terça-feira, 7 de maio de 2013

Dias Felizes – Suíte em 9 Movimentos (RJ)

Rita Clemente é Winnie em versão de
"Dias Felizes"
Foto: divulgação

Excelente versão para um clássico contemporâneo

Rita Clemente, diretora do excelente “Amores Surdos”, assina a adaptação de um clássico do teatro contemporâneo – “Dias Felizes”, do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) – com marcas de inteligência, sensibilidade e talento. A versão tradicional para teatro já é, por si só, em forma e em conteúdo, um arranjo complicado, de jeito que uma adaptação é um desafio ainda maior. A montagem de “Dias Felizes – Suíte em 9 Movimentos”, em cartaz no CCBB – Rio de Janeiro, mantém as perguntas do texto original, mas oferece caminhos para chegar às respostas. 

Se, em Beckett, o buraco é a essência de Winnie, em Clemente, dela é a prisão. Essa troca conceitual tem consequências para além da superficialidade. A falta de drama do dramaturgo irlandês recebe agora conflito antes inaparente. Para ficar mais claro, na obra original, temos, no primeiro ato, Winnie enterrada até cintura. No segundo ato, até o pescoço. Não há um terceiro e pode-se pensar que ela já esteja enterrada completamente. Por outro lado, o personagem Willie deixa aparecer, em alguns momentos, apenas a sua cabeça. Em um específico, ele sai por inteiro e pára em frente à esposa (?). Nesse sentido, Beckett suspende algumas perguntas ainda que não faça delas conflitos dramáticos a serem resolvidos: por que Willie pode sair e Winnie não sai? Winnie não sai porque não quer ou porque não pode? Onde ela/eles estava/m antes do primeiro ato e estará/ão após o segundo? A ausência de conflito está no fato de que nenhuma dessas perguntas é definitiva no desenvolver do texto, um adrama, por isso, e, não, um drama. Com isso, Beckett marca a tragédia contemporânea, relacionando seus personagens aos de Sófocles, Shakespeare e de outros de mesma cepa: um personagem diante de um destino sem que sobre ele pareça ter qualquer poder ou responsabilidade. (Antígona precisa enterrar seu irmão. Hamlet precisa vingar a morte do pai. Didi e Gogo precisam esperar Godot. Nada poderá mudar seus destinos. ) 

Na versão de Rita Clemente, Winnie não está enterrada, embora o figurino faça referência à pequena montanha que Beckett criou para a personagem. Aqui ela está presa, pois caminha, consegue virar-se, faz movimentos restritos. Por outro lado, Willie é visto sempre completamente livre e junto do casal há ainda um pianista. Ou seja, as dúvidas permanecem: Por que ela não sai? Por que ela não vai até Willie? Só que, nessa versão, as perguntas dizem respeito à situação, modificam a sua fruição e, portanto, estabelecem um drama. A aparente imobilidade de Winnie deve ter uma causa e é esse o motivo que faz com que ela tenha essa relação com Willie. Culpa, talvez? Winnie tem uma arma e Willie tem a cabeça sangrando. Terá ela atirado no marido (?) e o que vemos é apenas uma aparição fantasmagórica? Enquanto em Beckett, rapidamente, o espectador desiste de dar sentido para o texto e se conforma com um teatro que é metáfora para a falta de sentido do mundo, em Clemente, a audiência permanece em busca de lógica e sente os movimentos musicais como curvas dramáticas. "Dias Felizes - Suíte em 9 Movimentos"está, assim, no exato limiar entre o teatro do absurdo e o teatro pós-dramático.

(Faço um parêntese professoral. A tragédia, seja antiga, clássica ou contemporânea, está no sentido oposto das emoções e valoriza a retórica. São terríveis todas as montagens melodramáticas de Beckett – em “Cacilda”, de Zé Celso Martinez Corrêa, havia um péssimo “Esperando Godot” dentro desses termos. Daí que encontrar uma adaptação de Beckett sem que o resultado tenha caído na zona desconfortável é uma raridade, por isso, por demais preciosa!) 

Ressaltam-se ainda, nessa montagem, o excelente uso da voz e dos tempos, a habilidosa construção das expressões faciais e do movimento das intenções e a articulada relação que se estrutura entre Winnie (Clemente), Willie (Márcio Monteiro) e o Pianista (Jairo Thiersth). É excelente também o uso da iluminação de Richard Zaíra e elogiosa a estrutura que norteia a conversa entre os figurinos. O ritmo que substitui a falta de na versão original é mantido com graça, beleza, elegância e, principalmente, inteligência.

Ansiedade versus Rivotril. O mundo contemporâneo, por isso, cada vez mais ganha reflexo na arte trágica. No caso dessa, digna de aplausos!

*

FICHA TÉCNICA
Direção geral e concepção: Rita Clemente
Texto: livremente inspirado na obra “Dias Felizes” de Samuel Beckett
Elenco: Rita Clemente e Márcio Monteiro
Roteiro adaptado: José Antônio Zille e Rita Clemente
Direção Musical: Compartilhada
Arranjos: Jairo Thiersth, Andreh Vière e Dom
Orientação de Pesquisa: José Antônio Zille
Instrumentista: Jairo Thiersth
Cenário/Figurino: Rita Clemente

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