sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Depois da Queda (RJ)

Foto: divulgação

Com medo de Arthur Miller


“Depois da Queda” é um projeto interessante, porque tem como desafio o cruzamento de três estruturas independentes: o texto, a encenação e o ícone Marilyn Monroe. Escrito pelo norte-americano Arthur Miller, em 1964, a montagem em cartaz no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, Rio de Janeiro, tem direção de Felipe Vidal. No papel de Maggie, está a atriz Simone Spoladore. Infelizmente, a direção de Vidal tirou pouco proveito das possibilidades que hoje o trio tem a oferecer. Mais parecendo duas peças do que uma em dois atos, “Depois da Queda” se arrasta por três horas se equilibrando em momentos bons e ruins, grandes interpretações e em números musicais dispensáveis. 

Arthur Miller (1915-2005) não tem em “After the Fall” seu maior trabalho. Autor de peças como “A morte do caixeiro viajante” e “Panorama Visto da Ponte”, no texto de “Depois da Queda”, há duas confusões diferentes: a) quem é o protagonista? Quentie ou Maggie? b) Considerando o fato de Miller ter sido casado com Marilyn entre 1956 e 1961, tendo esta falecido em 1962 e a peça ter sido escrita em 1964, sabe-se que há forte referência entre Maggie e Marilyn. Mas de que Marilyn o autor trata? Sua esposa ou a grande ícone do cinema ocidental? Desses dois problemas, partem as questões de recepção do texto e, claro, do espetáculo a partir dele que não lhe faz nenhuma alteração dentre as muitas possíveis. O caso lembra “Dorotéia” e Nelson Rodrigues: mesmo um grande dramaturgo pode ser alterado, mas são poucos os corajosos que o fazem. 

No texto, é Quentin o protagonista. Maggie é apenas mais uma dentre as mulheres com quem o anti-herói se relaciona, distanciando-se das demais, porque, a princípio, exige-lhe pouco, mas aproximando-se delas novamente, porque lembra a ele sua incapacidade de se entregar. Palavra ao lado de palavra, Maggie/Marilyn tem mais importância na literatura de Miller apenas porque, de início, faz Quentie se sentir diferente. No palco, os personagens não são feitos de letras negras em fundos brancos, mas têm cor. No teatro, Maggie é a protagonista. 

Produzida pela primeira vez no Brasil há quase cinquenta anos, com Maria Della Costa e por Paulo Autran nos papéis principais, “Depois da Queda” continua, desde sua estreia, interessando apenas porque narra algo similar aos últimos anos da vida de Marilyn Monroe (1926-1962). É sua figura quem está nos cartazes das diversas montagens ao redor do tempo e do mundo, são imagens dela que vemos logo no início da peça dirigida por Vidal, ainda que a personagem Maggie só vá aparecer, de fato, no final do primeiro ato. Uma direção hábil precisaria evidenciar que o ícone Maggie/Marilyn re-hierarquiza os signos da obra, colocando eles em lugares de importância diferentes. Na montagem atual, infelizmente fiel ao texto, de um lado temos um arrastamento das histórias entre Quentie e suas outras mulheres, família e amigos. De outro, temos um arrastamento da história entre Quentie e Maggie, ficando ainda mais pesado pela incursão estranha de números musicais bastante mal interpretados (não há um só ator que cante bem no elenco). Ou seja, tanto no primeiro como no segundo ato, há um esforço desnecessário em contar uma história que acaba por ficar duplamente desinteressante, porque repetitiva. 

Com boas interpretações, sobretudo no elenco masculino, “Depois da Queda” se salva em vários momentos. Um deles é a discussão entre amigos sobre o comunismo, de que participam Leandro Daniel Colombo, José Karini e o protagonista Lucas Gouvêa. Os três, em todos os seus momentos, mas principalmente nesse, apresentam louváveis trabalhos: cheios de força, vigor, masculinidade e de profundidade. No elenco feminino, destacam-se Thaís Tedesco e Simone Spoladore, essa última em uma exuberante interpretação de Marilyn Monroe. Ambas têm fortes participações, representando lados opostos do feminino: a sensualidade em uma e a responsabilidade em outra. 

A montagem atual de “Depois da Queda” também garante saldo positivo nos elementos visuais. O cenário de Aurora dos Campos é rico em potencialidade e oferece vastos recursos ao encenador. O figurino de Flávio Souza, por sua vez, além de marcar uma determinada época, descreve o personagem e colore a narração com elegância. A movimentação do elenco no espaço cênico é pontual e segura dentro da concepção de Vidal de que já se tratou. 

Estando o teatro mais vivo do que é visto em “Depois da Queda”, fica na retina a imagem de Simone Spoladore em um grande momento de sua carreira como atriz. 

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FICHA TÉCNICA

Texto: Arthur Miller
Direção e Tradução: Felipe Vidal

Elenco: Lucas Gouvêa, Simone Spoladore, Gabriela Carneiro da Cunha, José Karini, Paulo Giardini, Thais Tedesco, Leandro Daniel Colombo, Talita Fontes, Paula Tolentino e Luciano Moreira

Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Flávio Souza
Iluminação: Tomás Ribas
Direção musical: Luciano Moreira e Felipe Vidal
Preparação corporal: Denise Stutz
Direção de produção: João Braune - Fomenta Produções e Daniele Avila Small
Idealização do projeto: Felipe Vidal
Realização: Complexo Duplo e Projéteis Cooperativa Carioca de Empreendedores Culturais

O Desaparecimento do Elefante (RJ)

Foto: divulgação

O vigor do Teatro do Absurdo

Caco Ciocler, Kiko Mascarenhas e, principalmente, Marjorie Estiano brilham em “O Desaparecimento do Elefante”, peça bem dirigida pelas realizadoras Monique Gardenberg e Michele Matalon a partir de cinco contos do romancista japonês Haruki Murakami (1949) escritos ao longo da década de 80. Com um visual de extremo bom gosto, a produção exibe de forma relevante sua habilidade em narrar histórias pela coesão dos diversos elementos cênicos, além da boa interpretação do conjunto de atores. Dentro do universo vigoroso do Teatro do Absurdo, as histórias marcam os desafios do homem contemporâneo, esses expressos no teatro desde Jean Genet (“As criadas, 1947), Eugène Ionesco (“A cantora careca”, 1951), Samuel Beckett (“Esperando Godot”,1953) e, não nos esqueçamos!, desde Qorpo Santo (1829-1883). A peça, que cumpriu temporada no Teatro Fashion Mall, no Rio de Janeiro, apresenta seus personagens em uma situação de abandono próxima do americano Edward Albee (1928), recentemente encenado com "A Peça do Casamento"e em vias de produção com "Quem tem medo de Virgínia Wolf?" Em “O Desaparecimento do Elefante”, está claro que a visão de mundo expressa é a partir da ausência de lógica ou de leis de causa e efeito. 

Abandonados em uma situação alheia a eles, os personagens, que não chegam a ser vítimas, dão apenas continuidade ao desregramento. O desempregado permanece submisso a sua mulher (“O Pássaro de Cordas”), assim como, na cena seguinte (“O Comunicado do Canguru”), o encarregado de responder às cartas de reclamações dos consumidores (Kiko Mascarenhas), ao se apaixonar por uma das cartas, envia um vídeo confessando o seu amor. Depois, dois jovens recém-casados (Caco Ciocler e Marjorie Estiano), para espantar uma maldição e a própria fome, assaltam uma loja de fast food, sem querer levar dinheiro algum, mas apenas uma grande quantidade de lanches. Por fim, dizendo ser testemunha ocular do caso, um jovem conta a uma jornalista a sua versão do desaparecimento de um elefante de um zoológico abandonado. A única história que destoa do recorte feito por Gardenberg e por Matolon é “Sono”. Nela uma mulher (Maria Luisa Mendonça), que não dorme há dezessete dias, lê o romance “Ana Karenina” e começa a confundir ficção com realidade. O fato (forte) da insônia ser encarada como uma doença afasta essa história das demais. Reconhece-se a causa dos acontecimentos quando veem-se os efeitos. Nisso, a sequência contrasta, pesa, subverte e cansa. Longa, ela parece uma peça dentro da peça, ainda que interpretada e encenada com mesmo valor que as demais. 

