segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Palhaços (SP)

Dagoberto Feliz e Danilo Grangheia em cena
Foto: divulgação

Uma aula sobretudo sobre nós mesmos, mas também um show de interpretação

O mais sublime na montagem de “Palhaços”, do dramaturgo brasileiro Timochenko Wehbi (1943 - 1986), é a sensação de jogo impressa pelo diretor Gabriel Carmona na contracena realizada pelos atores Danilo Grangheia e Dagoberto Feliz. A todo o momento, vemos que um dos personagens parece dominar a cena quando um pequeno gesto do outro retira-lhe a atenção e consequentemente o poder. Fisgado por essa relação, cada vez mais equidistante, paralela e sempre mais próxima, o público avança em fruição rumo ao desfecho que acontece (?) de forma sublime. Uma peça “de ator”, o espetáculo é um grande desafio para os intérpretes que, nesse caso, vencem e, por isso, nos presenteiam. O projeto estreou há 8 anos, em São Paulo, e têm enchido o Teatro Poerinha. É preciso organizar-se para não perder antes que saia de cartaz.

O comerciante Benvindo invade o camarim do circo após a última apresentação. Ele vem cumprimentar o Palhaço Careta, de quem é fã. Na conversa, as histórias de um e de outro vêm à tona, exibindo as distâncias e as proximidades existentes entre os dois homens, ambos metáfora dos homens que lhes assistem na plateia. Toda a cena se dá dentro desse camarim, antessala para o palco ou para o picadeiro que é o mundo na bela dramaturgia de Wehbi. 

É verdade que não há muito o que se esperar do personagem de Careta (Dagoberto Feliz), pois o personagem de Palhaço faz parte do imaginário popular. O ator, com excelência, porém surpreende, porque, em suas quebras, oferece um outro tipo de ironia que não é simplesmente cômica ou ingênua, mas conscientemente ácida. Neste texto, o desafio maior está na composição do personagem de Benvindo: ele precisa ser páreo para a figura carismática do palhaço. Na montagem dirigida por Carmona, Grangheia está excelente. 

Danilo Grangheia exibe um trabalho de interpretação que é honradamente comparável ao de Cacá Carvalho, sobretudo no que diz respeito ao riquíssimo uso da voz. A voz é um signo que se torna teatral através de vários elementos, cuja (boa) exploração é infelizmente rara. Há diversos níveis tonais entre grave e agudo, volumes entre o grito e o sussurro, entonações entre fortes e fracas, ritmos entre rápido e pausado, constante ou não-linear. E há também os silêncios e as pequenas pausas. Grangheia usa (e abusa) de todos esses usos, articulando com louvor todos eles a outros elementos expressivos faciais e corporais. Seus olhares são circulares (as pupilas de seus olhos giram, fugindo e marcando um sentido que o espectador (atento) há de ler), seu rosto está dirigido em diagonal para baixo, seus ombros estão voltados para dentro e caídos e suas mãos são postas uma sobre a a outra. Em alguns momentos, Benvindo se abre para uma possibilidade proposta por Careta, mas, em seguida, vem a retração novamente. Esse jogo de vai e vem marca a fisicamente a presença do personagem que o intérprete dá a ver. A excelência do trabalho de Grangheia faz vir à superfície uma figura obscura que, posta ao lado do colorido do palhaço, estabelece um embate de igual para igual. E é essa equivalência que garante a emoção do jogo. 

Não menos excelente que cada bom uso das múltimas possibilidades dos elementos relacionados apenas à voz em cena, estão os usos do cenário (Flávio Tolezani), do figurino (Daniel Infantini), da trilha e da iluminação (Erike Buzoni). Em conjunto, um a um, vão fazendo a sua parte na construção de um todo que é uniforme, mas não redundante. Assim, “Palhaços” oferece vários níveis de fruição e consequentemente lugares de respiro que propiciem a reflexão para o que está se está vendo. Das ranhuras aos objetos de cena ao colorido das lâmpadas, da gravata larga à música de abertura, o todo se manifesta com potência em cada parte, explicando o sucesso de oito anos dessa montagem que orgulha o teatro nacional. 

Em todos os aspectos, “Palhaços” é uma aula. Para nós, não atores ou pessoas não envolvidas com o fazer teatral, é sobretudo uma lição sobre nós mesmos. 

*

Ficha técnica:
Autor: Timochenko Wehbi
Diretor: Gabriel Carmona
Elenco: Dagoberto Feliz e Danilo Grangheia
Iluminação: Erike Busoni
Cenário: Flávio Tolezani
Operação de Luz: Walace Furtado
Figurino Daniel Infantini
Fotos: Thaty Yazigi
Projeto Gráfico Artefactosbascos
Produção e Administração: Touché Cultural (Ana Barros / Ludmila Picosque)

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