quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A negra Felicidade (RJ)


Foto: divulgação

A forma cênica da complexidade: um excelente programa
“A negra felicidade” é um excelente espetáculo por vários motivos. Primeiro, porque os temas da escravidão no Brasil (o último país do mundo a libertar oficialmente seus escravos) e do racismo são tratados pelo todo de forma extremamente singela, mas sem melodrama, de forma profunda, mas sem retórica aparente. Segundo, porque a dramaturgia une bem quatro tipos diferentes de fontes discursivas, de jeito que uma faz sentido em relação a outra sem obviedades, mas com poesia. Terceiro, porque a direção de Moacir Chaves é corajosa em acreditar em um texto tão duro, tão árduo, tão seco, mantendo, em quase todos os momentos, a movimentação discreta e sem disfarces. E, por fim, mas não menos, pela excelente interpretação que o elenco oferece ao público: palavras bem ditas, oratória precisa, dicção exata e pausas nobres. Trata-se de um trabalho difícil de assistir, mas compensador, porque, fugindo dos lugares usuais, ele investe com vigor em uma proposta cheia de méritos. 

Em 1870, a escrava Felicidade protocolou um processo na justiça do Rio de Janeiro contra o seu senhor, Antônio Vietas da Costa, afim de que fosse reconhecida a sua liberdade. Uma das quatro bases da dramaturgia do espetáculo “A negra Felicidade” são os atos desse processo jurídico: atas, protocolos, extratos de depósito e de saque, memorandos, encaminhamentos, relatórios. Falado no linguajar da época e dito em sua completude, o espectador vai desvendando os acontecimentos do texto na medida em que vai driblando o palavrório usual do direito e interpretando os fatos. Reconhecer o que realmente houve entre a escrava e seu dono é complicado, mas é valorosa a opção da dramaturgia em trazer para o palco os atos judiciais em sua integridade. Além de uma bela homenagem à língua portuguesa, o gesto revela as relações mais vibrantes: a posse de um ser humano sobre outro ser humano, o gesto da compra, da venda, do empréstimo e do pagamento em dinheiro e em trabalhos forçados, a lógica e os valores da época que, diferentes dos de hoje, situavam criminosos e vítimas em lugares, talvez, opostos. Intercalam-se na narrativa hostil, o belíssimo “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, do Padre Antônio Vieiera, uma das pérolas da literatura barroca; um trecho de “O Jardim das Cerejeiras”, de Anton Tchekhov; e anúncios do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro do ano de 1870 que tratam da busca de escravos fugidos, de suas características e de recompensas para quem achá-los. Sem verdades absolutas, porque o assunto é indiscutível, “A negra Felicidade” não duvida da inteligência dos seus espectadores, mas ressalta o seu lado humano em atender o seu chamado: é preciso, como diz o dramaturgo russo citado, purgar o passado. 

Com positivos destaques para Andy Gerker, Fernando Lopes de Lima, Peter Boos, Adriana Seiffert e Edson Cardoso, o elenco, composto também por Danielle Martins de Farias, Diego Molina, Elisa Pinheiro, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Renata Guida e Rita Fischer, tem apenas nessa última o seu momento negativo. Em uma determinada cena, Fischer parece querer se sobrepor ao texto, “enfeitando-o” com uma interpretação fleumática, o que felizmente não lhe acontece sempre e, ainda bem, tampouco em outras situações do elenco. 

O cenário de Fernando Mello da Costa perde a oportunidade de ser melhor. Composto por vários objetos entulhados, seu lado positivo é ilustrar a complexidade das relações e dos temas, além da profundidade dessas marcas tão antigas, mas ainda tão presentes. O lado negativo é simplesmente ilustrar. Boa a iluminação de Aurélio de Simoni, a direção musical de Tato Taborda e os figurinos de Inês Salgado. 

Na semana em que se comemorou o Dia da Consciência Negra, sem dúvida, “A Negra Felicidade” foi uma das melhores programações. Em outras oportunidades, não menos o será. 

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Ficha técnica:


Direção: Moacir Chaves
Dramaturgia: Moacir Chaves

Elenco: Andy Gercker, Adriana Seiffert, Danielle Martins de Farias, Diego Molina, Edson Cardoso, Elisa Pinheiro, Fernando Lopes Lima, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Peter Boos, Renata Guida e Rita Fisher.

Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Inês Salgado
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção Musical: Tato Taborda
Produção: Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Diego Molina e Danielle Martins de Farias
Assistência de Produção: Denise Pimenta
Contraregragem: Edmar da Rocha e Isaque Fernandes
Patrocínio: Eletrobrás, Lei Rouanet de Incentivo a Cultura e Governo Federal
Realização: Alfândega 88 Cia. de Teatro
Um projeto: Urbana Produções

Um comentário:

  1. O texto peca em dizer que o Brasil foi o último país do mundo a libertar escravos. O último foi em 1954, a república africana (salvo engano) de Serra Leoa. O Brasil foi o último das Américas; a escravidão existe até hoje em diversos países, apesar de não oficialmente (Oriente Médio, Extremo oriente e Ásia).

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