Não há más interpretações no elenco, mas há excelentes trabalhos, como é o caso de Marjorie Estiano (A jovem esposa cosplay), de Caco Ciocler (O marido desempregado) e de Kiko Mascarenhas (Como o apaixonado). Fernanda de Freitas tem destaque como a adolescente da sequência inicial e Rafael Primot, num difícil mas valoroso tom monocorde, como o rapaz obcecado pelo elefante desaparecido na sequência final. De um modo geral, as construções são delicadas e divertidas, proporcionando bons momentos ao espectador independente da cena. 

O cenário transparente de Daniela Thomas é lugar ideal para os vídeos de Henrique Martins e de Frederico Machuca, promovendo uma estrutura cheia de espaços a serem preenchidos, movimentados, reinventados ao longo da encenação. Os figurinos de Claudia Kopke e o desenho de luz de Maneco Quinderé são definitivos para a excelência estética já destacada. 

Dentre as muitas metáforas possíveis, sem dúvida, a do elefante que desaparece é uma das mais acessíveis, sendo, positivamente, a última a ser contada. O zoológico foi fechado, todos os animais se foram, e o animal ficou abandonado até que desapareceu, sumindo sem deixar marcas. Murakami, através de Gardenberg e de Matalon, talvez esteja nos dizendo sobre os grandes problemas que, quando esquecidos, deixam de existir. Essa, no entanto, é apenas uma possibilidade de sentido das muitas que esse belo espetáculo tem a oferecer. 

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Ficha técnica:

Contos de Haruki Murakami
Adaptação: Monique Gardenberg
Direção: Monique Gardenberg e Michele Matalon

Com: André Frateschi, Caco Ciocler, Clarissa Kiste, Fernanda de Freitas, Kiko Mascarenhas, Maria Luisa Mendonça, Marjorie Estiano, Rafael Primot e Rodrigo Costa.
Participação Especial: Felipe Abib
Participação Virtual: Jiddu Pinheiro

Cenografia: Daniela Thomas
Figurinos: Claudia Kopke
Iluminação: Maneco Quinderé
Visagismo: Juliana Mendes
Preparação de Movimento: Marcia Rubin
Fotos: André Gardenberg
Imagens e Projeções: Henrique Martins e Frederico Machuca
Assistente de direção: Isabel NessimianProdução executiva: Gabriel Bortolini
Produção: Bianca de Felippes / Gávea Filmes
Co-produção: OZ

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A arte e a maneira de abordar o seu chefe para pedir um aumento (RJ)

Foto: divulgação

A humildade do texto diante da excelência do teatro


            “A arte e a maneira de abordar o seu chefe para pedir um aumento” é tão interessante para quem vê quanto para quem estuda. Enquanto espetáculo, fica o prazer de ver uma excelente interpretação por um dos nossos mais renomados atores, Marco Nanini. Ao seu lado, junto a ele, grandes trabalhos de também grandes artistas: o cenário é de Bia Junqueira, a iluminação é de Beto Bruel e o videografismo é de Batman Zavareze. Enquanto obra, fica o interesse em perceber a fragilidade de um personagem que só existe enquanto figura em uma caminhada narrativa que não termina, mas é meramente interrompida em uma de suas muitas possibilidades. Eis uma palestra que, bem escrita pelo francês Georges Perec (1936-1982), tem sua ironia, seu drama e comicidade, e seu movimento bem dirigido para a cena por Guel Arraes para Nanini. Tão simples em conceito, mas tão complexo em suas minúcias, o resultado é merecedor do sucesso que tem obtido nas duas temporadas já realizadas na capital carioca. 

Marco Nanini tem um trabalho nada menos que excelente. As pausas delicadas, o minucioso olhar, o ritmo dos seus movimentos faciais e corporais, as intenções bem medidas, a retórica em prol dos argumentos do texto e da peça, a dicção perfeita e por aí segue uma lista interminável de detalhes que positivamente podem ser vistos na sua interpretação de “Palestrante”. Sozinho em cena, conversando com o público, o jogo proposto pelo “personagem” é realizado diretamente com a plateia. Alternado pelos intervalos propostos pela distribuição das diversas alternativas que podem surgir quando um funcionário vai ao seu chefe pedir-lhe um aumento, a narrativa se desenvolve. O crescimento, isto é, a curva dramática ascende não por algum fato que aconteça, porque nada acontece, mas porque há a aparente redução das alternativas. É quando o esgotamento do tema parece (repito: parece) se aproximar é que a peça termina, ficando a graciosa sensação de que poderia haver um pouco mais. Interessante é notar que, no caso dessa montagem obviamente, o um pouco mais de que se quer é Nanini/Arraes mais que Perec. 

Para o estudo, fica o interesse pelo personagem. O “Palestrante” não tem nome, não tem passado e nem futuro, nem sonhos, nem desejos inalcançáveis, tampouco relações, contracenas, lugares ou posições que sejam suas. A figura só tem o momento presente e um único objetivo que está sendo alcançado imediatamente: o palestrante quer palestrar e palestra. Logo, onde está ou de onde vem a força que impulsiona a narrativa? Sem enredo no texto, a trama se encontra nas expressões do ator (A) em sua interpretação do personagem (B) ao estabelecer o teatro com a plateia (C). A maestria de Perec está em entender o teatro como algo do ator, fazendo apenas o seu trabalho como bom escritor. E são raros os dramaturgos com essa humildade. 

Auxiliam Nanini no estabelecimento de jogo, o cenário de Bia Junqueira que reforça com elegância o tecnicismo do texto, bem como a iluminação de Bruel, o videografismo de Zavareze e o figurino formal de Antônio Guedes. Tudo isso arregimentado por Guel Arraes resulta em mais um ótimo espetáculo da dupla com Nanini a ser muitas vezes aplaudido! 

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Ficha técnica:

De GEORGES PEREC, tradução: JOSÉ ALMINO
Direção: GUEL ARRAES. Com MARCO NANINI

Cenografia: BIA JUNQUEIRA
Iluminação: BETO BRUEL
Figurinos: ANTONIO GUEDES
Videografismo e Programação Visual: BATMAN ZAVAREZE
Trilha Sonora: BERNA CEPPAS
Direção de Produção: Carolina Tavares
Produção: FERNANDO LIBONATI
Realização: PEQUENA CENTRAL DE PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Domésticas (RJ)

Foto: divulgação

Simples na forma e no conteúdo, uma ótima produção


            O que é mais encantador no espetáculo “Domésticas” é a simplicidade com que na forma o conteúdo é expresso. São nada mais que cinco atores (Ana Paula Sant’Anna, Cacau Protasio, Ticiana Passos, Alexandre Lino e Hossen Minussi), sentados sobre uma nuvem de uniformes de domésticas, intercalando trechos de depoimentos reais colhidos no fim dos anos noventa entre empregadas domésticas. O resultado virou um espetáculo teatral em 1998 e, depois, um filme com a assinatura de Fernando Meirelles. Agora, pela primeira vez no Rio de Janeiro, a produção com direção de Bianca Byington cumpriu feliz temporada no Teatro do Sesi e está pronta para ganhar o resto do país. 

Não há movimentação, não há ação dramática. O personagem “empregada doméstica” se multiplica em diversas pessoas, com nomes, histórias, lembranças, sonhos e conformismos diferentes. No palco, está a delícia da retórica, o ato de bem dizer um texto, utilizando apenas a voz, os movimentos faciais, as mãos, as reações. O trabalho de interpretação está na ação do bem dizer mesmo quando se cala. O teatro em “Domésticas” é tão simples quanto sua história, suas personagens, seu tema: dar voz a quem é pouco ouvido, dar luz a quem vive nas sombras, aplaudir quem merece aplausos mais seguidos e em casa mesmo. 

