terça-feira, 3 de abril de 2012

Rosa (RJ)

Foto: Dalton Valerio

O uso espetacular da voz

                Escrito e encenado pela primeira vez em 1999, “Rosa” é um texto de Martin Sherman, um escritor judeu assumidamente homossexual, responsável por sucessos no teatro como “Bent”, “The boy from Oz” e pelo roteiro do filme “Callas Forever”. Trata-se de uma revisão de sessenta anos da personagem Rosa, entre 1940 e o ano 2000, interpretada na montagem brasileira pela atriz Débora Olivieri. Nascida em uma pequena colônia judaica da Ucrânia, em 1920, Rosa vai para a Polônia quando o seu irmão mais velho se casa. Um dia tomando chocolate quente com amigos num café e, no outro, vendo sua família morrer de fome, ela sente o nazismo modificar a sua vida e ser responsável por momentos que lhe marcaram profundamente a existência. Quando, anos mais tarde, lhe oferecem LSD, ela nega. A imagem do gueto de Warsaw incendiando ainda é suficiente para fazê-la tirar os pés do chão e “viajar” sensorialmente. Há quem diga que este é mais um texto e mais um espetáculo triste sobre o holocausto, a segunda guerra e o totalitarismo. E é. Mas é verdade também que seu mérito, enquanto obra literária e enquanto espetáculo teatral, está em, dentro de um tema inesgotável, proporcionar à assistência sensações raramente sentidas.
                Quando a peça começa, Rosa está “sentando shiva”, isto é, vivendo o rito do luto judeu por alguém que só saberemos quem no final da peça. Indo atrás dessa informação, que se mostra inusitada, ao público é oferecida a experiência de percorrer pelos diferentes “corredores” das lembranças de Rosa, agora aos oitenta anos e já em um novo milênio. Cultura judaica, acontecimentos políticos e recordações pessoais se misturam na encenação que se constrói a partir apenas do discurso oral dito pela atriz dirigida por Ana Paz, sem nenhum outro recurso estético. Uma estante de livros ao fundo ilustra, mas também funciona significativamente como linhas nas quais as palavras se organizam. O século XXI está sendo, afinal, revisto por Rosa e por quem a ouve: a mudança entre países, o nascimento da Palestina, a mudança cultural dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a personagem se auto avalia, identificando seus erros e seus acertos, suas possibilidades e suas perdas: no cenário de Hélio Eichbauer, uma poltrona confortável, água e remédios transmitem ao espectador a real sensação de estar diante de uma mulher mais velha, ouvindo a sua vida, aprendendo com ela. Conceitualmente, está o exercício técnico do “ator rapsodo”, do contador de histórias, tão teatral e tão humano como o homem diante da fogueira ainda nas cavernas.
                Débora Olivieri estabelece diferentes níveis na sua entonação, construindo todo o universo cênico apenas no uso da voz, na dosagem das pausas, na definição dos focos, tornando merecidos todos os prêmios para os quais a atriz foi indicada por esse trabalho. Ali estão o sotaque iídiche, o cansaço de uma voz octogenária, o olhar de uma pessoa que testemunhou horrores, mas que também teve uma vida ou várias vidas nas décadas que se sucederam. No dizer, estão o humor, a ciência, a dor, o prazer, o arrependimento, a vergonha, o sonho. No contato visual com o público, está o acontecimento teatral. No ato de transformar uma sala de espetáculos em uma sala, em tornar o público em cúmplice, em fazer das palavras de Sherman uma história real, está o teatro, o bom teatro que viajará pelo país, espera-se, em meritosas temporadas.

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Ficha técnica:

Texto: Martin Sherman
Tradução: Manuel Mendes Silva
Direção: Ana Paz
Elenco: Débora Olivieri
Cenário: Hélio Eichbauer
Figurino: Ana Monteiro de Castro
Iluminação: Paulo César Medeiros
Desenho gráfico: Rico Lins
Operador de luz: Jarbas Sardinha
Visagismo: Ricardo Moreno
Assistente de comunicação: Silvana Cardoso E. Santo
Assistente de produção: César Lacerda
Administração: Thalita Bastos
Direção de produção: Miriam Juvino
Produção: Ana Paz

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