sábado, 31 de março de 2012

O Casamento (RJ)

Foto: divulgação

Teatro bem feito 

Último romance de Nelson Rodrigues (1912-1980), “O Casamento” foi a primeira direção de João Fonseca e deu a ele o Prêmio Shell de 1997. Quinze anos depois, Fonseca e quase todo o elenco estão de volta ao Festival de Curitiba, lotando o Guairão e seus 2.167 lugares. Em dois atos, o espetáculo da Cia. Os Fodidos Privilegiados apresenta um Nelson Rodrigues da melhor qualidade e consequentemente teatro em alto nível.

A adaptação também assinada por Antônio Abujamra, que dirige a peça junto com João Fonseca, propõe um espetáculo dentro da encruzilhada rodrigueana mais confortável: personagens realistas-naturalistas em uma trama melodramática, meio caminho andado para o sucesso. Na véspera do dia do casamento da filha Glorinha, Sabino recebe a visita do amigo e médico ginecologista de sua filha, o doutor Camarinha. Ele conta que viu o seu assistente e Teófilo, futuro genro de Sabino, aos beijos no seu consultório. Sabino deixará sua filha predileta casar com um homossexual? “Um homem de bem sabe o que deve fazer.” Atordoado pelas três filhas mais velhas, invejosas da mais nova porque ela ganhará do pai um cheque de cinco milhões enquanto elas receberam cada uma bem menos que isso, Sabino sai do trabalho e vai visitar o Monsenhor Bernardo, seu confessor. Encontra-se também com Dona Noêmia e com a própria filha Glorinha. Em flashback, o público conhece as aventuras sexuais de Glorinha com Antônio Carlos, filho do Dr. Camarinha com sua namorada Marinês, pairando no ar a dúvida de que se Glorinha está ou não grávida de Antônio Carlos. O realismo-naturalismo é o melhor jeito de entender esses personagens, porque é o lente que dá conta de libertar moralmente os personagens de qualquer julgamento externo. São os próprios personagens que se afundam em suas culpas, perdidos pelo próprio destino que não deu a eles muitas alternativas. “Para um verdadeiro religioso, nada é pecado!” – diz Sabino. Assim, cheio de contradições, os personagens rodrigueanos vivem suas vidas como selvagens: presos ao instinto, desculpam-se de suas falhas e cometem novos atos de que irão se envergonhar e, assim, ciclicamente. Por estarem presos à própria natureza é que o tom trágico surge nas análises de suas obras: inevitavelmente todos irão ser punidos. No caso de “O Casamento”, Antônio Carlos morre, Sabino é preso, Noêmia é demitida, e por aí vai. Como se não bastasse tanto preciosismo, o maior dramaturgo da literatura brasileira avança, colocando todos esses personagens em um roteiro melodramático: quadros bem definidos, conflito aparente, desenvolvimento aparente, ápice aparente, desfecho apoteótico. Abujamra e Fonseca, não satisfeitos, vão além e, também, por isso receberam já e para adiante os merecidos elogios: dão ao todo uma pitada de ritmo de vaudeville – vertiginosamente rápido, há que se ter fôlego para acompanhar a trama, fruir o espetáculo que se divide em dois atos.

Com vinte e três pessoas em cena, não se encontram más atuações. Ao contrário, entre os ótimos trabalhos, há cinco excelentes destaques. Com forte inspiração na farsa, o melodrama é apresentado em ritmo rápido, de forma que os personagens se mostram através de partituras muito bem definidas. Corpo, expressão facial, discurso oral e movimentação: tudo é muito bem desenhado. Guta Stresser, que interpreta Glorinha, caminha esticando a ponta dos pés, apresenta uma voz sensualmente infantilizada e expressões faciais que lembram à Enamorada da Commedia Del’Arte. Com voz de barítono (como descrito por Nelson Rodrigues), o Monsenhor Bernardo, de Roberto Lobo, tem uma dicção perfeita, uma entonação pulsante e uma participação, apesar de pequena, bastante marcante. Thelmo Fernandes dá vida ao Dr. Caramarinha com bastante força, presença cênica e gestos muito pontuais. Dani Barros deixa ver uma Marinês cheia de diagonais, com movimentos precisos, voz chorosa e muita graça. João Fonseca, o protagonista Sabino, constrói uma figura dúbia, que traz surpresas ao longo da peça, apresentando-se aos poucos até o momento final. De um modo geral, o resultado assemelha-se ao de um baile, em que cada cena é uma música e, portanto, tem uma coreografia específica. Ainda na inspiração da farsa, em todas as cenas, além dos atores participantes, há as figuras ouvintes. No fundo do palco, sentados nas cadeiras com as palmas sobre os joelhos, quase sempre há atores que assistem ao espetáculo como se dessem o “acompanhamento” para os solos que acontecem sob a luz. Nada relaxadas, essas “figuras”, que esperam para entrar em cena, levantam-se quando entra o Monsenhor, al´m de produzir outros quadros que são vistos atrás do plano principal.

