terça-feira, 29 de outubro de 2013

1958 (RJ)

Elenco de "1958" em cena
Foto: divulgação

Uma deliciosa dissertação musical




“1958” é um dos melhores musicais do ano. Baseado no livro “Feliz 1958”, de Joaquim Ferreira dos Santos, a peça é uma dissertação, isto é, seu protagonista é o tempo, os doze meses que compõem o ano de 1958 no Brasil. Com uma historinha aqui outra ali, as micro narrações servem de autoridade para a tese que se desenvolve e não o contrário como nos espetáculos de narrativa tradicional. Assim, justapondo jingles publicitários, fatos políticos, artísticos e sociais, além de ícones da época, “1958” diverte e entretém com potencialidades de reflexão. A direção musical de Marcelo Alonso Neves proporciona momentos de grande prazer pela forma como os arranjos estão postos, mas sobretudo pela magnífica interpretação das canções principalmente pelos atores. Em cartaz no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim, na zona sul do Rio de Janeiro, eis aí uma bela programação para todas as idades. 

Com roteiro e direção de André Paes Leme, “1958” é dividido em sete partes, os sete gols acontecidos no jogo entre Brasil e Suécia na copa daquele ano (a primeira taça mundial da seleção canarinho). Leme impõe um jogo vibrante de encenação, em que uma cena dá lugar a outra de forma leve, bem arranjada, articulada com potencia significativa que dá sustância para a peça como um todo. Para citar, a chegada de Lucineide (Daniela Fontan) na Rádio, o embarque no avião e a comunicação entre os apartamentos de cima e de baixo no nascimento da bossa nova dão a ver lugares criativos em que o teatro se comunica com o seu público de forma ímpar. Nesses lugares, o teatro se afasta das outras artes e dignifica a sua identidade, aqui expressa por um conjunto de elenco disponível, talentoso e bem dirigido. 

Com destaque para Andrea Veiga, Daniela Fontan e sobretudo para Matheus Lima, o elenco é valoroso em suas participações cena após cena. Os números musicais, como já elogiado, tem alta qualidade e fazem boa companhia com as sequências cênicas: tudo é posto em um tempo que ilustra, informa e entretém sem se alongar mais do que deveria nem deixar a desejar. Com belíssimo uso da voz, Lima tem destaque na interpretação do locutor da Rádio. 

O cenário de Carlos Alberto Nunes e os figurinos de Kika Lopes, além do desenho de iluminação de Renato Machado, têm a mobilidade para o texto fluído de “1958”, sem empobrecer por alguma falta de informação felizmente. Em todos os sentidos, a peça tem alto valor estético, fazendo acompanhar o jogo de cena e as cores com a qualidade musical já apontada. 

A intercalação entre a recepção dos gols ora por parte da torcida brasileira, ora por parte da sueca, é um engraçado motivo para levar adiante o assunto do espetáculo. O fim acontece de repente, como um dezembro que dá um lugar a um janeiro sem muitas explicações. Até nisso, o espetáculo é muito positivo. 

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FICHA TÉCNICA
Inspirado na obra “Feliz 1958”, de Joaquim Ferreira dos Santos
Roteiro e direção: André Paes Leme
Elenco: Andrea Veiga, Bianca Byington, Daniela Fontan, Diego de Abreu, Leandro Castilho e Matheus Lima
Músicos: Evelyne Garcia, Tiago Calderano e Leandro Vasques
Direção de movimento: Márcia Rubim
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de Produção: Andréa Alves
Cenário: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Kika Lopes
Videografismo: Renato Vilarouca e Rico Vilarouca
Programação visual: Humberto Costa / Mais PV
Realização: Aveiga Produções e Sarau Agência de Cultura Brasileira

Fando e Lis (RJ)

Ana Fazza e Natália Garcez em cena
Foto: divulgação

Equívoco
“Fando e Lis”, que esteve em cartaz, no Poeirinha, é um equívoco. O erro não é tanto não ter atualizado o texto surrealista escrito por Fernando Arrabal em 1955, mas ter forçado um realismo psicológico que é completamente empobrecedor ao que originariamente se propôs o texto. A leitura de Vinícius Arneiro para a concepção do clássico não lhe fez perguntas, mas sugeriu respostas e, nesse sentido, fez do tédio não um motivo, mas uma consequência infelizmente. Enquanto obra de arte, o espetáculo vale como um experimento mal feito, mas que tem a nos ensinar (o que não fazer). 

