sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cabaret (SP)

Foto: André Muzeli

Mais de Apolo do que de Dionísio, um excelente Cabaret


                O musical “Cabaret” estreou em 1966 na Broadway com texto de Joe Masteroff, música de John Kander e letras de Fred Ebb, os mesmos de “Chicago” e de “O Beijo da Mulher Aranha”. É a adaptação da peça “I am a camera”, de 1951, de John Van Druten, que, por sua vez, é a adaptação do filme “Goodbye to Berlin”, de 1931, de Christopher Isherwood. Dirigido por Harold Prince (que já tinha dirigido, entre vários outros musicais, “West Side Story” e “Fiddler on the roof”) e coreografado por Ron Field, o espetáculo trazia no elenco Jil Haworth (Sally) e Joel Grey (MC) nos papéis principais e foi indicado ao Tony em 11 categorias, sendo vencedor em 8, incluindo a de Melhor Musical e a de Melhor Ator (Joel Grey). Em 1972, houve a versão cinematográfica, essa dirigida por Bob Fosse, com Liza Minelli (Sally) e, de novo, Joel Grey (MC) como protagonistas. Indicado a dez Oscars, ganhou novamente 8 troféus, incluindo Melhor Diretor, Melhor Atriz (Minelli) e Melhor Ator (Grey).
                A história agrada quem gosta de musicais, mas pode também agradar quem não é fã do gênero. Ao mesmo tempo que tem os ontológicos números musicais, apresenta uma dramaturgia amarrada, cheia de conflitos e com personagens ricos em suas contradições. A história começa com o Mestre de Cerimônias (MC) abrindo a noite no cabaret Kit Kat Klub. É réveillon de 1931 para 1932 e Berlin vive os últimos dias antes da dominação nazista. Confluem três acontecimentos principais: o jovem escritor americano Cliff Bradshaw desembarca na capital alemã para tentar, mais uma vez, encontrar inspiração para escrever um romance; a dançarina inglesa Sally Bowles, namorada de Max, dono do Kit Kat Klub é demitida e não tem onde dormir; e o alemão Ernest Ludwig precisa de um professor de inglês e,também, de alguém que o ajude em uma empreitada de “dinheiro fácil”, uma transação que envolve uma maleta que viajará entre Paris e Berlin. Há, assim, dois tempos concomitantes: de um lado, a noite de réveillon no cabaret e, de outro, a passagem do ano de 1932, o ano em que o Partido Nacional Socialista venceu as eleições na Alemanha e se tornou o governo. No mesmo sentido, há dois lugares: o Kit Kat Klub, uma clara alusão ao KKK, Klu Klux Klan, uma organização americana de extrema direita, e a pensão da Fräulein Schneider, onde Bradshaw e Bowles morarão. Tudo o que acontece entre Bradshaw-Bowles-Ludwig recebe uma leitura alternativa (leia-se cômica, maliciosa, irônica) nas canções do show apresentado pelo MC. A noite evolui e a bebida embriaga no clube assim como as relações se aprofundam na pensão. O amor e os sonhos se encontram com a falta de dinheiro, a mudança política na Alemanha e o preconceito. Ao final, nasce um novo dia, um novo ano, uma nova Alemanha e um novo mundo. Para isso, algo e/ou alguém terá que morrer.
                As belíssimas canções têm a sua versão brasileira assinada por Miguel Falabella que vence plenamente o destino assustador de passar para o português as letras originais em inglês. Não menos difícil, mas também plenamente vencido é o desafio de adaptar as músicas compostas para grandes orquestras internacionais para a realidade brasileira de 14 músicos que essa produção nacional dispõe. Marconi Araújo colocou a orquestra sobre o palco e dirige musicalmente a peça de forma a apresentar uma produção que, dentro das possibilidades técnicas, atinge ganhos por nada dever às produções maiores do mesmo espetáculo. Liderada por Claudia Raia, que interpreta Sally Bowles, o elenco é formado por um grupo de 21 atores/bailarinos, entre eles, Jarbas Homem de Mello (MC), Guilherme Magon (Clifford Bradshaw), Júlio Mancini (Ernest Ludwig), Liane Maya (Fräulein Schneider), Marcos Tumura (Herr Schulz) e Kátia Barros (Fräulein Kost). De um modo geral, todos apresentam trabalhos positivos, sem grandes destaques, com duas exceções: são bastante positivas as participações de Maya e, claro, de Raia.
                A única coisa em negativo que pode ser apontada no trabalho de Claudia Raia em “Cabaret” é uma inexplicável segunda pele que ela veste em um dos quadros. Com um corpo absolutamente em bela forma, a atriz brilha como Sally Bowles em termos de interpretação, de dança e de música. Sua interpretação deixa ver uma mulher forte, mas com senso de humor, livre, mas disposta a se apaixonar. Co-produtora do espetáculo, junto com Sandro Chaim, seu profissionalismo se mostra na relação com os atores com que contracena: Claudia Raia respeita o trabalho alheio, não puxando foco para si nos momentos indevidos, o que é prova de sua generosidade. Quando é a sua vez de protagonizar, ela dosa inteligentemente suas pausas, suas entonações de voz e seus movimentos pontuais (dedos que se esticam, olhares que apontam, ombros que direcionam) de forma a prender a atenção do público, direcionar o sentido, propor significados. Os encerramentos dos dois atos marcam o coroamento do espetáculo e também o seu próprio, resultado de um intenso trabalho que, então, serve para o deleite do público. Em papel consideravelmente pequeno, Liane Maya surpreende positivamente em seu solo musical como Fräulein Schneider. Também, nas demais cenas, percebem-se marcas de profundidade que ajudam a estabelecer o universo conflitante de “Cabaret”: o tom pesado do seu discurso, o olhar baixo, os ombros duros. Magon, Mancini, Tumura e Barros acrescentam, apesar de não engrandecer, adequados dentro das figuras que lhes couberam, dirigidos por José Possi Neto harmonicamente.
