terça-feira, 10 de abril de 2012

A Peça do Casamento (RJ)

Foto: Bruno Veiga

Arrebatador
               
                Edward Albee (1928), autor de “A peça do casamento”, é o maior dramaturgo americano vivo e um dos mais consagrados do mundo. É dele os clássicos “The sandbox” (1959), “Who’s afraid of Virgínia Woolf? (1962), “Finding the Sun” (1983) e “Three tall women” (1991). Seu primeiro texto, escrito em 1958, “The Zoo Story”, que teve continuação cinquenta anos depois em “At Home at The Zoo”, fez com que desde aí o autor seja considerado, por Martin Esslin, o autor responsável pela americanização do teatro do absurdo, cujos parceiros célebres são Jean Genet (“As criadas, 1947), Eugène Ionesco (“A cantora careca”, 1951), Samuel Beckett (“Esperando Godot”,1953) e, não nos esqueçamos!, Qorpo Santo (1829-1883). O que há de absurdo em Albee? O abandono. É essa a situação que aproxima os personagens do americano dos dos seus colegas europeus (e brasileiro): jogados para fora, para longe da lógica narrativa, da regrada vida católico-cristã, do estado de ordem das coisas, as figuras se encontram em meio a uma avalanche de acontecimentos cujas causas nem sempre são encontradas e cujos efeitos nem sempre são vistos em plenitude nem por eles próprios, nem por quem lhos assiste, o público e seu autor. Inédito no Brasil, o texto de “A peça do casamento (“Marriage Play”) foi escrito em 1987. Os personagens Jack (o marido) e Gillian (a esposa), casados há trinta anos, se juntam a George e a Martha (de “Quem tem medo de Virgínia Woolf?) e juntos se encontram no contexto strindberguiano de jogo: a vida é uma guerra em que, se a conversa é uma arma, e a poética é uma bomba atômica.
                Dirigido por Pedro Brício, o espetáculo apresenta no programa entregue na entrada uma foto, entre algumas, bastante interessante. Nela está a atriz Guida Vianna e o ator Dudu Sandroni submersos em um mar de mãos que lhes arrumam o cabelo, maquiam, ajeitam fones de ouvido, a gravata e o paletó. Como se estivessem em camarins, os personagens-atores da fotografia preparam-se para entrar em cena. No texto do mesmo programa, por sua vez, o tradutor Marcos Ribas de Farias chama a atenção para uma questão fundamental: a palavra “play” contida no título original serve tanto para “peça” como para “jogo” em português. Iniciado o espetáculo, os atores-jogadores se vêem dentro de uma partida / de uma peça cujas regras não foram feitas por eles, nem deles é a responsabilidade das marcas. Estão abandonados, vítimas talvez, culpados nunca. Estão aí as pistas estéticas de que se parte aqui para a análise do espetáculo em questão.
                Pedro Brício, “para a nossa alegria”, não é um diretor vaidoso e o Rio de Janeiro está cheio deles. No palco, é nítido encontrar o seu positivo esforço em apagar-se. Com isso, o teatro se torna menos teatral e mais próximo do real, os personagens do palco italiano parecem-se mais facilmente conosco, a fruição acontece de forma muito mais natural e, no caso de Albee, mais positiva. O bem enaltecido aqui vem do fato de que, sem obstáculos, o público chega à catarse mais rapidamente, encontrando-se, assim, abandonado, ao lado dos personagens, em meio a situação limítrofe. Jack, depois de trinta anos casado com a mesma esposa, sente-se esmagado pelo peso da rotina e almeja um futuro diferente. Gillian, depois de trinta anos casada com Jack, sente-se acuada pelo futuro incerto da solidão iminente, pois seu marido a deixará. “A Peça do Casamento” é mesmo um espetáculo sobre relacionamentos, mas não é “mais um”. O diferencial está na inteligência do texto e na sensibilidade da direção: nos momentos críticos da discussão, a poética surge como uma última (e, talvez, única) munição capaz de furar o cerco mais fechado. Albee faz poesia, embora a destrua com ironia logo em seguida. Brício abre possibilidades, embora concentre o sentido. Juntos são os grandes responsáveis pelo teatro da melhor qualidade, embora não sejam os únicos a receber os aplausos.
                Guida Vianna e Dudu Sandroni apresentam excelentes trabalhos de interpretação. Jack quer ir embora e Gillian ficará. Em função disso, o personagem da esposa, defendido por Vianna, é o mais privilegiado, embora não seja isso sinal de desequilíbrio. Sandroni deixa ver um Jack ansioso, disposto a dar um basta e decido a manter firme o seu projeto. Mesmo assim, há nele uma certa sensibilidade: o olhar terno e, por vezes, debochado; os movimentos não contínuos e, por isso, joviais; os ombros baixos de um corpo cansado, mas não derrotado. Melhor talhado e ricamente apresentado, o personagem Gillian é concretizado pela excelente Vianna através de suas contradições: o discurso forte em uma mulher sensível (“somos dois indivíduos” vesus “eu me moldei a você”), uma dicção fria e artificial em meio a pausas vibrantes, movimentos ágeis e olhares atentos. Sandroni e Vianna fazem evoluir o drama da comédia de costumes ao drama propriamente dito, para o riso e para a emoção da plateia que sorve o trabalho com econômica parcimônia, talvez, suspensa diante de si própria.
                Positivamente sem grandes destaques em termos de trilha sonora e de figurino (o que faz a produção não ser melodramática, mas com objetivos realistas), o cenário neo-realista de Aurora dos Campos é bastante interessante. A força ilustrativa e redundante de objetos em primeiro plano dialoga com as elipses ao fundo: o jardim composto de vasos e de um painel verde, portas vazadas, símbolos suspensos (uma máquina de escrever, um barco, um vaso de orquídea aparente, o ano de 1995, etc.). A opção talvez justifique (ou se justifique em) a opção pela palavra “peça” e não pela “jogo” no título. A luz de Tomás Ribas, sobretudo nos letreiros luminosos suspensos, abre caminho para possibilidades, numa acertada parceria com a concepção visível nas interpretações e no cenário.
                A montagem de “A Peça do Casamento” é arrebatadora pela sua simplicidade, pela sua complexidade, pelas suas pequenas e naturais contradições. Para ser livre, o que nem sempre é bom, é preciso abandonar e ser abandonado. E isso nem sempre é ruim.

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Ficha técnica:

Texto: Edward Albee | Tradução: Marcos Ribas de Farias | Elenco: Guida Vianna e Dudu Sandroni | Direção: Pedro Brício |Diretor assistente: Alcemar Vieira | Direção de produção: Maria Siman Cenário: Aurora dos Campos | Figurinos: Rita Murtinho | Desenho de Luz: Tomás Ribas | Trilha sonora: Lucas Marcier | Operação de luz: Ricardo Grings | Operação de som: Thiago Silva | Direção de palco: Daniel Benevides | Contrarregragem: Gilberto Farias | Produção Executiva: Gabriela Mendonça | Assistência de Produção: Clarice Coelho | | Realização: Allegro Produções e Primeira Página Produções |Classificação: 12 anos | Duração: 80 minutos 

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