É provável que o destaque principal do elenco seja Cacau Protásio em função do sucesso recente de sua personagem, a empregada Zezé, na novela “Avenida Brasil”. Nota-se, no entanto, a minuciosidade dos seus olhares, a forma como reage ao que os outros dizem, o jeito como “do pouco, essa atriz faz muito”, o que nos permite pensar que, no grupo, ela chama a atenção indiferente de seu trabalho na televisão. Ticiana Passos (substituindo Daniela Fontan), Alexandre Lino e Ana Paula Sant`Ana também apresentam bons trabalhos, embora com um pouco menos de exploração das nuances, mas garantindo um ótimo resultado no todo. Por algum motivo, coube a Hossein Minussi os personagens com textos mais pesados, com pontos de vista mais amargos sobre a vida. Sem deixar ver ironia, suas participações destoam dos demais o que não é de todo ruim, uma vez que, além do riso, a proposta é despertar maior reflexão. O humor negro deste “documentário cênico” está no fato de que o que é dito é apenas representado, isto é, são depoimentos reais, vidas que existem além da narrativa e que sobrevivem hoje através da arte a partir do recorte dramatúrgico feito por Renata Melo e por José Rubens Siqueira. Ouvir as vozes reais nos pequenos intervalos entre-cenas lembra o público sobre essa questão fundamental: interrompendo a catarse e produzindo o distanciamento, “Domésticas” bem entretêm e, sobretudo, faz pensar. 

A direção de Bianca Byington, na orquestração das interpretações, e na estruturação dos figurinos simples e belos de Kika Lopes, do cenário da Espetacular! Produções e Artes (Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo) da trilha sonora de Alexandre Elias e da iluminação de Maneco Quinderé, é positiva porque arregimenta os elementos de forma linear e boa. (Geralmente, um ritmo narrativo linear é um péssimo defeito de uma obra. Identificar como positivo esse aspecto aqui é prova de não há fórmulas prontas quando o assunto é teatro.) Como resultado final, está uma homenagem ao ser humano na riqueza de suas diferenças e na distância de suas concorrências. 

(...) “Missão de planta é embelezar e de pedra é ficar parada. Agora missão de gente é mais importante. Minha missão é ser doméstica.” (...) 

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FICHA TÉCNICA

Direção: Bianca Byington
Argumento: Renata Melo
Texto: Renata Melo e José Rubens Siqueira
Elenco: Ana Paula Sant’Anna, Cacau Protasio, Ticiana Passos/Daniela Fontan, Alexandre Lino e Hossen Minussi
Assistente de Direção: Flavio Pardal
Diretor Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenário: Espetacular Produções e Artes – Ney Madeira/Dani Vidal/ Pati Faedo
Figurinista: Kika Lopes
Preparação corporal: Giselda Fernandes
Preparador Vocal: Marcelo Nogueira
Direção de Produção: Alexandre Lino e Ana Paula Sant’Anna
Produção Executiva: Andrea Guerra Maio
Assistente de Produção: Denise Lima e Caroline Carvalho
Estagiário de Produção: Vinicius Lucena
Design Gráfico: Guilherme Lopes Moura
Fotógrafo: Mônica Oliveira
Visagismo: Sandra Moscatelly
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Assistente de Assessoria de Imprensa: Bruna Amorim
Assessoria Jurídica: André Siqueira
Coordenação e Idealização do Projeto: Alexandre Lino e Marcelo Nogueira
Realização: CINE TEATRO PRODUÇÕES

Tim Maia (RJ)

Foto: divulgação
A maioridade definitiva do musical brasileiro


            Sucesso. E sucesso merecido. Tiago Abravanel é o homem do ano. Reiner Tenente e Evelyn Castro são duas grandes revelações, Izabella Bicalho e Pedro Lima seguem sendo duas grandes estrelas, Nello Marrese, Paulo César de Medeiros e Rui Cortez mantêm excelentes trabalhos e João Fonseca assina mais um espetáculo nada menos que vibrante. “Tim Maia – Vale Tudo – O Musical” é orgulhosamente um espetáculo musical brasileiro que provavelmente só poderá ser comparado, em tamanho e em importância histórica, a “A Gota d`água” e a “Ópera do Malandro”. 

De um jeito bastante simples, sem grandes números de dança e nem agudos inesquecíveis, com uma banda ao invés de uma orquestra e sem extasiantes caídas e subidas de cenários coloridos, o público simplesmente não vê as duas horas e trinta minutos passarem. A partir de um livro de Nelson Motta, a dramaturgia assinada pelo próprio, é ágil, envolvente, pujante. O texto é engraçado, cheio de ironias, com a crítica, os comentários e a evolução malemolente que caracteriza o musical brasileiro, que é diferente do americano. As “senhoras de Copacabana” riem de piadas sobre maconha e masturbação, os mais jovens identificam o Rei, Elis Regina e o próprio Nelson Motta, personagem na peça escrita por ele. As músicas de Tim Maia (1942-1998) são cantadas por todos, embevecidos pelo carisma excepcional (mas não estranho) de Abravanel, neto de Silvio Santos, que pode até não ser um exímio cantor e tampouco intérprete, mas segura a atenção do público com habilidade extrema. O que, talvez, falte-lhe em técnica, sobra-lhe em talento, prova de que os dois existem e são tão importantes em igual medida. 

Depois do protagonista, o destaque mais do que especial será injusto se não cair sobre Izabella Bicalho (Elis Regina), Pedro Lima (o pai) e Nello Marrese. O trio acumulou até agora longos e importantes currículos na história atual do teatro carioca, mas estrela que é estrela brilha até durante o dia. Em papéis coadjuvantes aqui, Bicalho e Lima são responsáveis por grandes momentos do espetáculo, conferindo a ele, além de elegância, a força que faltaria sem suas presenças. Por sua vez, Marrese sabe que, no ritmo vertiginoso da narrativa de Motta, é a iluminação de Paulo César de Medeiros e os figurinos de Rui Cortez quem se sobressaltam positivamente. Mesmo assim, em pequenos detalhes, em aparições minúsculas, o cenógrafo marca sua passagem com uma criatividade essencial. 

Evelyn Castro (a mãe), Lilian Valeska (Janete) e Reiner Tenente (Roberto Carlos e Nelson Motta) completam o coro de destaques de “Tim Maia”. À vontade nos papéis, trazem graça, leveza e profundidade para o espetáculo, contribuindo positivamente para torná-lo o sucesso que ele tem sido. 

João Fonseca, que assina desde grandes produções como o futuro “Rock `n Rio – O Musical”, até comédias mais banais como “Razões para ser bonita”, passando por espetáculos densos como “Não sobre rouxinóis” e polêmicos como “O Casamento”, tem aqui um dos seus melhores trabalhos. As cenas são curtas e a articulação é inaparente, a evolução é progressiva e o jogo se estabelece de forma a alimentar a vontade do espectador ávido por novidades e mais novidades, satisfazendo-o a contento. A direção musical de Alexandre Elias segue positivamente o mesmo padrão, manifestando a integração necessária entre música e encenação que se espera de uma produção como essa. 