O lugar ermo em que Fando e Lis se encontram é um deserto sem fim e sem começo, como também são as relações entre os dois. Lis não pode andar e Fando a carrega nesse mundo sem destino visível pelo espectador. Não sabemos quantos anos têm, em que época se passa o encontro, de onde vêm e para onde vão. Fando a trata com doçura, depois a agride, depois a acaricia novamente. Três personagens surgem (como em Godot só que em contexto bastante mais onírico) e se constituem, para Fando, em um convite para sair dessa realidade nada realista. Nenhum deles são para si, mas são para Fando, porque é a Fando que nos identificamos. Diferente do Teatro do Absurdo, não há um aprisionamento trágico que envolva os personagens, porque Fando, afinal, acaba escapando. Diferente do Expressionismo, não vemos os personagens a partir de um deles, mas os vemos com ele (Fando). Nesse sentido, próximo de Artaud, estamos, leitores de Arrabal, “fervendo” em um calderão que pode nos dar um certo prazer sensorial, mas do qual ansiamos por sair. Não é isso que a direção de Arneiro dá a ver nesse espetáculo interpretado por Ana Fazza (Fando), Natália Garcez (Lis) e Leonardo Hinckel (Namur, Mitaro e Toso). 

Todos os diálogos são dados em tom realista, com marcas que expressam uma investigação do ator ao sentido de cada fala. Os sons em Arrabal fazem tanto sentido quanto as palavras e, nesse contexto, buscar apenas o sentido de uns elementos da palavra, desprezando os outros, é empobrecer a obra primeira. Por outro lado, Fando é interpretado por uma atriz e os três personagens surgem construídos por um único ator, o que não só evidencia uma concepção não articulada como também estrutura um espetáculo incoerente. Repleto de situações próprias para a aplicação das leis de causa e de efeito, esse “Fando e Lis” é monótono, sem vida, frio porque não atualiza o surrealismo, nem tem força para o absurdo ou para o expressionismo ou mesmo para o pós-dramático. 

Quanto aos demais elementos, difícil é avalia-los considerando a ausência de uma concepção. “Fando e Lis” deixou a desejar. 

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FICHA TÉCNICA:
Direção: Viniciús Arneiro
Elenco: Ana Fazza, Leo Hinckel e Natália Garcez
Iluminação: Jorge de Carvalho
Cenografia: Paula Cruz
Figurino: Flávia Costa
Trilha Sonora: Pedro Curvello
Consultoria de Movimento: Ana Paula Bouzas
Preparação Vocal: Jane Celeste Guberfain
Assistência de Direção: Flávia Naves
Arte Gráfica: Daniela Barreira
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção: Mariana Serrão e Joana Damazio

Ricardo (RJ)

"Ricardo" é o primeiro trabalho de direção
de Carolina Pismel e de Débora Lamm
Foto: divulgação

Revelações

Carolina Pismel e Débora Lamm garantem o sucesso de “Ricardo” ao dirigir a peça e, a partir de seus trabalhos, darem forma para as situações absurdas criadas pelo elenco que assina a dramaturgia. É excelente ver o teatro do absurdo ainda dizendo tanto e com tanta potência. No caso da montagem que cumpriu temporada no Teatro Maria Clara Machado, vale destacar as excelentes interpretações de Anita Chaves e de Karina Ramil, ambas revelações do teatro carioca. O todo é divertido e inteligente, bem encenado e produzido com méritos. 

O texto justapõe uma coleção de histórias absurdas que versam sobre relações entre atrizes e autor, irmãs, desconhecidas e seus amores platônicos, amizades virtuais, etc. Na primeira cena, quatro atrizes procuram um autor para que ele aceite o desafio de dar oportunidades a elas de interpretarem personagens que lhes são raros, visto que elas estão cansadas de sempre fazerem em cena as mesmas figuras. Porque essa é uma cena que abre uma peça de teatro falando sobre uma peça de teatro que está para nascer, justifica-se o esperar por parte do público que o que vem a seguir seja a peça a ser escrita. Não é. A cena seguinte é uma outra esquete, sem qualquer relação com a primeira. Nesse movimento extremamente complicado, mas bem articulado, o espectador se vê jogado de um lado para o outro sem que lhe tenha sido dado o direito de criar raízes. E é sobre isso “Ricardo”, sobre a falta de lógica nas relações contemporâneas. Por isso, por dizer em forma um conteúdo tão interessante, é que a produção ganha elogios. A linguagem viabiliza a língua criativamente, com excelente ritmo, apesar dos percalços. 

