terça-feira, 11 de junho de 2013

Vermelho (SP)

Excelente direção de Jorge Takla
Foto: divulgação

Para ver e rever muitas vezes

Máximas como a unanimidade é burra ou a parcialidade é inteligente são rasas demais para dar conta do mundo complexo em que vivemos. Não há quem vá assistir ao espetáculo “Vermelho”, protagonizado por Antônio Fagundes, e diga que não gostou. É uma unanimidade entre públicos de todas as idades e de diferentes repertórios, o que, nesse fim de outono, engrandece a programação de teatro carioca que finalmente recebe a produção paulista dirigida por Jorge Takla. Escrita pelo roteirista americano John Logan (“Gladiador”, “O aviador”, “A invenção de Hugo Cabret” e tantos outros filmes de sucesso), a peça foi produzida pela primeira vez em 2009, recebendo 6 Prêmios Tony na Broadway em 2010 (a versão americana foi protagonizada por Alfredo Molina). De fato, é um grande texto da dramaturgia mundial: excelentes personagens, ótimo jogo de poder, manutenção (verbal) de bom ritmo, estrutura clássica inaparente, além de resgate e de valorização de acúmulo cultural. No caso da montagem brasileira, é também um espetáculo com excelente direção de atores, além de ter positiva articulação de todos os demais elementos. Sem dúvidas, assiste-se, aqui, com felicidade, ao nascimento de um clássico. Resta à análise argumentar. 

No fim dos anos 50, o pintor russo naturalizado americano Mark Rothko (1903-1970) recebe em seu estúdio o ajudante Ken (Bruno Fagundes) em seu primeiro dia de trabalho. (O personagem de Ken é fictício, isto é, não existiu fora da narrativa de Logan.) O jovem é um estudante de pintura e se sente honrado com a possibilidade de trabalhar com um dos artistas mais celebrados do mundo, de vê-lo pintar, de estar próximo dele. Já depois dos cinquenta anos, Rothko acabou de ganhar uma proposta milionária de pintar 15 murais para um restaurante caro em Nova Iorque e vê com preguiça um rapaz entrar na sua rotina, mesmo que sua ajuda seja indispensável (assim como o é o valor ganho no contrato com o tal restaurante). Assim, começa uma história com um conflito pra lá de batido: um homem velho e suas convicções versus um homem jovem e sua vontade de mudar o mundo. Entre os dois, grandes telas, sobretudo, vermelhas. 

Assim, como recentemente apontei na crítica de outro espetáculo, o mérito da direção aqui está menos em fazer identificar as características dos personagens da narrativa e no quão opostos eles estão e muito mais em a) deixar perceber o quanto eles se aproximam; e b) no quão bem articuladas estão o conteúdo (quem são essas pessoas) e a forma (como elas são vistas pelo público). O que dá liga para “Vermelho” é a pintura de Rothko em sua fase melhor lida a partir do gênero expressionismo abstrato. Entender esse prisma é uma das chaves para “iluminar” essa obra e, assim, fazer com que se mantenham intactas ou inalteradas as suas cores.* 

Diferente de outros gêneros, a arte abstrata confere uma força imensa a a) a sensação; e b) o referente. Nesse sentido, trocando em miúdos, importa, em primeiro lugar, o que sente quem vê a obra, sensação essa que pertence à fruição muito mais do que à obra em si (no teatro, essa é a missão do teatro pós-dramático), de forma que há poucas marcas (relação formal, ponto de fuga, profundidade, narrativa, etc.) na tela que sejam capazes de determinar ou prever um ponto de vista. Em segundo lugar, o conhecimento sobre contextos em que a obra foi pintada (qualidade e composição das tintas, época da criação, local, meios de pintura, etc.), a observação do lugar onde a obra está instalada (luz, relação espacial com outras obras e entre a obra e a fruição, grau de luminosidade, etc.) e os dados sobre o artista (quem é, qual seu repertório, seu universo, etc.) são outros fatores fundamentais na relação entre o quadro e quem o vê. Além do já exposto por Logan na dramaturgia já elogiada, Takla constrói um Rothko cujo ego é imenso, cujo ponto de vista sobre a vida extremamente trágico e cujas emoções não se dão a ver de forma linear. Assim, “Vermelho” será ainda melhor para quem conseguir estabelecer ponte entre um tipo de quadro que, embora não necessite de explicação, goste dela e um pintor completamente apaixonado por si e pela sua própria obra de arte. Também entre um tipo de tela que aprisione uma cor e, através dessa prisão lhe dê a liberdade das variações tonais, e um homem preso em um estúdio, com um horário de trabalho rígido, um contrato assinado e que vê suas obras como filhos que estarão sendo, em breve, expostos aos perigos externos. E, por fim, entre murais que exijam do olhar um certo tempo para que suas nuances possam se dar a ver, e um patrão que, durante dois anos, nunca soube nem mesmo o nome completo do funcionário com quem trabalha diariamente. 

Antônio Fagundes é um ator reconhecido por seus excelentes trabalhos de jeito que é possível até pensar que os desafios de Takla sobre esse intérprete não tenham sido muitos. Não é o caso de Bruno Fagundes, filho de Antônio, que inevitavelmente sofre a pressão da comparação com o pai (Além de ir ver Antônio Fagundes, todos querem conhecer quem é e como trabalha o seu filho, o que é natural.) por ter escolhido o mesmo ofício. À guisa disso, Takla permite ver um Ken tão comedido como sintética é a arte minimalista que ele representa, tão carente como a cultura de massa é capaz de se identificar nos quadros de Andy Warhol e tão emotivo quanto lisérgico seriam os anos 60 para todo o mundo. Sob as mãos de Takla, assistido por Ronaldo Zero, assim, ambos atores Fagundes, confluem em si, com extremamente habilidade, a forma e o conteúdo de que o teatro precisa para deixar de Logan e ser nosso. Assim como o expressionismo abstrato deu lugar à pop art, a pop art deu lugar para o neo-surrealismo ou hiperrealismo. 

São excelentes o cenário de Takla e o figurino de Fábio Namatame, porque narram, embelezam e oferecem profundidades, sem exigir do espectador o tempo que ele deve dar apenas aos diálogos. Em ótimo sentido, age também a iluminação de Ney Bonfante que, ao lado da trilha sonora, contorna as curvas da trama com delicadeza e força. O realismo, ainda que empregnado esteticamente pelo romantismo dos tons (o branco e o preto cruzam o cenário, fazendo o ver o vermelho das telas com mais força), é o melhor amigo dessa dramaturgia que nos brinda enquanto literatura e teatro. 

“Vermelho” é uma peça de primeira grandeza. Merece ser vista várias vezes. 

* No final da apresentação, há uma conversa com os dois atores. Nela, conta-se que as telas de Rothko não podem ser restauradas através do jeito tradicional, mas somente através do uso das luzes. Isso porque o artista, ao fabricar as próprias tintas, utilizou ingredientes que não podem ser refeitos em igual proporção.

*


Ficha técnica:
Texto: John Logan
Tradução: Rachel Ripani
Direção e Cenário: Jorge Takla
Elenco: Antônio Fagundes e Bruno Fagundes
Luz: Ney Bonfante
Figurinos: Fábio Namatame
Pinturas: Marcos Sachs
Assistente de direção: Ronaldo Zero
Direção de arte: Paulo Humberto de Almeida
Direção de produção: Noêmia Duarte e Patrícia Pires
Produtor Associado: Luciano Borges
Assistente de Produção: Léo Delgado
Contrarregra: Guilherme Nascimento
Assessoria de imprensa: Uns Comunicação

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