quarta-feira, 10 de julho de 2013

Um dia qualquer (RJ)

Em uma das cenas, há a referência a
"O mágico de Oz"
Foto: divulgação

A delícia do banal e do absurdo em ótima peça teatral

A melhor coisa, entre tantas, de “Um dia qualquer” é a ironia inteligente com que Julia Spadaccini e Alexandre Mello dão a ver suas visões sobre banalidade e absurdo. Ao mesmo tempo em que o título trata de algo vulgar, banal, supérfluo, os diálogos e os personagens dão conta de uma situação que sobrevive sob a égide de uma lógica (ou de sua ausência) que é diferente da que estamos acostumados a construir. A contribuição mais sublime do teatro do absurdo, mais vivo do que nunca felizmente, é justamente essa: mostrar o quanto o cotidiano não pode ser explicado pela razão. Em cartaz, no Teatro Arena do Sesc Copacabana, aí está um dos melhores espetáculos do ano, abrindo o segundo semestre de 2013 com a dialética contemporânea do significativo e do sem sentido. 

De Qorpo Santo na Porto Alegre do século XIX a Ionesco na Paris do século XX, o teatro do absurdo aproxima peças teatrais que leem o mundo como se esse fosse um jogo jogado por Deus (?) cujas peças somos nós. Sem acesso às regras ou a qualquer tipo de estratégia, pairamos em situações sem explicação, fazemos coisas que não queremos, estamos unidos a pessoas em relacionamentos sem retorno, em lugares e em empregos com os quais não somos comprometidos, etc. O quadro resultante desse "saco"de contradições nos dá uma sensação de alívio, pois nossa consciência ganha nele margem para descansar do árduo trabalho de tanto dar sentido a tudo. Esse é o universo desta dramaturgia de Julia Spadaccini (literária) e de Alexandre Mello (cênica) cuja beleza estética e o divertimento proporcionado são garantidos.

Numa praça, encontram-se um advogado metido a herói que é perdedor (interpretado por Leandro Baumgratz), uma palhaço triste (Rogério Garcia), uma professora que não aprende com as próprias lições (Anna Sant`Ana) e uma enfermeira pouco interessada em seguir rotinas (Dida Camero). Resguardado o direito de ir e vir, os quatro estão presos a um mesmo banco comum como que “entre quadro paredes” (Sartre) em local que é aberto e público. Não se sabe na plateia o que, afinal, os prende ali, não havendo também certeza do que os trouxe, nem tampouco o que acontecerá na sequência. Estão simplesmente e, nesse estar, compõem uma metáfora para uma pequena cidade, onde um personagem descobre sua função na necessidade do outro, cuja resposta varia de tempos em tempos, gerando, além de interpretações diferentes, movimentos narrativos bastante ricos. Crianças maldosas, sorrisos falsos em fotografias, meias vermelhas, saudades inúteis: as cores dessa história partem de lugares próximos e dão pulos curtos uma vez que não há um conflito que surja no início e movimente toda a roda até o fim. Em termos de dramaturgia, há apenas uma situação que dá conta de duas ou três frases e logo já é modificada, deixando o drible do tempo como desafio que é felizmente vencido. 

O advogado construído por Leandro Baumgratz não começa bem a história, muito nervoso, com gestos para cada fala, histriônico além da conta. No entanto, com a chegada da professora interpretada por Anna Sant`Ana, o equilíbrio aumenta e a contracena se mostra melhor que a cena. Em seguida, Rogério Garcia (o palhaço) e Dida Camero (a enfermeira) completam o quadro, trazendo profundidade e energia, de forma que o todo resulta em um conjunto positivo de interpretações sem exceção. Pequenos monólogos acontecem sem chamarem para si um valor que os destaque o que é bastante positivo. Com  ótima fluência, a direção de Mello faz com que as cenas se sucedam e se antecipem engendradas a contento por falas bem ditas, situações construídas em diversos níveis e potentes. 

Bonitos são os figurinos de Ticiana Passos e o desenho de iluminação de Renato Machado, ambos oferecendo detalhes outros na medida em que os olhos do espectador se acostumam com as figuras e com os acordos que elas fazem entre si para continuarem ali. Destaque para o cenário de Daniele Geammal: com pedaços de placas espelhadas, parece haver um lago diante do banco. Nesse caso, ou os personagens andariam sobre as águas desse lago ou, na verdade, estamos todos submersos e o mundo real é aquele que está abaixo de sua superfície. Em ambas as sugestões de interpretação, e podem haver muitas outras, há a inteligência de uma concepção que amarra com galhardia a estrutura absurda do teatro que Spadaccini e Mello propõem. A trilha sonora de Baumgratz traz um certo ar poético que é positivo porque discreto. 

Os atores usam bem o tempo da comédia na viabilização das cenas, fazendo de “Um dia qualquer” um programa divertido além de muito inteligente e com alto valor estético. Profundidade e graça andam aqui de mãos dadas com o talento e a técnica bem aplicadas. Aplausos!

*

Ficha técnica:
Texto: Julia Spadaccini
Direção: Alexandre Mello

Elenco:
Anna Sant`Ana
Dida Camero
Leandro Baumgratz
Rogério Garcia

Iluminação: Renato Machado
Cenário: Daniele Geammal
Figurinos: Ticiana Passos
Trilha Sonora: Leandro Baumgratz
Projeto Gráfico: Humberto Costa - Mais Programação Visual
Assessoria de Imprensa: Gabriela Motta
Preparação corporal em dança flamenca: Eliane Carvalho
Assistência de direção e Produção executiva: Paula Loffler
Direção de produção: Anna Sant`Ana e Rogério Garcia
Realização: Usina d`Arte Produções Artísticas

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