segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mangiare (RJ)

Foto: Guito Moreto

A excelência do trash e da relação convivial

                “Mangiare” estreou em 2007 e retorna agora à cena teatral carioca em função da comemoração dos dez anos do Grupo Pedras, ao lado dos espetáculos “Restin” e “O Reino do Mar sem fim”. Consiste em um espetáculo teatral que tem como ponto de partida a realização de um jantar, a celebração do ato de sentar à mesa e de experimentar o grande prazer que a comida desperta através de seus sabores e seus aromas. Dirigido por Fabiana de Mello e Souza, três atrizes-cozinheiras e um grupo de músicos recebem setenta espectadores com uma refeição completa: entrada, prato principal e sobremesa. Em cena, está latente o conceito do teatro como uma relação convivial e palpável a estética do trash visível em vários elementos cênicos.
                Para o pesquisador argentino Jorge Dubatti (1963), o acontecimento teatral depende de três sub- acontecimentos, sendo que entre os três existe uma interdependência: o segundo depende do primeiro e o terceiro depende dos outros dois. São eles: a) acontecimento convivial, que trata do encontro entre os corpos das diferentes pessoas que o teatro implica; b) o acontecimento poético, ou seja, a própria encenação, a poética; e c) o acontecimento de expectação, ou o fato de existirem pessoas, naquele território, que assistirão à poética. Ou seja, para o teórico, muito mais do que a narração, a constituição dos elementos estéticos que possibilitam a fruição ou os mecanismos de articulação dos elementos cênicos, o encontro entre as pessoas é o elemento mais importante do teatro sem o qual nada acontece. E é nesse sentido que todas as opções estéticas visíveis em “Mangiare” agem. Ao receber o público, os atores oferecem um cenário confortável composto de três grandes mesas decoradas à moda italiana, com talheres e pratos, toalhas e guardanapos, lustres e taças, ofertando, na entrada, um pedaço de canela ou um ramo de alecrim. Nas extremidades, há duas mesas em que as cenas acontecerão, isto é, o lugar destinado ao acontecimento poético, à sua construção. Músicos a postos, vê-se três personagens: uma mãe e duas filhas a preparar o primeiro prato, uma Salada Morna à Moda de Bali (Gadô Gadô).
             O trash é um gênero estético, essencialmente fílmico (talvez Ed Wood e Pedro Almodóvar sejam os referenciais mais importantes), que nasceu por uma necessidade: o baixíssimo orçamento. Hoje o reaproveitamento de roupas e de objetos, a releitura de frases e de expressões, o apego ao pop, a negação do cult e a valorização da TV norteiam produções de alto a adequado orçamento, fazendo da estética uma opção significativa, o que é, sem dúvida, um enorme ganho para as artes. Quando se vê toalhas quadriculadas, taças de molho de tomate e largos painéis plásticos com vegetais em cores vibrantes, percebe-se o espetáculo como banhado em fontes que podem ser desde referências à cultura italiana, como vínculos ao brega, à cultura popular, à cozinha de todo dia. Ao mesmo tempo, as interpretações e os diálogos aproximam a obra das telenovelas latinas: duas irmãs que brigam e uma mãe que fica entre elas. O evoluir das cenas, a preparação de um Nhoque de Inhame temperado com Curry picante e, ao fim, as sobremesas, reforça a mistura de possibilidades, de cores, de tons, fazendo conviver desde personagens clownescos até diálogos realistas com a plateia, em que, a meio tom, as figuras contam histórias sobre chás, temperos, pratos. A fruição acontece quase em paralelo à distribuição da comida, em que as travessas e as garrafas passam de mão em mão até servir a todos, numa metáfora da própria fruição teatral, em que cada um do público pega para si uma “peça do teatro”, compartilhando o teatro com os demais convivas. Além dos excelentes figurinos de Flávio Souza, o teatro no seu uso mais corriqueiro se encontra nos detalhes do cenário de Marcos Feio e de Fabianna de Mello e Souza e nos ambientes criados pela iluminação de Luiz André Alvim. Todos esses elementos, com o auxílio da direção musical de Leandro Castilho, colaboram na criação do clima festivo que se vivencia nesse misto de palco e plateia em que o espetáculo, nas palavras de Dubatti, acontece.
                “Mangiare” não deixa de propor a crítica, embora não a estabeleça, o que é positivo. Com a ajuda de uma projeção em vídeo, o espetáculo apresenta cenas de sacrifício de animais, questionando o tema, apresentando um contraponto que, felizmente, não marca um ponto final, o que será feito por cada um que assistiu à apresentação, que só termina minutos depois, com a despedida. Desde os ancestrais das cavernas, em que, diante de uma fogueira, a humanidade se encontrava para contar e ouvir as histórias dos mais velhos, o teatro acontece como um exercício absolutamente humano. Com a mesma importância vital, o homem se reúne para comer, para cear, para preparar o alimento e partilhá-lo. Em cada um ocasião, tanto no ato de comer como no ato de representar, há regras, há pressupostos, há marcas pessoais que definem os usos, a cultura, o homem. Talvez por unir tão bem os dois gestos, “Mangiare” seja uma produção teatral tão cativante, mas, com toda a certeza, é pela seriedade com quem foram mobilizados os diversos signos e articulados em prol da poética, é que o espetáculo acumule tantos elogios e merecidos aplausos.

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Ficha Técnica:
Direção: Fabianna de Mello e Souza
Texto: Ana Paula Secco, Georgiana Góes, Marina Bezze e Fabianna de Mello e Souza
Elenco: Ana Paula Secco, Georgiana Góes, Marina Bezze
Direção Musical e Músicas originais: Leandro Castilho
Músicos: Diogo Magalhães e Ronaldo Alves
Assistente de palco: Thyaro Maia
Cenografia: Marcos Feio e Fabianna de Mello e Souza
Iluminação: Luiz André Alvim
Figurino: Flávio Souza
Preparação da comida: Especiarias Buffet

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