Principalmente na história da mulher que se apaixona pelo porteiro, passando pela cena do bate-papo virtual e chegando no jantar entre irmãs, “Ricardo” apresenta duas grandes atrizes: Anita Chaves e Karina Ramil têm tempos bem conduzidos, expressões bastante bem utilizadas, tempos postos a serviço pleno da comédia farseca da qual o teatro de absurdo parte em sua gênese. Nem todas as cenas, infelizmente, têm o mesmo sucesso, como também os demais trabalhos de interpretação, mas é possível ver nisso oportunidades de oxigenação da fruição que são positivos. “Ricardo” conquista aos poucos e deixa gostinho de “quero mais” no final. 

São excelentes os figurinos de Nina Reis e todo o lugar visual e sonoro da peça que circunstancia esse discurso líquido, evolutivo, sem convites à catarse ou mesmo à reflexão. Ao utilizar de cores, de texturas, de origens estéticas divergentes, as estruturas não-cênicas da narrativa contribuem para o significado que, como se disse, é construído aos poucos. 

Dentre todos os elementos, o mais significativo é a direção de Lamm e de Pismel que dá a ver jogos cênicos bastante vivos e que dão conta de preencher os lugares áridos que algumas histórias parecem querer proporcionar. O senso de ritmo, visto nesse primeiro trabalho de direção tanto de Débora como de Carolina, é admirável. Aparentemente sem pretensões, “Ricardo” oferece ótimos resultados à cena dramatúrgica e teatral carioca. Evoé. 

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Ficha Técnica:
Texto: Andrezza Abreu, Anita Chaves, Karina Ramil, Lorena Comparato e Raphael Janeiro.
Direção: Debora Lamm e Carolina Pismel
Elenco: Andrezza Abreu, Anita Chaves, Karina Ramil, Lorena Comparato e Raphael Janeiro
Stand In: Gabriela Flarys
Iluminação: Renato Machado
Figurino: Nina Reis
Cenário: Estúdio Gambiarra
Trilha Sonora: João Nitcho
Ass. de Imprensa : Luciana Duque e Ivone de Virgiliis
Direção de Produção: Tatianna Trinxet
Produção: Espaço Move Entretenimento
Realização: 3C Produções

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Fábrica de chocolate (RJ)


Adriana Torres (ao lado de Henrique Manoel Pinho) em
excelente trabalho de interpretação
Foto: Kiko Ferreira

Fábrica de excelentes reflexões

“Fábrica de chocolate”, ao lado de “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares”, é uma grata surpresa estética sobre o tema tão árduo da luta ideológica. Porque é muito fácil cair na cafonice quando se trata desse assunto, em investimentos românticos e rasos, a vitória da produção dá um prêmio para a programação teatral carioca e para aqueles que a acompanham com atenção. É muito superficial qualquer visão em que os torturadores dos porões da repressão (a ditadura acabou, mas a repressão não!) são vistos como pessoas malvadas. É preciso ir além e Mário Prata, dramaturgo da peça aqui em questão, foi. Repressores e Reprimidos são, os dois, lados diferentes da mesma moeda, pois ambos lutavam com seus meios para o estabelecimento de uma ordem que cada um achava a ideal. O único meio que as instâncias superiores encontra(ra)m para cativar seus soldados é esse: fazer acreditar que os 25 policiais suspeitos de torturar Amarildo o fizeram prestando um serviço à pátria, ao fim do tráfico de drogas, à ordem. As reflexões sobre as consequências disso é de segundo momento. Na arte, interessa o universo narrativo profundo que a possibilidade mostra: ver o torturador como um ser humano e, portanto, cheio de complexidade. Em cartaz no porão da Casa de Cultura Laura Alvim – chamada Sala Rogério Cardoso -, eis aí um espetáculo essencial na agenda teatral do Rio em 2013. 

