sábado, 13 de abril de 2013

Canastrões (RJ)

Pedro, Paulo e Gabriel Gracindo em excelente espetáculo
Foto: divulgação

Uma obra de arte!

Como é bom ver bom teatro! “Canastrões” é uma grata surpresa. Em cartaz no Teatro dos Quatro, do Shopping da Gávea, eis aí uma produção que merece ser vista por vários motivos. Para mim, o principal deles é o que ela oferece enquanto retórica sobre o próprio tema e o como isso acontece totalmente interligado com os demais elementos em perfeita sintonia. Harmônico nos seus pontos de vista estéticos, profundo enquanto retórica, desafiador enquanto produção e extremamente valoroso na sua realização, o espetáculo tem ritmo, tem profundidade, tem beleza. Assistir-lhe é pensar o teatro de ponta a ponta: sua história, sua presença no Brasil, sua linguagem como acontecimento único diante do público e os aspectos práticos referentes à sua realização e os políticos em termos de sua relação com a grade de produções em cartaz no mesmo teatro, no mesmo bairro, na mesma cidade, sem comparações insólitas, mas com pensamento voltado sobre a riqueza dessa diversidade. Com direção e encenação do espanhol Moncho Rodriguez, em cena estão Paulo Grancindo Junior e seus dois filhos, Gabriel Gracindo e Pedro Gracindo. Em todos os momentos, sente-se também a participação do grande ator Paulo Gracindo (1911-1995) que, em 2011, teria completado 100 anos. O aplauso final é uma homenagem sobretudo a ele.

A peça “Canastrões” parte esteticamente da farsa tradicional: a farsa de rua, os atores mambembes, indo de cidade em cidade, pedindo passagem e apresentando histórias já anteriormente escritas ou recentemente inventadas, cujos personagens fazem referências com conhecidos do público, sustentando a tradição dos personagens célebres: os enamorados, o arlecchinho, o comilão, o puncchinello, o dottore, entre outros. Os joelhos curvados, o quadril encaixado, o eixo verticalizado sobre si mesmo e as estreitas relações com os animais que motivaram a construção e a ratificação dessas figuras (a cobra, a galinha, o pavão, o macaco,...) também se fazem presente. Constam ainda os instrumentos musicais, o ritmo rápido, a meia-máscara e a máscara inteira, as feições e as entonações exageradas. Tratam-se de três histriões, chegando ao palco para contar sua história ao público, esse sempre diferente, novo a cada noite, diferente em cada praça. Tudo isso, engendrado e disposto com vistas não a uma história farsesca, com uma narrativa cheia de pontos de mudança e de piadas conhecidas de gosto popular, mas a algo totalmente inusitado: o discurso filosófico. 

Nessa produção, a família Gracindo está em cena, comemorando o seu centenário de dedicação ao teatro, o ofício que está sendo passado de pai para filho: seus dissabores, seus momentos mágicos, as técnicas, os conceitos, os valores escondidos por trás de cada opção na construção da carreira. Moncho Rodriguez, sob encomenda, constrói um texto primoroso em que disseca com cor, graça, profundidade, beleza e altíssima profundidade e inteligência um texto ímpar em que atores e público são convidados a refletir sobre o que é o teatro, quem são os atores e quem é o público. Qual é o papel de cada um nesse encontro? Quem é cada um? Num esforço ontológico de buscar definições que identifique as partes, mas sem ficarem-se presos em suas descobertas, a intenção é manter a liberdade etérea na qual está o cerne da arte da encenação. Com grande habilidade, o grupo tergiversa sobre o mesmo tema, prendendo a atenção do público, mantendo a plateia em estado de pensamento reflexivo, em catarse e, ao mesmo tempo, em racionalização, casamento esse que é fruto da união inimaginável entre a farsa totalmente superficial e o discurso retórico bastante carente de atenção. Radicado no nordeste brasileiro, o trabalho de Moncho Rodriguez, nesse espetáculo, é uma pérola. 

Os três Gracindo interpretam histriões: atores em personagens e em si próprios nesse misto de teatro e de vida além da narrativa que nem sempre tem limites bem definidos. Paulo, o pai, sustenta uma figura forte, o pilar de sustentação dos outros dois: uma voz extremamente bem usada; uma interpretação comedida, mas não discreta; a concretização da força, da sabedoria e o semblante de quem, aos poucos, começa a deixar para os jovens o cabo da nau, como uma vez, das mãos de seu pai, aconteceu com ele. Com excelente dicção, vê-se ali um belíssimo trabalho de interpretação no uso dos tempos, no reforço das pausas, na exploração das diferentes intenções, entonações e dos desenhos de movimentos. Pedro segue o mesmo caminho, sustentando a liberdade e a espontaneidade na interpretação de sua figura, além de extremo bom uso dos instrumentos musicais: voz, violino e violão. Gabriel, bem dirigido, está mais frio no início da apresentação, mas percebe-se nele um crescimento ao longo da peça, de forma que, no final, o elenco está unido, unânime, coeso, coerente e com laços sólidos. 

Com produção de Osni Júnior, “Canastrões” apresenta um excelente resultado em todos os aspectos: cenário, figurino, trilha sonora e iluminação, todos esses elementos assinados por Rodriguez. Talvez seja esse um dos motivos da articulação tão firme entre os dois extremos tão inusitados: a farsa e a filosofia. 

Em cartaz na cidade, uma peça rara. A história de uma família, uma homenagem a si próprios, mas também aos seus pares; a citação de diversos elementos da nossa cultura (e São Saruê é apenas é uma delas) e, sobretudo, um manifesto bom uso de vários recursos do repertório teatral. Excelente! 

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FICHA TÉCNICA
Texto e encenação: Moncho Rodriguez
Trilha sonora: Pedro Gracindo e Narciso Fernandes
Cartaz: Juarez Machado
Fotos: Guga Melgar
Diretor de palco e Operador de luz: Cristiano Cássio
Direção de produção: Claudia Goldstein
Produção Executiva: Osni Jr
Realização: Gracindo JR Produções

ELENCO:
O Enviado: Gracindo Junior
O Acontecido: Gabriel Gracindo
O Inevitável: Pedro Gracindo
O Oportuno: André: Gracindo

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