sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os Altruístas (RJ)

 Foto: divulgação

Nicky Silver, Guilherme Weber e Kiko Mascarenhas


                “Os Altruístas” é, antes de ser uma peça teatral, um texto dramático escrito no fim dos anos 90 pelo americano Nicky Silver, o mesmo de “Pterodáctilos” e de “Criados em Cativeiro”, cuja excelência está nos diálogos sarcásticos do seu autor, conhecido como grande e, talvez, maior expoente do humor negro. Uma vez que o texto é literatura e, por isso, paira independente da produção teatral que o atualizar (atual, aqui, não é sinônimo de contemporâneo, mas o oposto de virtual), o espectador não precisa saber nada a respeito de Guilherme Weber, de Mariana Ximenes ou de Kiko Mascarenhas para saber que, por ser de Nicky Silver, vai rir a valer durante a apresentação e sair, ao final, com um gosto amargo na boca. Já disposto no texto, Guilherme Weber, diferente do que fez Felipe Hirsch (ou Marco Nanini?), manteve a estrutura narrativa primeira: Sidney, a personagem interpretada por Mariana Ximenes, continua no palco como é nas páginas: a protagonista. Apesar de Kiko Mascarenhas, que interpreta um personagem coadjuvante, brilhar mais em cena do que Ximenes, é em torno de problema do personagem dela que toda a história “anda”. O resultado final é extremamente positivo a todos. Ao optar por manter uma estrutura confortável, Weber poderia ser acusado por sua obediência ao dramaturgo. Mas, até lá, certamente, já terá tido sucesso suficiente para gozar dos louros que lhes são de direito pelo belíssimo trabalho de direção que se vê aqui.
                Sidney (Mariana Ximenes) assassinou alguém. Desesperada, a personagem, também uma famosa atriz de novelas, procura o seu irmão, o assistente social e homossexual Ronald (Kiko Mascarenhas). Ele acabara de acordar em sua cama ao lado de Lance (Jonathan Haagensen), um michê que parece dar a ele motivos para acreditar no amor verdadeiro (mais um vez). Ao lado dessa trama principal, existe uma outra, que acontece em separado até a metade da apresentação: Vivian (Cybil, no texto de Nicky Silver) (Stella Rabello) acorda ao lado de Tony (Swallow, em Silver) (Miguel Thiré). Ela é uma lésbica politicamente ativa, enquanto ele é namorado de Sidney. Vivian e Ronald estão se preparando para, à tarde, participar de um manifesto por vários direitos sociais, ao qual, até então, Sidney se negara a ir. Lá, eles encontrarão Audrey, namorada de Vivian. Com os já costumeiros monólogos/solilóquios de Silver, os personagens “vomitam” seus sonhos e seus desencantos com a vida, habitando espaços que já tinham sido criados quando eles nasceram e, por isso, se configuram, talvez, como condenação injusta por pecados que eles mentem não ter cometido. Altruísta é o exato oposto de egoísta. Enquanto o segundo denomina aquele que só pensa em si, o primeiro nomeia aquele que só pensa no outro. A maestria de Silver está em não ficar nem em uma definição, nem em outra, promovendo situações em que personagens e seus espectadores bailem na dúvida: pensar no outro também não é pensar em si? Fazer o bem para si, muitas vezes, também não é fazer o bem para o outro? A maestria de Weber, como se já não bastasse a de Silver, está em oferecer um terceiro conceito: o hedonismo, uma busca incessante pelo prazer.
                As construções de Weber agem em sentido à própria satisfação. Os personagens repetem palavras, frases ou expressões até o orgasmo verbal pelo qual buscaram, repetem gestos e ações até esse mesmo lugar, se movimentam por entre três camas e três espelhos (disformes) numa inteligente concepção cenográfica assinada por Daniela Thomas. Estão vestidos em roupas que também sugerem visualmente o prazer: espartilhos (o prazer de estar magro), camisolas e cuecas (o prazer de estar à vontade), roupas em couro (o prazer da dor), vestido de noiva (o prazer de amar e ser amado), terno e gravata (o prazer de ser adequado), sobretudo de pele com palava pichada em rosa atrás (o prazer de chamar a atenção e ser visto), numa também inteligente concepção de figurino de Emília Duncan e Antônio Frajado. A peça é contada também através de uma trilha sonora, assinada por Guilherme Weber, baseada em Brecht: a Balada da Dependência Sexual, Youkali e Alma boa de lugar nenhum, inteligentemente propondo referências ao universo dual (e farsesco) e político do dramaturgo alemão. Ou seja, não há nada a ser desperdiçado na fruição desse espetáculo que se faz importante, ao mesmo tempo e em igual intensidade, em termos de sua forma e de seu conteúdo.
                Mariana Ximenes e Kiko Mascarenhas tem, em quase todos os aspectos, o mesmo excelente desempenho na viabilização de seus personagens irmãos: Sidney e Ronald. Seus corpos estão absolutamente entregues ao ritmo vertiginoso que Weber dá a cena: não linear (cenas absolutamente rápidas, a ponto de não entendermos exatamente o que está sendo dito, o que não é ruim, dá lugares para momentos lentos e cálidos), surpreendente (pausas surgem em meio a avalanches verbais, gestos bruscos aparecem em situações quase contemplativas) e heróico (os momentos finais prenunciam o sacrifício de um “cordeiro”, alguém pagará pelo mal que não fez, livrando-nos-do-pecado-amém). Os gestos de ambos são pontuais, as partituras são bem marcadas e bastante visíveis, as intenções são bem distribuídas. Mas falta em Ximenes o que sobra em Mascarenhas: o excelente uso da voz como recurso imprescindível da retórica macabra de Silver-Weber. Ao olharmos para a interpretação de Ronald de Kiko Mascarenhas, destaca-se a riqueza de seu trabalho na exploração de muitos dos recursos que ele tem disponível: agudos superam os graves, pausas superam a velocidade atroz, a excelente dicção apenas contribui, o verbo se faz carne em termos da força bem medida com que é proferido.
                Jonathan Haagensen surpreende positivamente em cena ao interpretar Lance. O musculoso ator afro-descendente dá vida a um personagem cuja feminilidade é mais infantil do que propriamente feminina. Além disso, há nele a boa dosagem, também encontrada em Ximenes, Mascarenhas e Thiré, que aqui fica como ora criança a brincar, ora homem dono de seus próprios pés. Miguel Thiré, por sua vez, recebeu menos oportunidades para mostrar a virtual exploração de seus recursos artísticos. Duro, o personagem viril da trama aparece como másculo, dosando suas aparições como mais ou menos másculo, sem alterações infelizmente. Junto dele, está Vivian, cuja interpretação de Stella Rabello sofre da mesma falta de oportunidades (ou pobre aproveitamento das mesmas). Tony e Vivian, há que se ser justo, são personagens cuja dificuldade está na fruição uma vez que, só da metade para o fim da apresentação, é que sabemos, de fato, quem são eles e o que fazem ali. Nesse sentido, na efemeridade ontológica do teatro, as cenas iniciais dão lugar às cenas finais, de forma que suas imprecisões lhes marcam não tão positivamente, embora tragam elementos essenciais à trama e ao seu apresentar.
                “Os Altruístas” figura entre os espetáculos imperdíveis não porque é feito a partir de um texto de Nicky Silver ou porque marca a volta aos palcos de Mariana Ximenes, depois de nove anos afastada deles. Seus valores, enquanto obra estética, estão nas dobras, nos cantinhos, nos milímetros aprofundados da interpretação de seus atores, na concretização inteligente das fundamentais concepções, na evolução da trilha sonora e na discreta e, por isso, positiva iluminação de Domingos Quintiliano. Monalisa, afinal, não está no sorriso, mas no rosto e nos cabelos, na paisagem ao fundo e na posição das mãos que apontam para a boca e, aí sim, fazem ver Leonardo Da Vinci. O prazer é tema, é forma e também é resultado.