                A coreografia de Alonso Barros é responsável pelo preciosismo do movimento cênico de “Cabaret”, um dos elementos que faz “encher os olhos” de quem lhe assiste, perder a respiração. Em cena, os 14 artistas sabem de onde saem e para onde vão sem erros ou incertezas, os gestos são sintonizados, braços, pernas e feições agem em parceria com a música sem parecer ficar fora de ritmo um segundo sequer. Exibindo um perfeito estudo do corpo humano, é possível ver as partes superiores independente das inferiores, mãos, braços e antebraços em equilíbrio paralelo, ombros e troncos concomitantes e não conseqüentes, nada além de um esperado para um coreógrafo tão experiente e premiado como é o caso de Barros. O bailarino/dançarino de “Cabaret”, além de ser um todo harmônico, faz o baile ser, sim, uma bela união de partes harmônicas. O resultado é uma vibrante evolução que parte da primeira cena e atinge o seu ápice no fim, reproduzindo na forma o que o conteúdo dramático prevê. No entanto, nem sempre, as conseqüências são marcas de riqueza significativa, isto é, nem todos os elementos da narrativa trazem ganhos com essa opção estética. É da forma como foi concebido o personagem MC que se está se falando agora.
                Com formas tão rígidas, gestos tão precisos e entonações tão frias, MC não tem ironia, não constrói sensualidade, não faz graça. Interpretado pelo comportado ator Jarbas Homem de Mello, na hora de dizer o texto, as frases saem ríspidas, sem segundas intenções, sem níveis escondidos, sem metáforas, o que, em obediência ao tratamento dado, não é uma falha do ator, indicado ao Prêmio Shell por sua atuação nesse espetáculo, esse um profissional que é parte de um todo estético e não o próprio todo estético. O espetáculo “Cabaret”, nesse quesito, mostra, assim, uma concepção mais erótica e menos sensual, mais crítica e menos irônica, mas séria e menos leve, mais fria e menos emocionante, mais apolínea e menos dionisíaca. Os figurinos das Kit Kat Girls e dos Kit Kat Boys ratificam essa ideia quando expõem o corpo, propõe jogos eróticos (leader sex, por exemplo), deixam claro o que poderia estar apenas na intenção. Agem, dessa forma, em contrário com os diálogos e, para citar, é possível lembrar de duas falas: a) Quando MC apresenta as “meninas”, ele anuncia: “Elas são virgens!”; b) A primeira fala de Sally Bowles é: “Minha mãe acha que eu estou em um convento.” Desobedientes, as perucas coloridas e a maquiagem, felizmente, concordam com o texto e não são exemplos desse aspecto da concepção que, em todos os outros elementos, se manifesta de forma bastante positiva como já se disse.
                Não sendo um espetáculo superficial, a crítica vem em “Cabaret” como um passo além da catarse, essa que, no caso desse gênero, parte da verossimilhança. A beleza dos cenários de Chris e Nilton Aizner e dos figurinos de Fábio Namatame se vê pelos detalhes mínimos presentes de forma a não deixar dúvidas e estabelecer definitivamente o convite para o “embarque” na narrativa. Todo em art déco, a proposta constrói o subúrbio de Berlin no início dos anos 30, lugar de gente sem posses e, por isso, que valoriza tanto os sonhos de um futuro, no mínimo, melhor. As roupas simples e já um tanto quanto defasadas dão um tom de humanidade para as figuras que habitam esse universo: um escritor sem romances, um traficante, prostitutas, uma dona de pensão. Da mesma forma, os ambientes mais escuros e tradicionais marcam a opção pelo certo e barato, em detrimento de móveis, papeis de parede e lustres mais modernos. Teatralmente falando, as entradas e saídas agem em sintonia com o baile e com a música, harmonizam e engrandecem. Na mesma direção, a iluminação de Paulo Cesar Medeiros realça os momentos, concentra a atenção, conta a história sem causar dificuldades para quem a ouve, produzindo assim o ambiente ideal para a fruição de uma peça desse gênero.
                “Cabaret” estreia no Rio de Janeiro vindo de São Paulo e se torna um dos grandes orgulhos da malha cênica que temos atualmente em cartaz aqui como já foi e é pelo mundo todo onde houve outras produções do mesmo espetáculo. Entre todos os diferenciais, aqui temos um bastante especial. No Brasil, “Cabaret” tem uma segunda história: a de uma menina que, por causa de suas pernas longas e seus 1,80cm de altura, não se tornou uma grande bailarina do repertório clássico, mas, sem dúvida, atingiu por seus próprios méritos o grau máximo de ser uma das maiores e melhores estrelas do teatro musical.

