quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Elefante (RJ)

Igor Angelkorte, Chandelly Braz,
Samuel Toledo e Lívia Paiva em cena 
Foto: divulgação

De Igor Angelkorte, “Elefante” é excelente

“Elefante”, de Igor Angelkorte, fala sobre a beleza da velhice com coragem, com profundidade, de forma sensível e bela e, o melhor, sem pretensões. Para quem não leu a sinopse, o tom coloquial da abertura da peça causa um estranhamento, porque estamos diante de um cenário em que mesa e bancos se referem a grandes ossos abandonados. Em seguida, a opção estética por esse tom de voz é justificada: o tema não é alguma abstração teórico-acadêmica, mas de uma recorrência que é cotidiana. Todos, hoje em dia até os jovens, estamos diante da velhice, fugindo dela com academias e suplementos alimentares, regras de não-fumar, não beber, não jantar após às 18horas, e com uma gama de cremes, de cirurgias plásticas e potencialidades no uso do photoshop. Em cartaz no Sesc Arena Copacabana, eis um espetáculo tocante, cujos valores estéticos são alcançados pela limpeza de diálogos rápidos e bem ditos, cenas curtas e bem escritas (literária e cenicamente) e pelas boas interpretações. Uma produção marcante, porque inteligente e, talvez por isso, necessária. 

Em um tempo que é daqui há uns cem anos, os pais são convidados para jantar na casa do filho e de sua namorada. Francisco, o filho, acabou de chegar de uma viagem a um lugar distante chamado Sêneca, trazendo um peixe pescado por ele próprio. É quando os convidados se assustam com o achamento de uma espinha dentro da comida, temendo o perigo de morrerem engasgados. (Se hoje a prática de comer filé de peixe é mais difundida do que há dez anos, o que se dirá a respeito de daqui a um século?) Potente, a cena inicial apresenta as bases da excelente dramaturgia assinada por Walter Daguerre a partir do argumento de Angelkorte. Nesse contexto fictício, o mundo já desconhece os alimentos puros, preferindo os industrializados apenas. As pessoas têm um terrível medo da morte. Remédios, como calmantes, têm seu uso bastante vulgarizado. A natalidade é assunto controlado pelo governo, de forma que, para engravidar, é preciso uma demorada autorização. E mais: nesse tempo, a morte é combatida com uma política governamental de uso de uma pílula que aumenta bastante a longevidade. Francisco, personagem interpretado por Angelkorte, cuja forma física aparenta estar entre os 20 e 30 anos, está prestes a fazer 65 anos. Seus pais, interpretados por Samuel Toledo e por Chandelly Braz, os dois atores também entre 20 e 30 anos, já passaram dos cem anos. Assim, a idade dos intérpretes versus a idade de seus personagens é marca fantástico-realista que irá movimentar a roda do discurso que “Elefante” propõe. Francisco quer parar de tomar a pílula e mudar-se para Sêneca, lugar onde ele se encontrou, pela primeira vez, com a velhice, com a valorização da própria história descrita nas rugas do corpo, com um novo olhar por sobre as relações humanas e dos homens com os processos naturais de vida e de morte. Sua decisão de partir, porém, não ficará impune. De um lado, seus pais e sua namorada (Lívia Paiva) o rejeitarão para sempre. De outro, seu corpo entrará em decomposição e esse jovem sexagenário encontrar-se-á com a doença, com a fraqueza, com a debilidade física. 

Dirigido por Igor Angelkorte, “Elefante” usa o aparato sígnico-teatral com maestria. Em primeiro lugar, coloca em xeque a oposição entre a idade dos atores e a idade dos personagens, fazendo vir à luz informações e questionamentos que são essenciais à fruição. O tom coloquial dos diálogos, que em nada são fracos, mas, ao contrário, cheios de vida e com ótimas intenções, finca a narrativa no realismo (positivamente ao lado dos figurinos de Ronald Teixeira), deixando sobrar para o fantástico a proposição de um mundo localizado daqui há cem anos. Nesse sentido, pode-se dizer que, no seu ferramental estético, o gênero realismo fantástico, quase sempre usado de forma superficial, encontra aqui uma atualização excelente.

O belíssimo cenário de André Sanches, fazendo referência a ossadas, une “Elefante” à cena dos coveiros em “Hamlet”, quando o príncipe da Dinamarca, com uma caveira entre as mãos, se pergunta sobre a necessidade dos enfeites se todos nós, um dia, acabaremos daquele jeito. 

“Onde foram parar as sutilezas, os equívocos, os casos, as enfiteuses, todas as suas chicanas?”(...) “Onde estão agora os chistes, as cabriolas, as canções, os rasgos de alegria que faziam explodir a mesa em gargalhadas? Não sobrou uma ao menos para rir de tua própria careta? Tudo descarnado! Vai agora aos aposentos da senhora e dize-lhe que, embora se retoque com uma camada de um dedo de espessura, algum dia ficará deste jeito.” (Shakespeare. Hamlet. Ato V. Cena 1) 

Dessa forma, temos as partes da narrativa sendo apresentadas aos poucos, mas o tema sempre presente, imanente, exposto.

Excelente também é o desenho de luz de Renato Machado, cuja criação complementa o cenário na arena do Sesc Copacabana. Os recortes de foco de Machado, centralizam as cenas, concentram a atenção em meio à amplitude do espaço cênico. Em determinado momento, além disso, ratifica o protagonismo do personagem Francisco, fazendo com que assistamos à peça à meia luz, situando o espectador no ponto de vista dele sobre o mundo, em um excelente uso desse elemento visual. 

Quanto às interpretações, todos os trabalhos são bastante positivos, mas merece especial destaque o trabalho de Fernando Bohrer. A sensibilidade com que o ator dá a ver sua participação é tocante, contagiante, carismática. A partir dos seus ótimos usos dos tempos, das entonações, da movimentação, a catarse é imediatamente estabelecida, unindo “Elefante” às vidas além da peça. Promovendo uma confluência entre a arte, o tempo presente e o futuro da humanidade e de cada um de nós em nossa velhice, Bohrer é símbolo da excelente articulação que essa produção da Probástica Companhia de Teatro traz. 

“Elefante” tem como maior mérito a impressão de simplicidade. Sabemos que a movimentação de uma estrutura artística é sempre algo complexo no âmbito de todas as suas partes, mas a sensação de simplicidade, às vezes, é fundamental. Com uma encenação rápida e profunda, um jogo entre elementos visuais e interpretações econômico e pujante e um tema cada vez mais essencial, a peça só tem méritos. Tem que ver! 

*

FICHA TÉCNICA

ELENCO: Fernando Bohrer, Chandelly Braz, Igor Angelkorte, Lívia Paiva, Samuel Toledo, Julia Lunnd e Pedro Nercessian

DIREÇÃO E ARGUMENTO: Igor Angelkorte
DRAMATURGIA: Walter Daguerre
ASSISTENTES DE DIREÇÃO: Paula Vilela e Philipp Lavra
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Marcela Casarin
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Renata Stilben
CENOGRAFIA: André Sanches
ILUMINAÇÃO: Renato Machado
FIGURINO: Ronald Teixeira
DIREÇÃO MUSICAL: Felipe Storino
FOTOGRAFIA: Phillipp Lavra
COMUNICAÇÃO VISUAL: Paula Vilela
REALIZAÇÃO: Probástica Companhia de Teatro
PRODUÇÃO: Mãe Joana Filmes e Produções

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