Visto já por mais de 200 mil pessoas, “Tim Maia – Vale Tudo – O Musical” é a maioridade definitiva do musical brasileiro, esse já emancipado pelas grandiosas e não menos exitosas produções brasileiras de clássicos ingleses e americanos e habilitado com a recente volta de revistas musicais aos palcos do país. No ano em que Tim Maia completaria 70 anos, eis aqui uma mais que justa homenagem do teatro à música e à cultura popular de volta a capital carioca em cartaz no mais que especial Theatro Net Rio

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Ficha técnica

Texto: Nelson Motta
Direção: João Fonseca

Elenco:
Tiago Abravanel/Danilo de Moura
Isabella Bicalho, Lilian Valeska, Pedro Lima, Andreh Vieri, Bernardo La Roque, Reiner Tenente, Evelyn Castro, Pablo Ascoli, Aline Wirley e Leticia Pedroza

Figurinos: Rui Cortez
Iluminação: Paulo César Medeiros
Ensaiador vocal: Paulinho Medeiros
Direção musical: Alexandre Elias

Músicos:
Violão e voz: Fernanda Dias
Violão, teclado e vocal: Henrique Torres
Contra-baixo, violão, banjo e vocal: Zé Siqueira
Bateria e vocal: Bruno Sotil

Coreografias: Sueli GuerraFigurinos: Rui Cortez
Fotos de Paula Kossatz
Cenário de Nello Marrese
Programação visual: Milton Menezes
Produção: Chaim Produções
Produção executiva: Joana Motta

sábado, 24 de novembro de 2012

Perto do Coração Selvagem (RJ)

Foto: divulgação

Embora sem força, um convite a Clarice Lispector


            Ao contrário do que diz o programa, não está em Clarice Lispector (1920-1977) a dificuldade de assistir ao espetáculo “Perto do Coração Selvagem”, dirigido por Luis Artur Nunes. O complicado ali é a má interpretação de Fernanda Thuran para a personagem Joana. O livro, o primeiro de Clarice, publicado em 1943, é um referencial na literatura brasileira por inaugurar no modernismo o neo-realismo, a prosa instrospectiva, subjetiva, distante do regionalismo vigente na época (Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Jorge Amado). Trazê-lo para o palco, e encenado com narradores falando em terceira pessoa, a rapsódia marcante das peças dirigidas por Nunes, é um ponto positivo relevante da peça. A questão negativa, entre outras, é que a fala monocorde e o rosto sem expressão com os quais Thuran dá vida para Joana faz com que a personagem mais pareça Macabéia (de “A Hora da Estrela”) do que propriamente Joana. Nela, o ritmo do espetáculo cai, permanecendo sem curvas e, a partir daí, sem força que empurre a dramaturgia para o fim. Como um todo, a peça funciona porque a salvam a direção ágil de Nunes e outros bons trabalhos do elenco. 

Das cortinas aos objetos do cenário e peças do figurino de Teca Fichinski, o vermelho se sobrepõe de forma negativamente inexplicável (assim como foi o verde em “A Moringa Quebrada”), reduzindo o sarcasmo, o veneno, a crueldade fria e livre com que, a partir de Joana, o leitor do romance e da peça vê os demais personagens e as situações. Quanto às interpretações, as construções, de um modo geral, não expressam o que está claro na novela literária: a selvageria de Joana é nada mais que um escudo utilizado por ela para se proteger do mundo que é mais cruel do que seus olhos o veem. Destacam-se positivamente as interpretações de Andréa Couto e de Alexandre Bordalho, porque sóbrias, realistas, com boas pausas, marcas de verdade que aproximam o espectador não só da peça como de Clarice. Iuri Saraiva, já elogiado na análise de “Homens”, nessa produção, com alguns momentos de exceção não apresenta bom trabalho, porque fleumático demais, cheio de trejeitos e partituras corpo-faciais expostas. 

Luis Artur Nunes é um dos grandes nomes do teatro brasileiro, tanto como pesquisador, como artista. Sua direção é marcante, isto é, sabemos quando uma peça tem sua assinatura sem precisar ler o programa (nesse ponto, estando próximo de João Fonseca, João Falcão, Gabriel Villela, Felipe Hirsh, Cibele Forjaz, Zé Celso, Luciano Alabarse, entre outros). Em “Perto do Coração Selvagem”, vemos como a dramaturgia é manipulada de forma a encenar o romance e não um texto dramático. Os atores se dividem e proporcionam um jogo em que são visíveis o momento da narração e o da representação, esses pautados pela mudança de cenários e de figurinos, pelas alterações na iluminação de Luiz Paulo Nenen (sem destaque, mas adequada) e, sobretudo, pela movimentação criativa em que os quadros se formam. 

No próximo ano, o romance “Perto do Coração Selvagem”, escrito quando Clarice tinha apenas 23 anos, completa sete décadas. Apesar dos entraves, o espetáculo em cartaz no Shopping da Gávea, é um bom convite para descobrir Clarice ou conviver um pouco mais com seu universo ainda tão atual e enriquecedor. 

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Ficha técnica:




Direção e Dramaturgia
Luís Artur Nunes

Elenco:
Fernanda Thuran
Klaís Bicalho
Monique Franco

Atores convidados
Andrea Couto
Iuri Saraiva
Alexandre Bordallo

Cenário e Figurino:
Teca Fichinski

Iluminação:
Luiz Paulo Nenen

Trilha Sonora
Pedro Veríssimo

Direção de Movimento:
Ana Bevilacqua

Preparação Vocal:
Jaqueline Priston

Assistente de direção:
Daniel Granieri

Direção de produção:
Lucia Regina Souza

Produtores Associados
Grupo Quatro Pontas
Caravana Produções

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

R & J de Shakespeare (RJ)

Foto: divulgação

Um dos melhores espetáculos do teatro carioca


           Dentre as muitas coisas interessantes de “R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida” é o fato de que a produção assume o óbvio com orgulho: não estamos ali para saber o que vai acontecer, mas para ver como o que acontece será mostrado. “Romeu e Julieta” é uma daquelas histórias que as pessoas no ocidente já nascem sabendo, talvez, sendo tão famosa quanto a de Jesus Cristo do lado de cá no mundo. Quando anoitece e um grupo de quatro jovens, alunos provavelmente de um colégio interno idílico como em “Sociedade dos Poetas Mortos”, descobrem o livro e a história contada pelo dramaturgo inglês, tem-se início aí um jogo de quem vai fazer qual personagem e é a isso que se quer assistir. Dirigido por João Fonseca, a montagem brasileira do texto de 1997 do americano Joe Calarco, com tradução de Geraldo Carneiro, ganhou com razão muitos prêmios e elogios por onde tem andado desde sua estreia em janeiro de 2011. As interpretações estão excelentes, a iluminação, o cenário e o figurino são impecáveis e a movimentação é criativa em cada nova cena. 

João Fonseca criou um jogo interminável de poesia, conteúdo e agilidade no palco. As soluções são inusitadas, surpreendentes e dão uma vivacidade exuberante para a narrativa cênica. Trata-se de excelente teatro do início ao fim sem baixas. João Gabriel Vasconcellos e Felipe Lima têm menos oportunidades de mostrar trabalho, mas o fazem bem sempre que podem. Pablo Sanábio e, principalmente Rodrigo Pandolfo brilham em cena na multiplicidade de personagens que executam, entre eles, Julieta, Ama e Frei Lourenço. O espaço é usado com inteligência em seus diversos níveis e potencialidades, a voz e o corpo estão integrados no mesmo sentido. 

Feito para uma arena, o cenário de Nello Marrese se adapta ao palco italiano sem perder a potência. O disco de madeira, com apartes onde se localizam as classes deixam ver livros, disponibilizando pensar no jogo sobre a literatura e a cultura ocidental. O figurino de Ruy Cortez traz elegância para a narrativa sem endurecê-la. A iluminação de Luiz Paulo Nenen auxilia positivamente no ritmo, na narrativa, nas intepretações, mas sobretudo no cenário e no figurino. A conversa que a trilha sonora de João Bittencourt e de André Aquino estabelece com outras adaptações de “Romeu e Julieta”, como as versões cinematográficas de Franco Zeffirelli e de Baz Luhrmann e a versão musical “West Side Story”, marca a criação de novos níveis de percepção que só podem ser elogiados. 

“R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida” não trata apenas da morte por amor dos jovens de Verona na Itália medieval de que trata o bardo em uma de suas tragédias mais famosas. Aqui há o convite e o feliz aceite para o interrompimento da atenção do que há no além da narrativa e a homenagem que os sentidos do espectador podem fazer para o que acontece no palco. Eis o teatro de altíssima qualidade! Bravo!