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Ficha técnica:

Texto: Nicky Silver
Direção e adaptação: Guilherme Weber
Tradução: Erica de Almeida Rego Migon e Ursula de Almeida Rego Migon
Elenco: Mariana Ximenes, Kiko Mascarenhas, Jonathan Haagensen, Miguel Thiré e Stella Rabello
Cenografia: Daniela Thomas
Figurino: Emília Duncan e Antônio Frajado
Iluminação: Domingos Quintiliano
Trilha Sonora: Guilherme Weber
Produção de Objetos e Adereços: Rafael Faustini
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Preparação Vocal: Rose Gonçalves
Visagismo: Marcos Padilha
Design de Som: Raul Teixeira
Edição de Áudio e Intervenção musical: Rodrigo Ramalho
Projeto Gráfico: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque (Cubículo)
Fotografia: Marcelo Krasilcic
Assessoria de Imprensa: Vanessa Cardoso (Factoria Comunicação)
Diretor de Palco: André Boneco
Cenotécnico: Lázaro Ferreira e Gerson Rodrigues
Operador de Som: Doutor Ailton
Operador de Luz: Osvaldo Gazotti
Contra-regra: André Crespo
Confecção da boneca: Miniarte
Efeitos especiais: Martão
Operação de Efeitos Especiais: Michele Caraça
Assistente de Direção: Verônica Prates
Assistente de Cenografia: Mari Alves e Stella Tennembaum
Assistente de Figurino: Bruna Libman
Ilustrações do Cenário: Henrique Martins
Pintura de arte: Vicent Guilmoto
Assistente de Pintura de Arte: Vermelho
Direção de Produção: Francisco Accioly e Roberto Vitorino
Produção Executiva: Tereza Durante
Produzido por: Mariana Ximenes, Francisco Accioly e Roberto Vitorino
Realização: Maxi Produções Artísticas 

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