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Ficha técnica:
Texto: Joe Masteroff
Músicas: John Kander
Letras: Fred Ebb
Versão Brasileira: Miguel Falabella
Direção de Coreografia: Alonso Barros
Direção Musical e Vocal: Marconi Araújo
Direção Geral: José Possi Neto
Produção Geral: Sandro Chaim
Elenco: Claudia Raia como Sally Bowles e Jarbas Homem de Melo como MC.
Guilherme Magon, Julio Mancini, Katia Barros, Marcos Tumura e Liane Maya,
Alberto Goya, Alessandra Dimitriou, Carol Costa, Clara Camargo, Daniel Monteiro, Hellen de Castro, Keka Santos,  Luana Zenun,  Mateus Ribeiro, Renata Bras, Renato Bellini, Rodrigo Negrini, Rodrigo Vicente e Tomas Quaresma.
Cenário: Chris Aizner e Nilton Aizner
Cenógrafos Associados: Renato Theoblado e Roberto Rolnik
Figurino: Fábio Namatame
Iluminação: Paulo César Medeiros
Design de Som: Tocko Michelazzo
Visagismo: Henrique Mello e Robin Garcia
Programação Visual: Fuego
Realização: COARTE, Raia Produções e Chaim Produções
Patrocínio Máster: Banco BVA
Copatrocínio: Sul América Seguros e Previdência

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