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Ficha técnica:
Adaptação: Joe Calarco
Tradução: Geraldo Carneiro
Direção: João Fonseca
Com Felipe Lima, Geraldo Rodrigues, João Gabriel Vasconcellos e Pablo Sanábio
Cenário: Nello Marrese
Figurinos: Ruy Cortez
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Trilha Sonora: João Bittencourt e André Aquino
Direção de produção: Beto Bk e Giba Ka
Idealização: Felipe Lima e Pablo Sanábio

Lar Longe Lar (RJ)

Foto: divulgação

Texto ruim e más interpretações


           “Lar Longe Lar” tem inúmeros problemas de encenação e, por isso, não é um bom espetáculo. A narrativa não diz a que veio, vários trabalhos de interpretação deixam a desejar e a direção de Gilberto Gawronski, de um modo geral, fica complicada de bem avaliar uma vez que a peça, como um todo, não se estabelece a contento. 

Escrito em 2010, por Miriam Halfim, o texto foi finalista na Seleção Brasil em Cena 2011, do Centro Cultural do Banco do Brasil. O que se vê, no teatro do Solar de Botafogo, talvez, seja, então, uma má versão dele para o palco. José (José de Ipanema) é um judeu polonês que tem uma esposa e três filhos. A fim de conseguir uma vida melhor, parte ele da Europa para a América do Sul, em 1928, atrás de um primo distante chamado Efraim (Rafael Ferrão). A cena de abertura do espetáculo é a conversa entre o primo pobre e o primo rico, em Buenos Aires, quando o segundo dá uma negativa ao primeiro. Ipanema, mas principalmente Ferrão apresentam péssimos trabalhos de intepretação: sem verdades, cheios de excessos, fleumáticos, superficiais. O ritmo da narrativa tem seus momentos mais graves quando eles estão em cena. 

Na sequência, José (Ipanema) retorna para a Polônia, mas, então, resolve, retornar (de novo!) para a América do Sul, só que, dessa vez, com a família toda e para o Rio de Janeiro. É quando, finalmente, um conflito aparece e ganha um pequeno (curtíssimo) desenvolvimento, além de expresso em boas interpretações. Em meio ao trabalho, a mãe (Raquel Tamaio) nota que o filho mais velho (Diego Araújo) do casal está deprimido, porque, na Polônia, ficou seu grande amor. Decidida, a mãe, agora, precisa convencer o marido e os dois filhos mais novos (Nina Reis e Thiago Freire) a voltarem para o país de origem, sem revelar-lhes o real motivo. O bom jogo dramático que acontece no diálogo entre o filho e a sua mãe (Araújo e Tamaio), infelizmente, não se repete entre a esposa e o marido (Tamaio e Ipanema). Sem com quem contracenar, Raquel Tamaio ganha a cena facilmente e a família inteira retorna para a Europa quase sem empecilhos. 

Os anos passam e o Nazismo ganha força no país vizinho (Hitler se tornou chanceler alemão em 1933, cinco anos depois do início da história contada em “Lar Longe Lar”). É preciso novamente abandonar a Polônia. O destino escolhido é novamente o Brasil. Quem for assistir ao espetáculo perceberá que nada mais de interessante realmente acontecerá a partir daí e a história parece terminar sem um fim claro. Sabe-se, por vias externas, que a Segunda Guerra começou com a invasão da Polônia pela Alemanha em 1o de setembro de 1939, nove anos depois de 1928. No palco, no entanto, o filho mais novo (Thiago Freire) continua sendo uma criança como na primeira cena. 

Assim, do início ao fim, “Lar Longe Lar” é uma fraca galeria de acontecimentos de uma família judia que vai de um lado para o outro sem a poesia do clássico “O Violinista no Telhado”. Pequenos conflitos surgem, mas são rapidamente resolvidos sem um personagem que seja forte o suficiente (como no caso do musical citado) para dar base à narrativa, consistência e coesão. 

Com um bonito cenário, mas que “enche o palco”, dificultando a movimentação, e figurino da Espetacular! (Ney Madeira, Dani Vidal, Pati Faedo), o espetáculo tem uma luz interessante de Paulo César de Medeiros e uma trilha sonora óbvia de Warley Goulart (a primeira música é de “O Violista no Telhado”) bastante mal operada por Paula Jubé. 

Texto ruim unido a más interpretações não resulta em uma boa encenação apesar do esforço, que deve ser elogiado. Gawronski e Goulart são responsáveis por outros bons espetáculos no teatro carioca o que prova que o que se avalia de um espetáculo quer apenas dizer sobre a obra em questão, devendo o merecido respeito a quem por ela é responsável. Fica-se na espera por outra produção assinada por esses artistas. 


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Ficha técnica:

Texto: Miriam Halfim
Direção: Gilberto Gawronski
Diretor Assistente: Fernando Philbert

Elenco: Diego Araújo, José de Ipanema, Nina Reis, Rafael Ferrão, Raquel Tamaio e Thiago Freire.

Direção musical: Warley Goulart
Cenário e Figurino: Espetacular! (Ney Madeira, Dani Vidal, Pati Faedo)
Luz: Paulo César de Medeiros
Supervisão de movimento: Joice Niskier
Assistente de Figurino: Renata Lamenza
Contrarregra e montagem: Gleice Caxias
Operação de Luz: Felipe Coquito e Romiro Vasques
Produção: Maria Alice Silvério Lima

A negra Felicidade (RJ)


Foto: divulgação

A forma cênica da complexidade: um excelente programa
“A negra felicidade” é um excelente espetáculo por vários motivos. Primeiro, porque os temas da escravidão no Brasil (o último país do mundo a libertar oficialmente seus escravos) e do racismo são tratados pelo todo de forma extremamente singela, mas sem melodrama, de forma profunda, mas sem retórica aparente. Segundo, porque a dramaturgia une bem quatro tipos diferentes de fontes discursivas, de jeito que uma faz sentido em relação a outra sem obviedades, mas com poesia. Terceiro, porque a direção de Moacir Chaves é corajosa em acreditar em um texto tão duro, tão árduo, tão seco, mantendo, em quase todos os momentos, a movimentação discreta e sem disfarces. E, por fim, mas não menos, pela excelente interpretação que o elenco oferece ao público: palavras bem ditas, oratória precisa, dicção exata e pausas nobres. Trata-se de um trabalho difícil de assistir, mas compensador, porque, fugindo dos lugares usuais, ele investe com vigor em uma proposta cheia de méritos. 

Em 1870, a escrava Felicidade protocolou um processo na justiça do Rio de Janeiro contra o seu senhor, Antônio Vietas da Costa, afim de que fosse reconhecida a sua liberdade. Uma das quatro bases da dramaturgia do espetáculo “A negra Felicidade” são os atos desse processo jurídico: atas, protocolos, extratos de depósito e de saque, memorandos, encaminhamentos, relatórios. Falado no linguajar da época e dito em sua completude, o espectador vai desvendando os acontecimentos do texto na medida em que vai driblando o palavrório usual do direito e interpretando os fatos. Reconhecer o que realmente houve entre a escrava e seu dono é complicado, mas é valorosa a opção da dramaturgia em trazer para o palco os atos judiciais em sua integridade. Além de uma bela homenagem à língua portuguesa, o gesto revela as relações mais vibrantes: a posse de um ser humano sobre outro ser humano, o gesto da compra, da venda, do empréstimo e do pagamento em dinheiro e em trabalhos forçados, a lógica e os valores da época que, diferentes dos de hoje, situavam criminosos e vítimas em lugares, talvez, opostos. Intercalam-se na narrativa hostil, o belíssimo “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, do Padre Antônio Vieiera, uma das pérolas da literatura barroca; um trecho de “O Jardim das Cerejeiras”, de Anton Tchekhov; e anúncios do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro do ano de 1870 que tratam da busca de escravos fugidos, de suas características e de recompensas para quem achá-los. Sem verdades absolutas, porque o assunto é indiscutível, “A negra Felicidade” não duvida da inteligência dos seus espectadores, mas ressalta o seu lado humano em atender o seu chamado: é preciso, como diz o dramaturgo russo citado, purgar o passado. 

