quinta-feira, 29 de março de 2012

O idiota - uma novela teatral (SP)

Foto: Renato Mangolin

Teatro para gente grande

              Um espetáculo que se estende por sete horas, ainda que tenha dois intervalos de trinta minutos cada um, e ainda que faça os espectadores passear por vários cenários, não é para qualquer um. Há que se ser adulto o suficiente para ler a obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e entender a importância vital das cenas longas, do período de aproximação com os personagens, da convivência com a história. “O idiota”, publicado em 1869, trata da história de um jovem, de nome Príncipe Michkin, que retorna a São Petesburgo, depois de um longo período de reclusão na Suíça, para onde ele foi a fim de curar-se de idiotia (o nome antigo de epilepsia). A situação proposta pelo autor russo, o maior expoente do gênero realismo psicológico, ao qual o nosso Machado de Assis deve muito, faz com que a extrema bondade e o caráter puro do protagonista sejam os males responsáveis por vários acontecimentos. “O idiota” não é uma novela em termos de seu conteúdo, porque não são nas ações que está o foco da linguagem, mas na reflexão, nas ponderações, na investigação do universo humano ao qual estão os leitores absortos. Próprio da literatura, esse exercício é perigoso e pode ser fatal a uma encenação irresponsável. Felizmente, esse não é o caso de “O idiota – uma novela teatral”, terceira produção da Mundana Companhia, a partir de projeto idealizado pelo ator Aury Porto. Aqui ações e reflexões dividem o mesmo lugar no tempo e no espaço e, embora fuja da medida em certo momento, produz, sem dúvida, um excelente espetáculo teatral.

Com roteiro de Porto, que interpreta Míchkin, a premiada diretora Cibele Forjaz muda o foco de Dostoiévski, colocando-se nem acima, nem abaixo dele, mas ao seu lado. A partir de uma galeria de cenas, a adaptação expõe os diferentes personagens de forma quase horizontal. Levado para dentro dos universos específicos, ao espectador é possível identificar com muita clareza os personagens protagonistas de cada sequência bem como os seus coadjuvantes. O resultado é que, mesmo cientes de que é a chegada de Míchkin que mobiliza tudo o que acontece desde a primeira até a última cena, estão bastante expostas o contexto psicológico de vários personagens e não de apenas um. Se em Dostoiévski (um romance é lido por um leitor de cada vez), tudo é visto a partir do olhar do Príncipe, em Porto/Forjaz (o convívio teatral propõe um grupo de várias pessoas fruindo a peça numa só apresentação), é possível pensar que o que vemos é o jeito particular de cada personagem ver a si próprio. A conseqüência é abertura do leque de possibilidades, o arrastamento do tempo, a democratização da figura do herói. Esse é o tom novelesco de que fala Forjaz no programa da peça: situar, na ultrapassagem das cenas, o movimento que não falta, mas é escasso no clássico literário. E ela faz isso bem no primeiro e no segundo ato. A questão negativa do terceiro ato não é estética, mas da ordem humana. Depois de cinco horas, o cansaço vem. Algumas cenas, como a do carnaval e a do brinquedo, por exemplo, estariam absolutamente perfeitas se estivessem na abertura da peça. Ao final, o espectador anseia por finalizações, ele quer saber como a história termina. A conseqüência negativa, mas não prejudicial (que fique bem claro), é que o belo discurso de Míchkin, que antecede a ação do vaso chinês não é fruído pela assistência com a mesma presteza com que ele é proferido pelo ator. A redução de uma hora e meia seria, afinal, um ganho para a proposta cheia de méritos.

Outra questão importante da atualização proposta por Porto/Forjaz ao romance é a visão mística dos personagens. Incensos, velas, imagens sacras, a encenação é recheada de ganchos que podem fazer relacionar a peça a esse universo simbólico. Míchkin, talvez, possa ser visto como um deus que, feito homem, veio a São Petersburgo purgar o mal, ser exemplo, cordeiro a ser imolado. Mas é também mitologia, entidade e fervor, pois aguça os sentidos, alimentando não só a mente e o espírito, mas também o corpo. Corpos nus, cenas de sexo, quarto de dormir: as sequências produzem olhares diversos sobre o resultado da investigação feita pelo grupo na construção do espetáculo. Palavras e frases são signos literários, mas o teatro não tem signos que sejam seus, pois é próprio da arte cênica teatralizar signos de outras origens. É inteligente todo o espetáculo que constrói sua profundidade a partir de diferentes dosagens na exposição de suas referências. O dinheiro que suja as mãos de Gánia e a dúvida sobre Ser ou Não Ser, iconoclastia, ritos religiosos e frases musicais, entre vários outros possíveis links, são pegadas que podem registrar os caminhos feitos na elaboração da peça e que agora estão disponíveis a quem acessá-la.

