domingo, 1 de abril de 2012

Palácio do Fim (RJ)

Foto: Guga Melgar

Grandes interpretações em uma má adaptação


                “Palácio do Fim” foi escrito por Judith Thompson, a mais conhecida e premiada dramaturga canadense com títulos muitas vezes montados há mais de trinta anos, em 2007. O texto original consiste em três monólogos sobre o horror vivido por indivíduos relacionados ao Iraque. “Minhas pirâmides” se refere à Abu Ghraib, o presídio central de Bagdá, lugar conhecido pelos exercícios de tortura contra inimigos do regime de Saddam Hussein e, depois, contra os inimigos da intervenção americana no país. Foi lá que Lynndie England, uma soldado americana, se tornou a face da tortura quando foram divulgadas imagens dela sorrindo ao lado de prisioneiros nus, com coleiras no pescoço e formando pirâmides humanas. “Colinas de Harrondown” se refere ao lugar em que o corpo do britânico Dr. David Kelly, cientista e inspetor de armas internacionalmente conhecido, foi encontrado algumas semanas depois dele ter confessado a um jornalista da BBC que ele havia mentido sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. “Instrumentos da dor”, o terceiro monólogo, é o codinome de Jihaz al-Haneen, a polícia secreta do partido socialista Ba’ath, no poder no Iraque de 1963 a 2003. Ela deteve Nehrjas Al Saffarh, uma mãe de família iraquiana, grávida de seu quarto filho em 1963, torturando ela e seus filhos no Qasr al-Nihayah, o Palácio do Fim, um lugar de tortura demolido em 1973. Dessa forma, começando a peça pelo depoimento de uma torturadora, passando por um homem responsável por armas de destruição e finalizando com a visão de uma torturada, o roteiro original é ascendente em intenções, aprofundando o tema e proporcionando diferentes experiências sensoriais a quem o lê ou a quem lhe assiste na concepção original. Infelizmente, esse não é caso da versão brasileira. Com o texto picotado, o espectador brasileiro vê um pouco do primeiro monólogo, pula para o segundo, segue no terceiro, volta para o primeiro e, assim, vai pulando de história em história. Como elas são diferentes, proporcionam imagens e sensações diversas e são apresentadas em tons opostos, a curva dramática é ululante e o espetáculo parece ficar distante do resultado que o texto pretendia oferecer.
                Camila Morgado (a soldado), Antônio Petrin (o doutor) e Vera Holtz (a mãe) apresentam boas interpretações. Sem a picotagem, a avaliação seria ainda melhor, porque o público lhes assistiriam sem fatais comparações, sem quebras, sem intervalos. Dr. Kelly está arrependido do que fez, Lynndie England quer começar uma nova vida e a mãe foi sufocada pelas dores a que foi cometida. A única coisa que os une é o Iraque: são de épocas diferentes, de países, idades, culturas diferentes. Seus discursos não são os mesmos: Petrin apresenta o seu com pesar, com humanidade, com humildade. Morgado constrói a sua personagem de forma irônica, perversa, deixando a impressão de que, orgulhosa, faria tudo de novo. Holtz, agraciada com a personagem mais forte, dá a ver uma mulher constante, valorosa, íntegra. A oratória de Petrin é frouxa, afinal, seu personagem está andando em uma colina e morrerá em breve. A de Morgado é pluritonal, construindo um universo altamente sarcástico. A de Holtz é pontual, sílabas bem postas, sua personagem precisa confessar o crime de não ter salvo o próprio filho quando podia. Em cena, estão à disposição do público três grandes trabalhos de três grandes atores, mas todos sabemos que não há dor igual a de uma mãe que vê morrer o próprio filho, o que deixa claro o desnível sensorial das histórias contadas. E, estranhamente, a direção sabe disso, pois, quando o espetáculo termina, é a face da personagem de Holz que está estampada na rotunda.
                O cenário de Marcos Flaksman e os figurinos de Beth Filipecki são pobres e nada trazem para a encenação. Estrados situam os personagens em níveis diferentes, mas eles trocam de lugar durante a peça e esse movimento não faz nenhuma relação com o lugar que ocupam quando dizem o que dizem, o que é um desperdício do signo teatral (a relação proxêmica). Ilustrativos, uma bengala, uma porção de areia, um chapéu, um quepe estão dispostos no palco sem qualquer utilidade outra a não ser o de redundar o que o texto já diz tão bem. No mesmo sentido, os figurinos são todos em tons terra: marron, verde, bege, laranja, de forma que o efeito final se perde negativamente. Por outro lado, o desenho de luz de Maneco Quinderé e a trilha sonora de Marcelo Alonso Neves agem no sentido de aprofundar a construção dos sentidos de “Palácio do Fim”. Os focos absolutamente fechados fazem lembrar a luz da tortura, o ato de expor ou se expor. Iluminando pequenos espaços, deixa-se ver muitos lugares na escuridão, o que faz pensar que há muito de não dito no que é dito. O som do ventilador, os sons da guerra, o toque do piano, em todos os momentos, a trilha sonora deixa mais e menos sublimes passagens da encenação, alternando os tons, fazendo com que permaneça também no ouvido o que está gravado na retina. E, quiçá, latente para reflexões.

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Ficha técnica:
Direção:José Wilker
Texto:Judith Thompson
Tradução: João Gabriel Carneiro
Elenco: Antonio Petrin, Camila Morgado e Vera Holtz
Cenário: Marcos Flaksman
Figurino: Beth Filipecki
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha Sonora/Música Original: Marcelo Alonso Neves
Programação Visual: Felipe Taborda (direção de arte) e Lygia Santiago (design)
Direção de Produção:Cláudio Rangel
Realização: M.I. Produções Artísticas

2 comentários:

  1. Posso dizer, simplesmente, que a crítica de Rodrigo Monteiro sobre Palácio do Fim foi a mais elucidativa das que tenho lido, sobre a montagem brasileira da peça de Judith Thompson.

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  2. PROCURO A MINHA CRÍTICA PALÁCIO DO FIM, E SÓ ENCONTRO ESSA...
    QUE "FIM" TERÁ LEVADO??????

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