“O Casamento” é um espetáculo para ser fruído cuidadosamente, porque sua dramaturgia é cheia de detalhes. A trilha sonora de André Abujamra é, como todos os elementos em particular, um espetáculo a parte. Nela estão músicas conhecidas do grande público, mas alteradas, mexidas, dispostas a produzir reações próprias à direção para a qual todos os sentidos estão virados. Alguns inserts são positivamente protagonistas das gargalhadas que a plateia solta e a trilha do personagem Assistente/Coveiro/Policial é uma delas. No amplo cenário vermelho proposto por Nello Marrese, há a crítica social (o vermelho), a dúvida (a faca com bigode na rotunda) e a sugestão (o fundo recortado com barbantes, a imagem de cacos, de algo que se quebrou). A iluminação de Daniela Sanchez agrega valor ao trabalho de Marrese, construindo os planos, isolando os momentos, particularizando o universo sempre disposto aos olhos do espectador. Os figurinos de Filomena Mancuso não perdem tempo em construir o quadro semântico do espetáculo: fraques e vestidos de noiva são o vocabulário visual da peça e apresentam como um de seus melhores momentos os trajes das gêmeas xifópagas e de seus maridos também unidos.

Em cena, a movimentação é simétrica, mas não apolínea. Fonseca espalha, mas não desequilibra. A subversão se vê nos detalhes: no como as relações proxêmicas se estabelecem (a distância entre um ator e o outro) de forma significativamente enriquecedoras, no como as cadeiras do cenário aparecem, somem ou se modificam discreta e positivamente, no como a evolução das sequências parece natural, sendo planejada nos mínimos detalhes. Há que dizer, no entanto, que o ritmo cai um pouco no segundo ato, embora seja positivamente recuperado no final. O personagem Xavier (Claudio Tizo) ganha uma cena com Noêmia (Rose Abdallah), em que se finalizam as suas participações. Uma vez coadjuvantes, a impressão é de que eles ganham mais importância do que deveriam no plano de ascendência dramática, fazendo com que a parada pareça ter pouca utilidade na narrativa. Mas é, na sequência próxima, que o público entenderá o porquê desse intervalo. Surge, então, o desfecho que será como quem conhece e gosta de Nelson Rodrigues espera e agradará quem saiu de casa para ver um bom teatro.

*

Ficha técnica:

Realização: Os Fodidos Privilegiados | Direção e Adaptação: Antonio Abujamra e João Fonseca | Direção de Produção: Renata Blasi e Ana Paula Abreu | Cenários e Figurinos Originais: Charles Möeller | Cenário Remontagem: Nello Marrese | Figurino Remontagem: Filomena Mancuzo | Iluminação Original: Rodrigo Ziokowsky | Iluminação Remontagem: Daniela Sanchez | Direção de Movimentos: Johayne Hildefonso| Caracterização: Áldice Lopes | Trilha Sonora: André Abujamra | Assistente de Direção: Paula Sandroni |Elenco: Alexandre Contini, Alexandre Pinheiro, Cláudio Tizo, Cristina Mayrink, Dani Barros, Daniela Olivert, Denise Sant'Anna, Filomena Mancuzo, Guta Stresser, Humberto Câmara Netto, Isabelle Cabral, Isley Clare, João Fonseca, Kátia Sassen, Lincoln Oliveira, Márcia Marques, Marta Guedes, Nello Marrese, Roberto Lobo, Rose Abdallah, Thelmo Fernandes | Classificação: 16 anos | Duração: 100 minutos

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!