A peça se passa no Brasil em 1975. Logo após “soltar” seis nomes de envolvidos com a luta contra a ditadura, o funcionário de uma fábrica de chocolates não resistiu à tortura e morreu diante de Baseado (Daniel Villas) e de Rosemary (Victor Garcia), seus dois torturadores. Enquanto isso, no escritório ao lado, o chefe de departamento Herrera (Henrique Manoel Pinho), sonhava em assistir ao jogo de futebol no Maracanã. Surge o problema (dramaturgia clássica): é preciso fazer algo com o corpo antes que a notícia se espalhe. Indignado por ter que cancelar a sua programação esportiva para resolver essa “pendenga”, Herrera culpa Baseado por, experiente nessas “missões”, ter deixado isso acontecer, e Rosemary, por não ter sido mais eficiente. É quando Piedade (Adriana Molina) é chamada. Interrompida em meio a uma partida de tênis, ela vem resolver o problema. Aí Mario Prata mostra o seu melhor: o texto “cozinha” o espectador, informando ao espectador parcimoniosamente sobre a forma como a questão será encaminhada. Piedade (atenção ao nome) é portuguesa (atenção à nacionalidade dela em relação ao Brasil), tendo prestado serviços aos movimentos repressores em seu país e na África antes de chegar a América do Sul. Com frieza e habilidade, seu poder e a forma como a personagem o demonstra são o motor essencial que faz girar essa história. É preciso fazer com que o torturado pareça ter se suicidado, de forma a virar o jogo e produzir uma notícia falsa antes que o resquício de fatos verdadeiros possam dar margem para a mídia sensacionalista. A “bomba” a ser publicada no dia seguinte requer a ciência do chefe do torturado/”suicida”, aquele que o delatou. No gabinete de Herrera, surge o Doutor (André Cursino), o dono da fábrica de chocolate (Em fábricas de chocolates, coisas boas são feitas. Aí mais uma metáfora interessante para o escritório onde toda a história acontece.). Por fim, um último personagem entrará, o Dodói (Guillermo Regenold), para produzir o ápice e o fim. Marcada por rápidos momentos em que a ficha de cada personagem participante da história é exposta, a peça tem ritmo dramatúrgico excelente, diálogos vibrantes, curvas muito meritosas. 

A direção de Luizapa Furlanetto é excelente igualmente. Há que se notar, antes da análise do objeto, o difícil trabalho da direção realista. Nesse tipo de peça, o diretor se esconde, se apaga diante do texto, fazendo força para parecer que fez apenas o que o texto “mandou”. É um esforço de “desaparência”, pois sabemos que, entre uma frase e outra, entre uma rubrica e outra, muitas nuances surgiram na sala de ensaios, mas que o espectador há de receber como “ordens” do texto. Assim, quanto mais apagada estiver uma direção cênica em uma peça realista, melhor ela é. E porque conseguiu apagar as marcas de teatralidade, mantendo-as lá, mas sem atrapalhar o discurso, Furlanetto merece aplausos iguais aos de Mario Prata. Bem dosados, os ritmos são excelentemente bem conduzidos e vale destacar a pausa do olhar de Piedade sobre Rosemary quando ela descobre que ele tem medo de gatos. “Fábrica de Chocolates” começa com três homens gritando palavrões um lado do outro para mostrar que a força mesmo está na elegância de Piedade, uma mulher. Por fim, termina dizendo que é o medo o maior torturador, aquele que é verdadeiramente capaz de matar, seja o repressor, seja o reprimido, ambos seres humanos. 

Todas as participações são excelentes, cada uma dentro de uma função semântica (a corrupção de Herrera, a ambição de Rosemary, a força de Baseado, o poder de Piedade, a ganância de Doutor, a selvageria de Dodói), o que é mais um mérito da direção de Furlanetto. Está, no entanto, em grande destaque o trabalho de Adriana Torres, por representar de forma coesa e coerente o personagem mais complexo de toda a encenação com galhardia. Todos os trabalhos são potentes em suas presenças: dicção, gestos, movimentos, energia. 

Quanto aos elementos outros da cena, é preciso também fazer uma ressalva. Se a direção teatral precisa desaparecer no teatro realista, o cenário, o figurino, a iluminação e a trilha sonora precisam aparecer a ponto de construir um lugar seguro o suficiente para o espectador, depois de desistir de encontrar “furos”, relaxar e curtir a história na qual optou por acreditar. Eis aí o motivo para o sucesso dos trabalhos de direção de arte e cenografia de José Dias, de figurino de João Freitas Henriques, de trilha sonora de Mario Portella e de iluminação de Alexandre Reis.