Com positivos destaques para Andy Gerker, Fernando Lopes de Lima, Peter Boos, Adriana Seiffert e Edson Cardoso, o elenco, composto também por Danielle Martins de Farias, Diego Molina, Elisa Pinheiro, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Renata Guida e Rita Fischer, tem apenas nessa última o seu momento negativo. Em uma determinada cena, Fischer parece querer se sobrepor ao texto, “enfeitando-o” com uma interpretação fleumática, o que felizmente não lhe acontece sempre e, ainda bem, tampouco em outras situações do elenco. 

O cenário de Fernando Mello da Costa perde a oportunidade de ser melhor. Composto por vários objetos entulhados, seu lado positivo é ilustrar a complexidade das relações e dos temas, além da profundidade dessas marcas tão antigas, mas ainda tão presentes. O lado negativo é simplesmente ilustrar. Boa a iluminação de Aurélio de Simoni, a direção musical de Tato Taborda e os figurinos de Inês Salgado. 

Na semana em que se comemorou o Dia da Consciência Negra, sem dúvida, “A Negra Felicidade” foi uma das melhores programações. Em outras oportunidades, não menos o será. 

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Ficha técnica:


Direção: Moacir Chaves
Dramaturgia: Moacir Chaves

Elenco: Andy Gercker, Adriana Seiffert, Danielle Martins de Farias, Diego Molina, Edson Cardoso, Elisa Pinheiro, Fernando Lopes Lima, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Peter Boos, Renata Guida e Rita Fisher.

Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Inês Salgado
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção Musical: Tato Taborda
Produção: Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Diego Molina e Danielle Martins de Farias
Assistência de Produção: Denise Pimenta
Contraregragem: Edmar da Rocha e Isaque Fernandes
Patrocínio: Eletrobrás, Lei Rouanet de Incentivo a Cultura e Governo Federal
Realização: Alfândega 88 Cia. de Teatro
Um projeto: Urbana Produções

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Esta Criança (RJ)

Foto: divulgação

Espetáculo frio na busca por acertar

            “Esta Criança” permanece um espetáculo frio apesar do visível esforço da direção de Márcio Abreu, sobretudo em termos de direção de arte. Escrito pelo francês Joël Pommerat, a reunião de cenas trata da relação entre crianças e adultos: família, jovens que engravidam jovens, pais e filhos adultos que discutem, mães que que vão reconhecer filhos mortos, mães que não veem seus sonhos realizados em seus filhos, entre outros contextos próprios do universo familiar. Com exceção de uma única história, o problema do todo é que nenhuma força empregada parte de um impulso reconhecível. Todas as cenas são clímaxes, são ápices, são pontos altos de histórias que o público não vê. Em cena, estão apenas os recortes, como se assistíssemos ao último capítulo da novela sem termos visto nenhum dia anterior da história que agora chega ao seu auge. As lágrimas podem vir, os personagens podem emocionar, mas o resultado é distante do que, a princípio, pareceu sonhar os seus realizadores. 

A única exceção infelizmente não acontece no fim, isto é, depois dela, ainda há excessos. Trata-se da cena em que duas vizinhas devem ir reconhecer um corpo que poderá ser filho de uma das duas, um amigo de seus filhos ou um total desconhecido. Em primeiro lugar, porque aí o assunto é, como todos sabem, a “célebre pior dor que pode ser sentida” (a da mãe vendo um filho morto), mas também porque, no diálogo que as duas personagens estabelece antes do reconhecimento, notam-se as raízes, as bases necessárias para o envolvimento do público com a história: quem são as personagens, quais suas semelhanças e diferenças, quais seus medos e seus sonhos. Além disso, a estrutura dramática dessa única cena tem reviravoltas, peripécias e curvas, trazendo a gargalhada quando deveria vir o choro e o choro aparece contido e delicado, forte e sublime. 

Renata Sorrah apresenta boas performances em quase todos os momentos e, no elenco, é a única que merece positivo destaque. Deve-se apenas corrigir uma certa marca que, enquanto intérprete, ela parece repetir em vários de seus papéis: Sorrah sorri enquanto exibe olhos tristes quando fala com esperança. Giovana Soar oferece um bom trabalho, mas com poucas oportunidades de explorar mais os seus personagens. Edson Rocha tem uma interpretação monocórdia e sem vida e Ranieri Gonzalez é quem sustenta o pior trabalho: sem variações, ou seus personagens gritam, ou ficam calados, ou são nervosos ou estanques, sem meio-tons, sem marcas de veracidade e com muito exagero. 

“Esta Criança” tem seus melhores momentos no cenário de Fernando Marés, nos figurinos de Valéria Stefani, na sonoplastia de Felipe Storino, mas sobretudo na iluminação de Nadja Naira, que também assina a assistência de direção. O impacto do lugar deslocado, que está em desnível em relação ao solo mas que também avança sobre a plateia, deixando exposto parte do interior do palco, convida o espectador a olhar com outros olhos para o subterrâneo das relações familiares. A luz que entra através de frestas, os rostos que ficam positivamente no escuro em vários momentos, as saídas e entradas discretas de quem participa das cenas demonstram um jogo valoroso da direção em exibir uma concepção inteligente que, porque teatro é mais do que movimento e visual, não se estabelece como gostaríamos. 

Produzido por Renata Sorrah e pela Companhia Brasileira de Teatro, “Esta Criança” ainda busca acertar.

*

Ficha técnica:



Texto: Joël Pommerat
Tradução: Giovana Soar
Direção: Márcio Abreu
Elenco: Renata Sorrah, Ranieri Gonzalez, Edson Rocha e Giovana Soar
Assistente de Direção e Iluminação: Nadja Naira
Cenário: Fernando Marés
Figurino: Valéria Stefani
Sonoplastia: Felipe Storino
Direção de Produção: Faliny Barros

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Amores Surdos (MG)

Foto: divulgação

Quando a música não precisa de canções, um espetáculo impactante


           Vivendo o momento é sempre mais difícil analisá-lo. Mais ainda é descrevê-lo. Ao reproduzi-lo, corre-se o risco de, ao fazê-lo, não fazê-lo, que é quando o teatro fica tão próximo da realidade além da narrativa que até parece não ser teatro. Ao embrenhar-se por sua conta e risco nesse desafio mais terrível, o grupo mineiro Espanca! acertou em potencializar (dar potência) ao que de simbólico há no real de forma que o teatro pudesse ser trampolim para a realidade reproduzida. Com isso, o real além da narrativa está nessa peça tão fortemente simbólico, e por isso vivo, que o espetáculo “Amores Surdos” parece “esfregar na cara” da plateia o seu próprio reflexo. Desde o monólogo “Estamira”, de Dani Barros, com direção de Beatriz Sayad, não se via algo tão impactante. 

As marcas da contemporaneidade, que faz a produção verdadeiramente cheirar a Hoje, são possíveis de ser vistas 1) no texto; 2) na forma de dizer o texto; 3) no não-texto; 4) nos elementos visuais (paleta de cores e texturas), nos elementos sonoros (a trilha, o ritmo, o sapateado) e nos elementos proxêmicos (as relações de proximidades e de distâncias entre os atores em si e deles com o público). Para o leitor leigo, é preciso que ele saiba que essas são as estruturas que fundam o teatro desde a Grécia até o dia de hoje, embora, por muito tempo, pareceu ser apenas o texto o ponto importante. “Amores Surdos”, que estreou em 2006, diz muito quando não diz, mas diz mais ainda quando não ouve e quando vê. 

