segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Shuffle (RJ)

Foto: divulgação

Visual

O maior problema de “Shuffle” é que ele, enquanto espetáculo, faz com que esperemos além do que ele pode oferecer. Consta no release que o tema é a relação entre a submissão e a aleatoriedade no mundo contemporâneo. O resultado, no entanto, se apresenta como uma mera condição formal (da ordem da forma) que não se estabelece enquanto conteúdo infelizmente. O assunto da falta de lógica nos acontecimentos do dia a dia fica imanente, virtual, potente, mas não se atualiza em cena. A interpretação de Gabriel Vaz é sedutora, a direção de Julia Bernat e de Leandro Romano é positivamente delicada, o aparate tecno-visual do cenário/iluminação de Elisa Romero e de Isadora Petrauskas é promissor, mas o todo funciona melhor como experimento do que como obra, ou talvez, ofereça um belo trabalho de artes visuais, frustrando quem espera ver teatro. 

Um homem recebe um iPod Shuffle (um reprodutor de músicas da Apple que só permite a execução das mesmas de forma aleatória) como presente de uma companhia telefônica. No início do espetáculo, o ator/personagem liga o aparelho e as músicas começam a serem ouvidas. Cada cena está vinculada a uma música e, como não sabemos qual será a ordem delas, o espetáculo parte do princípio de se modificar em cada apresentação. Ou seja, “Shuffle” é um exercício dramatúrgico que questiona a necessidade da ordem narrativa dos acontecimentos. Essa não é a novidade da produção já que o mesmo tipo de experiência acontece no teatro há quase cem anos. O novo, ou melhor, o que parece ser novo nesta proposta vem pela estrutura interna de cada cena. Antes de iniciar a reprodução das canções, o personagem diz algo como: “Um homem morreu. E isso não tem nada a ver com isso aqui.” Com isso, seguido da explicação de como funciona um aparelho IPod Shuffle, o espectador tem possibilidades de pensar que o tema a ser debatido é a relação entre os acontecimentos ou a sua não-relação. A dramaturgia de “Shuffle”, então, se instaura num lugar descendente (neta talvez) do “teatro do absurdo”, de Eugene Ionesco (1909-1994) ou de Jean Genet (1910-1986). O absurdo contemporâneo, quando apresentado enquanto tema, é rico e merece ser evidenciado. O problema é que as cenas que seguem, seja em que ordem estiverem, não dão conta da proposta. Alguém toma banho de Coca-Cola, um homem gosta de empadas e explica o que há de interessante em uma empada, um homem está sozinho em casa enquanto ouve uma mulher ligar pra ele, deixando recados em uma secretária eletrônica, aluguém disserta sobre os Pokemóns, alguém responde a perguntas aleatórias de uma gravação e, assim por diante, são quadros que reforçam a mortalidade do tempo e tempos mortos não é o tema do espetáculo. Muitos minutos depois de ter começado, a único ponto realmente interessante de “Shuffle” é a forma aleatória com que as cenas se justapõem, além do colorido das luzes no cenário branco em perspectiva.

Gabriel Vaz, apesar da voz sem entonação (o que, por vezes, fica inaudível), oferece uma boa interpretação da figura que lhe foi conferida pela produção. Há movimento, há pausas, flexão e distensão, há carisma. Voltando ao texto, a questão que lhe é desafiadora é o fato de seu personagem ser fluído demais. Em “Shuffle”, há uma figura (um ou mais?) e o fato dela ser interpretada por um ator não reserva (nem a ele, nem ao público) garantias suficientes de que é uma (ou mais) figura(s) masculina(s). Com apenas um único momento de exceção, e que bóia em um mar de efeitos superficiais, o intérprete, nesse contexto, tem pouco a fazer além de simplesmente estar (como John Giorno, que dorme durante cinco horas em “Sleep”, filme de 1963, de Andy Warhol). A cena do chocolate Prestígio é a única possibilidade do ator de mostrar o seu talento como verdadeiro intérprete. Nela, há personagem, há história, há conflito, há narrativa, há teatro. 

Seja linear ou não-linear, dramático, adramático ou pós-dramático, o teatro precisa dizer algo. E, quando é perguntado, ele diz até mesmo em silêncio. A falta de lógica é uma lógica. A falta de sentido é um sentido. Os tempos mortos são tempos passados. O que falta em “Shuffle” é um pouco além da forma e mais investimento em conteúdo. As luzes coloridas no cenário branco são lindas. 




FICHA TÉCNICA

Concepção: Leandro Romano
Direção: Julia Bernat e Leandro Romano
Dramaturgia: Luiz Antonio Ribeiro
Elenco: Gabriel Vaz
Cenário e iluminação: Elsa Romero e Isadora Petrauskas
Figurino: Anna Cecília Cabral
Preparação vocal: Julia Bernat
Assistência de direção: Luiz Antonio Ribeiro
Assistência de cenário, iluminação e figurino: Gaia Catta e Lia Maia
Edição de som: Jayme Monsanto
Voz em off: Estrela Blanco
Edição de vídeo: Daniel Terra
Assistência de fotografia e segunda câmera: Ana Carolina Barbosa
Orientação teórica: Danrlei de Freitas
Direção de produção: Julia Bernat e Leandro Romano
Produção executiva: Daniel Werneck
Arte gráfica: Nan Giard
Fotografia: Conrado Krivochein
Realização: Vem! e Teatro Voador Não Identificado

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