A prova final a servir como argumento de que “Fábrica de Chocolate” é um excelente espetáculo é a forma como, situados no escritório de Herrera, conseguimos imaginar em detalhes a sala de tortura, o torturado, Picuinha, o chefe de Piedade, os gatos e, principalmente, a matéria que sairá no dia seguinte. Vale a pena!!!

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Ficha Técnica:
Direção: Luizapa Furlanetto
Texto: Mario Prata
Cenário: José Dias
Iluminação: Wilson Reiz
Figurino: João de Freitas
Gestores de Projeto: Daniel Villas e Henrique Manoel Pinho
Elenco: Adriana Torres, André Cursino, Daniel Villas, Guilhermo Regenold, Henrique Manoel Pinho e Vitor Garcia
Idealização e Realização de Hermes Frederico: Frederico e Osório Produções Culturais
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Dias de setembro (RJ)

Lucas Sancho em cena, entre baú, papéis e "candelabros"
Foto: divulgação 

Sem consistência

O maior problema de “Dias de setembro” é que o espectador não tem em mãos marcas suficientes que o ajudem a se sentir seguro diante da peça (e nem tem provas suficientes de que é justamente a sua suposta ou possível insegurança que será útil para a narrativa). A proximidade quase íntima do público, que se dá a partir de uma relação não apenas geográfica (a plateia circunda os dois metros quadrados em que o ator atua sob uma luz muito baixa), mas também linguística (pois o público participa da peça, sendo carinhosamente acolhido e usado como referência no estabelecimento de uma conversa em que a história se conta), ajuda a construir a dúvida se a produção é uma peça (o ator interpretando um personagem diante do público) ou uma performance (ator e personagem estão tão misturados que o público não sabe onde começa um e termina outro). A interrogação é problemática: se é uma performance, a identificação sai prejudicada, pois o caso é isolado e a narrativa segue fria; se é uma peça, carece-se de mais distanciamento e de menos referências líricas para que a catarse possa existir e o público se emocionar. No Espaço Dois do Solar de Botafogo, Lucas Sancho, que assina a dramaturgia, a direção e interpreta o monólogo, esteve corajosamente apresentando a história do relacionamento entre Henrique e Dudu e, com a iniciativa, sugerindo uma bonita questão para quem gosta de refletir sobre a comunicação teatral, além de fruir arte e se entreter. 

A imagem de masculinidade que a figura do ator transmite entra em choque com o meio com que o ator parece ter construído o seu personagem. Cheia de trejeitos afetados, a construção criada, dirigida e interpretada por Sancho causa estranhamento no público que, desde o início, nota que não sabe se está vendo uma obra objetiva (peça) ou uma obra subjetiva ( performance) e, por isso, demora a entender como deve agir. Se a distância, afinal, entre Dudu e seu intérprete for pequena, “Dias de Setembro” gira sozinha entorno de si mesma e o público há de dever apenas testemunhá-la. Se for grande, é preciso que esse acordo seja mais claro a fim de fazer a plateia sentir-se a vontade para, a partir da história narrada, “purgar o seus próprios sentimentos”(conceito aristotélico de catarse). Na história, Henrique (Sancho) recebe o público em um apartamento que está há muito tempo fechado. Nesse lugar, durante alguns anos, moraram ele e seu marido Eduardo, relação essa que já terminou. Venta lá fora e o vazio sentido pelo anfitrião (apesar da presença do público convidado para adentrar nesse lugar) motiva-o a relembrar o passado. Começa aí a narração de como ele e Dudu se conheceram, como foi o pedido de namoro, como foi o desenrolar do relacionamento. A dramaturgia mistura os fatos narrados com pausas líricas (diálogos com o vento, por exemplo) em um esforço de parecer mais geral e menos específica, resultando exatamente no efeito contrário negativamente. Acontece que quanto mais o personagem Henrique fala de Dudu, mais fala de si mesmo e, nesse processo, menos fala do público (mais difícil é a identificação). Sem consistência dramatúrgica e sem firmeza na construção do personagem, a fruição resulta em tão cambaleante quanto o objeto. 