No apartamento de cima, onde moram os vizinhos, briga-se muito. E quando os gritos lá estão muito altos, eles ligam música clássica a todo o volume a fim de disfarçar para o resto do condomínio. Chega um anúncio do edifício dizendo que, a partir de agora, será permitido aos moradores criarem cães e chegam também várias ligações de um dos filhos que mora longe, onde cai a neve e o fuso horário é diferente do daqui. Ele sente saudades de sua família, quer saber se o seu quarto ainda está intacto, manda presentes, sente a falta de todo mundo. Um dos filhos sente falta de ar. O outro é sonâmbulo. O outro não consegue sair para trabalhar. A outra ouve músicas o dia inteiro. O pai parece estar no quarto, a mãe cuida de todo mundo, ocupada em educar, acolher, ensinar, levar adiante a rotina para a qual, talvez, fora criada. Então, em uma família bem penteada que não é nem preta, nem branca, mas cinza, vem a lama. Marrom, pastosa, suja. 

Com texto de Grace Passô e com direção de Rita Clemente, “Amores Surdos” é a segunda produção do grupo. Nele, como já foi dito, do ritmo da respiração dos intérpretes às marcas de entradas e saídas de cada elemento, ou jogo estabelecido entre as partes, tudo é teatro medido, testado e brilhantemente aprovado. Não há nada a mais, nem a menos. Quando não sabemos o que faz um dos filhos (Sanuel/Marcelo Castro) do lado de fora, por que ele não consegue partir, por que ele não consegue voltar, para onde ele deveria ter ido, é aí que se encontram as funções que o espectador contemporâneo precisa executar num tipo de teatro que lhe diga algo mais que o apenas entretenha. Quando a mãe é gentil com o filho (Joaquim/Assis Benevenuto) enquanto dorme, mas dura com ele quando está acordado, eis aí, talvez, a metáfora para as relações virtuais, aquelas que se estabelecem sem ser atuais, ou apenas postas em uma zona confortável, mas com regras múltiplas (os rizomas de Deleuze e de Guattari). Quando todos sabem o que acontecem no andar de cima, mas não sabem o que há no quarto do filho que partiu para o exterior, ou esteve o pai da família nos últimos cinco anos, então, Passô se aproxima (e muito!) de Nick Silver e constrói um “Pterodáctilos” brasileiro, do interior da casa, há de surgir uma lama suja que limpará todo o mal. O “golpe de mestre” vem em seguida: a única forma de limpar o mal é mantê-lo como está. 

“- Ninguém vai matá-lo. Tem coisas que não se matam. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Essa é a nossa realidade. Não se arranca a coluna por causa da dor nas costas. Este bicho vai continuar aqui, nessa casa, dentro de nós. Dentro de nós. Ninguém vai mata-lo. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com ela. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas.” 

Cada filho, Assis Benevenuto (Joaquim), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele), oferece excelente interpretação, vista na forma como falam e como silenciam, como se mexem e como mostram sentir. Com mais possibilidades de aparecer, mas aproveitando todas elas e criando muitas outras, Grace Passô é uma das atrizes cujo trabalho fica na retina para muito além do fim do espetáculo. Com viva inteligência em cena, o foco é dela e usado com maestria quando está em cena, sem hierarquizar negativamente a atenção, mas centrar a narrativa nessa que é uma das figuras centrais da história: a mãe. Com decisiva concepção de cenário (Bruna Christófaro) e de figurino (Paolo Mandatti), a iluminação de Cristiano Araújo e de Edimar Pinto confere ao todo a inclusão da realidade alheia e, ao mesmo tempo, a certeza de que estamos vendo uma história. Teatro e não teatro se confundem sob as lâmpadas abaixo do teto de PVC. 

Daniel Mendonça assina a trilha sonora, mas é preciso dizer que “Amores Surdos” é um musical dos bons assim como “O Leopardo”, de Luccino Visconti. A música está presente em todo o espetáculo sem esperar pelas oportunidades óbvias da dança ou da canção como nas produções comuns, mas cavando lugar em circunstâncias inusitadas. O número de sapateado é brilhante em forma e em conteúdo, para citar apenas um momento. No silêncio de uma das cenas do fim, inclusive, vem o refrão: 

“- Vocês, por favor, já podem ligar seus telefones. Alguém pode estar chamando por vocês e isso é muito importante.” 

Recomendo com veemência, desejo Vida Longa e agradeço. 


*

FICHA TÉCNICA

Direção: Rita Clemente
Dramaturgia: Grace Passô

Atores: Assis Benevenuto (Joaquim), Grace Passô (Mãe), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele).

Consultoria Dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistente de Direção: Mariana Maioline
Cenografia: Bruna Christófaro
Iluminação: Cristiano Araújo e Edimar Pinto
Figurino: Paolo Mandatti
Trilha Sonora: Daniel Mendonça
Direção Vocal: Babaya
Preparação Vocal: Mariana Brant e Camila Jorge
Preparação Corporal: Dudude Herrmann e Izabel Stewart
Coreografia/Professor de Sapateado: Eurico Justino
Técnico e Operador de Luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Silva
Costureiras: Mércia Louzeiro e Ireni Barcelos
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!

domingo, 4 de novembro de 2012

DziCroquettes em Bandália (RJ)

Foto: divulgação

Afora os preconceitos, encantamento e diversão  


Talvez, o realmente único grave entrave de “DziCroquettes em Bandália – Um musical eletrônico” seja a expectativa e há um pouco de estímulo vindo negativamente da produção nesse sentido. No texto do programa, consta o seguinte: “Símbolo da contracultura na década de 70, os “DziCroquettes” estão de volta.” Não, não estão de volta. Quem for no Teatro Leblon assistir a “DziCroquettes em Bandália – Um musical eletrônico” não vai voltar ao passado, no Teatro Tereza Rachel, no meio da ditatura militar e achar revolucionário um grupo de homens magros e peludos vestidos ora de homem, ora de mulher, ora de ambos em excelentes coreografias de Lennie Dale. E, se pensar dessa forma, vai sair frustrado. “DziCroquettes em Bandália – Um musical eletrônico” é um ótimo NOVO espetáculo, que conserva na estética algumas referências com os Dzis antigos, mas em um novo tempo, para um novo público, com um novo elenco. A revolução, enfim, acabou, mas a arte continua. E, no novo formato, continua bem. 

Encerrando qualquer comparação entre o espetáculo e o grupo que transformou o teatro brasileiro há quarenta anos, os novos Dzis não são nem magros e nem peludos, mas sarados e lisos. Os personagens, e a confusão entre o que é real e o que é ficção já deixou de ser inovadora há muitas décadas, são um grupo de rapazes que estão dispostos a vivenciar a sua própria sexualidade e a vida de um jeito mais livre e despojado. Vivendo em uma garagem, eles descobrem o documentário sobre “DziCroquettes” (2009, Tatiana Issa e Raphael Alvarez) e, inspirados naquela estética, transformam o lugar em uma casa de shows, mas, também, em um lugar onde corpos são vendidos ao prazer a fim de ganhar-se algum dinheiro. O mote, que não passa de um mote, pois permanece sem desenvolvimento e sem final, é apenas um motivo para os números de dança e de música que surgem do início ao fim e encantam, em sua maioria, a plateia. Com destaque positivo para as cenas de Flamenco, para o número de Kiko Guarabira e para “Dois prá, Dois pra cá” (belamente interpretada por Leandro Mello), apenas para citar três grandes momentos, o espetáculo apresenta um conjunto de bons cantores e bons dançarinos que, dirigidos por Ciro Barcelos, que também atua no elenco, ficarão ainda melhores com o tempo, as sucessivas temporadas e, espera-se, os novos espetáculos que darão continuidade ao projeto que agora estreia. 

Com exceção da participação de Bayard Tonelli, que interpreta “Borboletas também sangram” com força, ritmo e com magia, todas as cenas de texto se justapõem estranhamente com a estrutura da peça como se dela não fizessem parte, mas fossem legendas explicativas para o que se está vendo. A cena em que os atores pedem dinheiro ao público é negativamente agressiva, porque constrangedora (principalmente porque o público dos Dzis de hoje é burguês e não mais alternativo como, talvez, o era há quarenta anos). Há um apelo cansativo, mas não desnecessário, em repetir que o espetáculo foi montado sem recursos e uma tensão, essa, sim, exagerada em discutir a multiplicidade de orientações sexuais que pairam no elenco de atores e/ou de personagens. O desgaste desses momentos age em sentido oposto aos excelentes e marcantes figurinos de Claudio Tovar, que exploram com beleza e com criatividade tanto o lado feminino como o lado masculino, ora com divisões, ora sem elas, de cada intérprete e/ou figura. Impressa em cada roupa, a assinatura de Tovar, participante como Bayard e como Ciro do antigo grupo dos Dzis, pontua as ligações suficientes com o grupo referencial. 

