: João Neves e Rodrigo Mello
Contra-regra: Luiz Alberto Monteiro
Camareira: Sonia Crioula
Operador de Luz e de Som: João Neves
Administração do Espetáculo: Marcell Barboza
Assistentes de produção: Lúcia Maria da Silva Ferreira e Andrea Aquino
Visagismo: Lindalva Veronês
Efeitos Especiais: Federico Farfan
Uma produção de Cinthya Graber e Nacho Laviaguerre

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