sábado, 8 de setembro de 2012

Mutter Courage und Ihre Kinder (Mãe Coragem e Seus Filhos - Alemanha)

foto: Monika Rittershaus 

O simples gesto de continuar

“Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertolt Brecht (1898-1956), é uma das obras primas da dramaturgia universal e o espetáculo da companhia alemã Berliner Ensemble faz jus ao texto. Protagonizado por Carmen-Maja Antoni, a produção dirigida por Claus Peymann resulta em um delicado trabalho de dramaturgia cênica que rejuvenesce a obra porque expõe a humanidade de seus autores em doses nada modestas. Três horas passam voando no teatro quando há jogo, quando o ritmo é bom, quando a história é bem contada, quando o que se está vendo é interessante. Eis aí as chaves para entender os aplausos efusivos que finalizam as apresentações desde 2005, em Berlin, quando a peça estreou, e pelo mundo afora por onde passou, chegando agora ao 19o Porto Alegre em Cena. 

O palco, um grande tablado circular, está inclinado, caindo em direção à plateia. Um estrondo agudo e seco anuncia o aparecimento repentino de um pequeno galho florido no centro. É o início da história, que se passa na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na Alemanha. Dois soldados abordam a carroça de mercadorias de Anna Fierling, uma vendedora ambulante, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Os dois filhos puxam a carroça quando o diálogo começa. Dinheiro, comércio, guerra, interesses pessoais: Anna, a Mãe Coragem, tira o sustento de sua família da guerra que agora levará seus filhos. A amiga guerra também será sua inimiga. As relações, sempre circulares, exibem sua profundidade quando vistas a partir de sua dubiedade: tudo o que é bom é também ruim. 

Não é exagero dizer que Carmen-Maja Antoni está esplêndida no papel título. Ao mesmo tempo terrível ao regatear a vida de um filho, ela é doce ao dizer não ao calor e ao conforto de uma estalagem pela companhia da filha muda. Dito na complexidade de suas consoantes, o alemão se apresenta fortemente no contexto geral de cada palavra junto com todas as delicadezas no dizer de cada sílaba. Ler as legendas, em muitos momentos, é desperdiçar os ouvidos dos diálogos jogados com tanto merecimento. Anna Graenzer, que interpreta a filha, representa bem o papel contraponto de Coragem. A sensibilidade é muda, dependente, com cicatrizes. Só quem a tem, a entende. Martin Seifert, que interpreta o capelão, enche de nuances as suas aparições, exibindo com gradativa significação a transformação do seu caráter. Quanto mais pecador ele se torna, mais santo ele fica, movimentos que poucos dramaturgos conseguiram expressar na história do teatro. Em suma, fundado em 1949, o Berliner Ensemble, pela primeira vez no Brasil, traz um elenco de protagonistas e de coadjuvantes afinados, com interpretações potentes e cujos destaques vão desde simples tons até Antoni na grandiosidade de sua anti-heroína. 

Claus Peymann, célebre desde “Kasper”, de Peter Handke (1968), confere excelente ritmo à narrativa. Dos giros do olhar à movimentação da carroça, nenhuma marca acontece sem orquestração. O desafino na interpretação das canções funcionam como meias rasgadas, freios de mãos emperrados e maquiagem carregada: nada é despretensioso. O famoso distanciamento brechtiano, uma reflexão para poucos, pode ser visto superficialmente no tom farsesco: cada elemento está por algo além dele, um algo que certamente significa mais do que apenas uma parte da história. 

Com blackouts longos, a iluminação (não creditada) é positivamente fria, dura, específica. Em tons escuros, o figurino de Maria-Elena Amos privilegia os camponeses e faz destoar os personagens militares estranhamente. A direção musical de Rainer Böhm faz ver a importância das canções como recurso diegético, sem felizmente caracterizar a peça como um musical. O cenário de Frank Hänig, que inclui a carroça da versão original, é simples, apontando para o essencial: o jogo retórico do discurso dramático. 

Anna Coragem termina empurrando a própria carroça como Zé do Burro carrega a sua cruz, pagando sua promessa. A humanidade que destaca o homem e lhe a dá a vida, também é a sua morte. Liberdade e condenação andam lado a lado na sublime decisão de continuar. 

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Ficha técnica:
Música: Paul Dessau / Elenco: Carmen-Maja Antoni (Mãe coragem), Winfried Goos (Eilif), Traute Hoess (camponesa, a esposa do camponês, menina cantora), Andy Klinger (O soldado, narrador, o jovem camponês), Anna Graenzer (Katarina), Martin Seifert (O sargento), Veit Schubert (O sargento chefe, Soldat), Martin Schneider (O recrutador, coronel, soldado, intendente), Michael Rothmann (Schweizer), Axel Werner (O general), Detlef Lutz (O camponês, soldado), Michael Kinkel (Pastor, soldado), Manfred Karge (O cozinheiro), Roman Kaminski (O camponês), Ursula Höpfner-Tabori (Yvette Pottier) / Músicos: Katja Kulesza (violino), Volker Schindel (acordeon), Silke Eberhard (saxofone, clarinete, baixo clarinete), Clemens Rynkowski (teclado e voz) / Direção: Claus Peymann / Cenário: Frank Hänig / Figurino: Maria-Elena Amos / Dramaturgia: Jutta Ferbers / Direção musical: Rainer Böhm / Produzido pelo Berliner Ensemble em colaboração com o Change Performing Arts / Duração : 180min (com intervalo de 15min) / Recomendação etária : 14 anos


            

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