sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dorotéia (RJ)


Foto: divulgação

Aplausos para Gawronski e não muito além dele.

                A produção “Dorotéia”, em cartaz no Teatro Poeira, é um encontro raro de dois momentos ruins em duas carreiras sólidas, pois, de um lado, temos um texto mal escrito pelo excelente Nelson Rodrigues e, de outro, temos uma direção relapsa assinada pelo também excelente João Fonseca. Deve ser visto por ser um clássico da dramaturgia brasileira, por ser um momento especial na carreira do ator Gilberto Gawronski, porque consolida a atividade de Nello Marrese como um dos melhores cenógrafos do teatro brasileiro e porque a minha opinião deve ser discutida. Mas vá lá o espectador sabendo de que se trata um texto e de um espetáculo redundantes, coberto de tempos negativamente mortos, com uma terrível trilha sonora e com interpretações bastante fracas.
                Escrito em 1949, o texto foi encenado no ano seguinte com direção de Ziembinski, tendo Eleonor Bruno no papel principal. Ficou apenas duas semanas em cartaz, porque, segundo explicou a produção, o público não entendeu a peça. Hoje, o público entende, mas, mesmo assim, há muito para não se gostar. Do texto à produção, segue a análise.
                O texto, que assusta estudiosos incapazes de “encaixá-lo” junto às outras obras do maior dramaturgo brasileiro (trata-se da quarta e última peça do grupo das “míticas”, ao lado de “Álbum de Família”, “Anjo Negro” e “Senhora dos Afogados”), é mal escrito. Chamado de “Farsa Irresponsável”, os diálogos encadeados, talvez, funcionam enquanto literatura pela força do seu caráter lírico de engendrar, através das imagens, situações que podem ser lidas a partir de conceitos da psicanálise. Estão ali os diversos papéis da mulher, a importância da estética, a valorização da moral como elemento de inibição da essência do homem, a alteridade como parte constituinte da identidade, etc. O tom farsesco remete à máscara usada em cena, seja como objeto ou como caracterização facial ou da ordem da maquiagem, sem dúvida, uma metáfora para tratar da sociedade e de suas relações. Enfim, eis aqui um exemplo das tentativas bem-vindas de Nelson Rodrigues de escrever um teatro que fosse mais do que uma história bem contada, mas um ponto de partida para a discussão sobre a formação da personalidade humana. No palco, as questões são outras. O texto, pré-texto para a encenação teatral, tem um ritmo lento, situações mal construídas e personagens fracos.
                A personagem Dorotéia chega a casa de suas primas viúvas (Flávia, Carmelita e Maura) a fim de se purificar do pecado. As parentes repudiam a beleza e os prazeres, tidos como responsáveis por uma vida cheia de desvios. São feias, descansam no chão duro, exortam as dores e as doenças. Na noite de núpcias de cada uma delas, uma terrível náusea surgiu como prova de que o sexo não é bem vindo. A sensação, que marca as mulheres da família, acompanha outra peculiaridade: nenhuma mulher enxerga os homens. Casam-se com eles, deitam-se com eles, mas não os vêem. Dorotéia é diferente: ela não sentiu a náusea e vê os homens. Daí inicia a história que não tem um conflito único, mas pequenas encruzilhadas rápidas e discretamente resolvidas em meio a uma verborragia dissertativa sobre o tema, fazendo pouco além de informar o público sobre o que está-se vendo. Dorotéia será aceita na casa das primas? Das Dores (filha de Flávia) terá as náuseas na sua noite de núpcias? Dorotéia ficará feia? Em Dorotéia e em Flávia, assim, se encontra todo o espetáculo. Carmelita e Maura são ecos de Flávia e funcionam apenas junto dela como elemento mais visual e sonoro do que propriamente dramático. Das Dores é um motivo a mais para um conflito. D. Assunta da Abadia, sogra de Das Dores, é não mais que um evento. O texto, assim, não tem a força necessária ao drama, apesar da força das palavras com as quais foram compostos os seus diálogos e construídas as suas passagens.
                João Fonseca, talvez influenciado pela questão psicanalítica do texto, acerta quando constrói uma encenação expressionista. O expectador, afinal, não vê a peça como um leitor, mas a partir dos olhos da tríade Flávia-Maura-Carmelita (vemos com maus olhos Dorotéia e não vemos o noivo de Das Dores, filho de D. Abadia). Daí, também, o disforme proposto pelo inteligente figurino de Thanara Schönardie e pelo brilho ofuscante do cenário de Nello Marrese, ambos elementos que, congraçados, confundem a visão, distorcendo o sentido. O relapso da direção está em não fazer evoluir o ritmo que segue constante do início ao fim, deixando a narrativa ainda mais dissertativa, como um tedioso discurso de argumentação em prol da tese inicial: “Mulher tem que ser séria. A mulher que goza, é bonita e feliz não presta e tem que ser destruída. Do contrário, elas mandam no mundo!”* Não há curvas que valorizem os pequenos conflitos e apontem para um fim. E, além do mais, há interpretações bastante fracas e uma péssima escolha de trilha sonora. Como valor positivo, é possível identificar, na primeira parte do espetáculo, um ótimo jogo na movimentação das primas e de seus leques.
                Gilberto Gawronski (D. Flávia) brilha absoluto na excelência de seu trabalho de interpretação. Com uma dicção mais do que perfeita, intenções cortantes e olhares tão algozes como vitimados, o ator é o responsável pelos poucos momentos de vibração desse “Dorotéia”. Ao seu lado, na primeira parte da peça, Paulo Verlings (Maura) e, na segunda parte da peça, Keli Freitas (Das Dores) igualmente oferecem bons resultados resguardadas as poucas oportunidades que o texto lhes permitem aparecer. Por outro lado, Alexandre Pinheiro (Carmelita) e Marcus Majella estão tão fracos como suas figuras foram escritas: apagados e não mais do que negativamente histriônicos. Alinne Moraes, apesar de apresentar uma potência vocal muito aquém do necessário, traz pertinentes intenções e, a contento, cumpre a sua parte com adequação.
                A escolha de músicas pop, em inglês, que versam sobre a beleza e o feminino é redundante, pobre e, por isso, infeliz. Elas não funcionam como argumentação para a dissertação proposta, não trazem nada de novo para a descrição da situação prevista na narrativa e não oferecem nenhum avanço para o ritmo da encenação. Nelson Rodrigues e João Fonseca poderiam ter passado sem essa. Os fãs de Gawroski não. Aplausos para ele.

*
Ficha técnica:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: João Fonseca
Elenco:
Alinne Moraes (Dorotéia)
Gilberto Gawronski (D. Flávia)
Alexandre Pinheiro (Carmelita)
Keli Freitas (Das Dores)
Marcus Majella (D. Assunta da Abadia)
Paulo Verlings (Maura)
Figurinos: Thanara Schönardie
Cenografia: Nello Marrese
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Realização: Artcênicas Ideias e Soluções Artísticas

* João Fonseca. Trecho retirado do programa do espetáculo.

Um comentário:

  1. PARABENS PELA CRITICA CONCORDO COM VC EM CADA PARTE!!!
    SOU DE SAO PAULO E CHEGOU UMA HRA QUE QUERIA TAMPAR OS OUVIDOS PARA NAO ESCUTAR MAIS AQUILO! SINCERAMENTE OQ JENNIFER LOPEZ TEM A VER COM NELSON RODRIGUES? eles vao ter que se perdoar um bom tempo....

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