Ciro Barcelos, antes e depois de tudo, está de parabéns pela coragem de ter liderado essa produção. Sem medo das comparações que vieram e, infelizmente porque equivocadas ainda virão, o novo espetáculo e o novo grupo estão em pé de forma viva e potente. Os temas do século XXI são outros, a discussão política tem outra cara, o impacto da misoginia não é o mesmo. Mas “DziCroquettes” faz parte da história do teatro brasileiro e o esforço, nem sempre alcançado, em não cristalizá-lo merece incentivo (sobretudo financeiro) e aplauso. Com empenho e valor, a direção musical de Demétrio Gil e design de som de Washington Campos, o cenário de Barcelos e de Guarabira (que seria muito mais animadamente fruído em uma casa de shows do que num comportado palco italiano) e a luz de Aurélio de Simoni fazem de “DziCroquettes em Bandália – Um musical eletrônico” mais um musical que celebra o Rio de Janeiro, o teatro nacional e o público cada vez mais atento a produções bem feitas. 

Uma vez que está na origem etimológica da palavra “teatro” o conceito de “lugar de onde se vê”, o que o público espera ver no palco não é, afinal de contas, algo tão impensável assim. Se, nesse sentido, o teatro acontece de verdade no olhar do público, que ele se deixe acontecer sem conceitos anteriores, mas com o coração aberto para algo novo cheio de encantamento e de diversão. 

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FICHA TÉCNICA

ProduçãoGeral: Cristal Produções Entretenimento
Concepção, roteiro e direção Geral: Ciro Barcelos
Assistente de direção e roteiro: Radha Barcelos
Músicas,letras e texto: Ciro Barcelos
Colaboraçãode textos: Colaboração Coletiva
DireçãoMusical, vocal e arranjos: Demetrio Gil
Figurinista:Claudio Tovar
Participaçãona estamparia de figurino: Victor Dzenck
Coreografia:Ciro Barcelos e Kiko Guarabyra
Cenógrafo:Pedro Valério
Designde Luz: Aurélio de Simoni
Designde Som: Washington Campos
Produçãode Elenco: Radha Barcelos
ProduçãoExecutiva: Renata Fagundes & Fernanda Fagundes

ELENCO

*Ciro Barcelos
*Wilson Procopio
*Franco Kuster
*Thadeu Torres
*Pedro Valério
*Cleiton Morais
*Kiko Guarabyra
*Leandro Mello
*Demétrio Gil
* Sonny Duque
*Kostya Biriuk
* Bayard Tonelli

sábado, 3 de novembro de 2012

Noites Brancas (RJ)

Foto: divulgação

Narração e narrativa em um equilíbrio interessante

Uma das questões mais interessantes do espetáculo “Noites Brancas” é o fato de que, em sua encenação, o ato da narração tem tanta importância quanto a narrativa. Interessante não significa nem realmente bom, nem realmente ruim, mas peculiar. Pode-se dizer com segurança que, fosse um Dostoiévski comum, isto é, realista psicológico, como “Irmãos Karamazov”, “Crime e Castigo” ou como “O Idiota”, o resultado sairia melhor porque, nesses romances, a análise do personagem é mais interessante do que o que ele faz. Dirigido por Thierry Trémouroux, diretor belga radicado no Brasil, e com atores, não atores e músicos no elenco, o espetáculo produz imagens ricas em beleza, cheias de sonoridade e com ótimas interpretações. O destaque está para a atriz francesa Hélène De Reymaeker, para o ator Rafael Veríssimo, para o cenário e figurino de Desirée Bastos e para a direção musical de Fabiano Krieger e de Lucas Marcier. 

“Noites Brancas” é um Dostoiévski inicial, um Dostoiévski romântico, assim como Machado de Assis em “Ressurreição” e em “A Mão e Luva”, ambos muito distantes de “Dom Casmurro”. É a história de amor de um rapaz que encontra, numa noite branca (um fenômeno em que o céu permanece claro mesmo após o sol se pôr porque ele permanece pouco abaixo da linha horizonte), uma moça triste nas margens do rio Niéva. Ele conta a história dele pra ela, ela conta a história dela pra ele. Ele se apaixona perdidamente por ela e ela aceita ficar com ele. Então, o grande amor da vida dela, que, a princípio, não viria nunca, reaparece e o rapaz, que é quem conta a história 15 anos depois, fica sozinho. Ou seja, toda a história é vista a partir daquele que ficou sozinho. O leitor não tem o ponto de vista nem dela, nem do outro que chegou. E é esse olhar único que a encenação de Thierry Trémouroux resgata ou quer resgatar. A pergunta é: o quanto de nós empregamos na história ao contá-la? Assim, o jogo no palco é de contadores vários para uma história única. Os personagens se sucedem em vários idiomas, em várias marcações, em várias traduções. E é bem feito na medida em que as cenas se alternam, mas permanecem como resultado imagens poéticas cheias de fluidez sem menos profundidade. 

Raquel Karro e Thales Coutinho, mas sobretudo Hélène De Reymaeker e Rafael Veríssimo têm interpretações sensíveis, cheias de docilidade e de candura, trazendo à superfície toda uma carga emocional presente no texto e, então, no todo da encenação. A cena final, coroada com a frase que termina o romance, fica na retina positivamente junto de outras tantas que foram vistas no decorrer da narrativa. Talvez a curva dramática que retoma a história não fique tão clara, mas eis aí o limite bravamente cruzado que separa o que é teatro do que é literatura. No palco da Cia dos Atores, é o primeiro que se celebra. 

Desirée Bastos constrói um lugar nobre para a narrativa. Muitos papéis brancos juntos dentro de um quadrado semi-transparente são a neve e a desolação, a frieza não só da paisagem russa, mas da solidão seja onde for que ela estiver sendo sentida. Os detalhes dos belos figurinos, sobretudo dos ternos, mas também dos vestidos ampliam os níveis de percepção da obra positivamente. A iluminação de Renato Machado, mas ainda mais a direção musical de Fabiano Krieger e de Lucas Marcier constróem lugares, marcam o ritmo e enriquecem os quadros. A sonoridade da fala russa, dita por Nancy Gaissionok, traz uma musicalidade ímpar que reforça a importância da narração em relação à narrativa. 

“Noites Brancas” é fruto de um processo composto por várias etapas, pontuado por cinco residências voltadas para a tradução do texto literário: três delas na Cia dos Atores, uma no Atelier de Preparação de Atores em Angra dos Reis e uma no Centro de Reciclagem de Atores no Rio de Janeiro. Após uma temporada no Espaço Sesc de Copacabana, em que se apresentou o primeiro capítulo com o título "Primeira Noite: Não se apaixone por mim", agora, enfim, a versão final que estreou no Festival Tempo. Vida longa! 

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Ficha técnica:

Direção: Thierry Trémouroux
Em cena: Arley Veloso, Clarisse Zarvos, Hélène De Reymaeker, Nancy Gaissionok, Rafael Veríssimo, Raquel Karro, Thales Coutinho e Fabiano Krieger
Dramaturgia: Thierry Trémouroux
Consultoria de Dramaturgia: Luisa Buarque
Cenário e Figurino: Desirée Bastos
Assistente de Cenário e Figurino: Amanda Ramos
Iluminação: Renato Machado
Direção Musical: Fabiano Krieger e Lucar Marcier
Programação Visual: Bruno Perlatto, Thierry Trémouroux e Raquel Karro
Produção Executiva: Fernanda Avellar e Marina Gadelha