O elenco apresenta excelentes trabalhos de interpretação. Aury Porto traz uma exitosa interpretação do jovem Míchkin, parecendo até mais novo que o que rapaz de vinte e sete anos idealizado por Dostoiévski. Sua graça, no entanto, não está apenas nisso, mas principalmente na forma como ele conduz a voz: o Príncipe traz o mesmo tom de fala ao longo de todas as cenas, fazendo pensar que permanece ingênuo e puro mesmo após tantas tentações. Seu falar é suave, suas palavras são acolhedoras, em tudo estabelecendo coerência e coesão com o que o seu corpo manifesta: pés para dentro, mãos incertas, sorriso disponível e olhos cálidos. Sylvia Prado, que dá vida a Lisavieta, é responsável pelos grandes momentos da encenação em termos de interpretação, embora todos os seus colegas tenham igualmente os seus bons momentos. Bastante forte, sua presença cênica é absolutamente abrangente, de forma que o foco caia sobre ela quase que naturalmente. Seus braços conduzem o tempo e movimentam o olhar do espectador, seu discurso oral é bem dosado e se apresenta em diferentes níveis, sua tez é constante, segura, firme. Com ótimos momentos musicais, é nessa personagem que parece que se encontrar o pilar de sustentação de toda a história. Luah Guimarãez apresenta um discurso ingênuo e infantil com gestos bruscos e decisões livres na interpretação de Nastássia. Os resultados excelentes se assemelham positivamente ao seu oposto: o personagem Aglaia, interpretado por Beatriz Morelli. Vista a partir da mãe, a voz fina e as palavras cortantes parecem se sobrepor a perfeição dos gestos e a certeza de seus movimentos. Na cena do brinquedo, em que a relação proxêmica (um e outro ator a partir das proximidades e distâncias geográficas) é extremamente nítida, é quando vemos o auge de suas equiparidades. Similar, em qualidade e em força, à relação entre Nastássia e Aglaia, é possível ver os trabalhos de Sergio Siviero e de Silvio Restiffe, Ragôjan e Gánia. Enquanto um é extremamente forte o outro é extremamente fraco, o que é o amor para um é o dinheiro para o outro, um mata o outro quer matar-se, um amedronta e o outro teme, um manda e o outro obedece. Nos dois é comum apenas o excelente resultado estético: Siviero caminha pesado e gesticula pouco, Restiffe fala com todas as sílabas e olha sempre em diagonal. Luís Mármora e Freddy Allan são os responsáveis pelas situações cômicas da peça, embora tenham os seus momentos mais dramáticos. Com participações ágeis e de grande carisma, ao público estão disponívelis ótimos trabalhos de interpretação em vários detalhes: a afetuosidade quase sensual de Kólia, o caráter farsesco do General e a afetação de Tótski.

Cenários (Laura Vinci), figurinos (Joana Porto), trilhas musicais (Otávio Ortega) e desenhos de iluminação (Alessandra Domingues) são potentes no sentido de fazer com que pouco pareça muito, são inteligentes no sentido de fazer pensar ao mesmo tempo que sentir e são belos no sentido de, enquanto harmônicos, estabelecerem e providenciarem a coesão que se espera de um trabalho que tenha início, meio e fim. Com tantos personagens e um enredo cheio de voltas, está na manutenção conceptiva dos detalhes técnicos a responsabilidade de manter o espectador preso a uma linha una. Em tudo, o mérito é visível.

Prêmio especial da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), indicações e troféus Bravo,Cooperativa Paulista de Teatro, Shell e Questão de Crítica, “O idiota- uma novela teatral” é uma resposta soberba ao lituano “O idiota”, de Eimuntas Nekrósius. Vale esperar para ver deles uma adaptação de Jorge Amado.

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Ficha técnica:

Realização e produção: mundana companhia | Direção: Cibele Forjaz | Autor: Fiódor Dostoievski | Tradução: Paulo Bezerra | Roteiro Adaptado: Aury Porto | Colaboração Dramatúrgica: Vadim Nikitin, Luah Guimarãez e Cibele Forjaz | Consultoria teórica: Elena Vássina | Assistência de Direção: Ivan Andrade | Elenco: Aury Porto, Beatriz Morelli, Fredy Allan, Luah Guimarãez, Luís Mármora, Otávio Ortega, Sergio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia Prado e Vanderlei Bernardino | Direção musical, trilha sonora e música ao vivo: Otávio Ortega | Operação de som e música ao vivo: Ivan Garro | Cenografia: Laura Vinci | Assistência de cenografia e objetos: Tatiana Tatit, Marília Teixeira e Julia Moraes | Contra-regragem: Dani Colazante e Jamile Valente | Figurinos: Joana Porto | Assistência de figurino: Bia Rivato | Camareira: Chris Basílio | Luz: Alessandra Domingues | Assistência e operação de luz e projeção: Luana Gouveia | Direção de movimento: Lu Favoreto | Direção vocal e interpretativa: Lucia Gayotto | Direção de produção: Marlene Salgado | Assistência de produção: Iza Marie Miceli | Classificação: 14 anos | Duração: 360 minutos c/2 intervalos.

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