Utilizando apenas os momentos em que a história de Dudu e de Henrique é contada pelo segundo, nota-se um romantismo werthertiano que não é nada líquido (conforme Zygmund Bauman, em conceito citado na peça e no release), mas bastante concreto. Eis outra dúvida, agora filosófica, que a peça deixa. Henrique afirma que traiu Dudu antes que ele fosse traído pelo namorado, esse último cada vez mais distante. Nas relações líquidas de Bauman, não há traições, mas relacionamentos mais fluídos, com acordos mais abertos. O idealismo e a moral com que Henrique julga as próprias ações e as do companheiro ocupam um lugar na história da arte que é bastante fixo e, pelas indicações pseudo-contemporâneas, parecem aqui renegadas infelizmente. Nesse sentido, “Dias de Setembro” fala de amor, mas parece ter vergonha disso. 

Os recursos usados pela encenação remetem a um lugar íntimo e performático: as paredes do Espaço Dois são mantidas como estão (azulejos velhos, paredes enegrecidas, telhas de barro à mostra), há abajures, garrafa de vinho, pedaços de papéis e um aparelho de rádio antigo. Ao retornar para o passado, Henrique precisa de “amigos” com quem desabafar e que lhe dê coragem, ficando, assim, em um lugar lugubremente romântico (baú, cartas, "castiçais") e nada contemporâneo, apesar de requisitar, por vezes, esse tipo de relação com a plateia. 

Em tempos de reflexão sobre as relações humanas, essas definitivamente mais abertas a formas alternativas de orientação sexual, “Dias de Setembro” tem o mérito de conquistar o respeito para si, apresentando uma história de amor homossexual com a mesma seriedade com que se vem, desde muito, apresentadas as de heterossexual. É, assim, gratificante ver como a plateia reage carinhosamente, natural e positivamente ao espetáculo visto, apesar das dúvidas de ordem estética que esse deixa. 

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Ficha Técnica

Dramaturgia, Direção e Interpretação: Lucas Sancho
Supervisão de Ambientação: Paulo Denizot
Trilha Sonora: Banda Encarne
Produção Executiva: Carolina Hiller
Direção de Produção: Rodrigo Medeiros
Realização: R+Marketing

domingo, 20 de outubro de 2013

120 dias de Sodoma (RJ)

Em destaque, Rafaela Azevedo em cena
Foto: divulgação

Muito esforço para pouco


“120 dias de Sodoma” suscita uma questão importante na reflexão sobre teatro: a dos diferentes tipos de fruição da arte. Fruir literatura não é o mesmo que assistir a uma peça de teatro. Os acordos com a obra são outros. Marquês de Sade (1740-1814) não escreveu, no caso dessa peça, teatro, mas literatura. O romance é para ser lido por uma só pessoa de cada vez, à luz de velas e no tempo em que o leitor se dispor a fazê-lo. A adaptação de Rodolfo Garcia Vasquez é feita para ser assistida em um teatro, durante noventa minutos ininterruptos e em público. Talvez por isso, a necessidade de um motor que justifique o tempo de fruição e o drible dele sejam muito maiores. O teatro dissertativo precisa ter objetivos muito claros em uma situação também muito clara para ser bom. De outra forma, tende-se ao fracasso. No caso em questão, a ausência de um conflito que dê conta do movimento geral da obra, em que a narrativa conta como argumento para a dissertação e não o contrário, depõe contra ela. Com direção de Luiz Furlanetto, “120 dias de Sodoma” é bom, mas é banal. Está em cartaz, em sua segunda temporada, na La Paz, na Lapa, zona central do Rio de Janeiro. 

Três libertinos – um bispo (Marcelo de Paula), um ministro (Ricardo Ricco) e um juiz (Matheus Silvestre) – reúnem-se durante 120 dias em um castelo em que um grupo de prisioneiros prestam-lhe serviços sexuais de toda ordem. A narração é feita pelas pessoas que trabalham nesse castelo, nem os libertinos, nem os prisioneiros, e está dividida em três partes que vão sendo apresentadas ao público em capítulos. Cada uma das partes está vinculada a um libertino, embora dela todos os três façam parte. Na exposição, o nu, o sadomasoquismo, o interesse sexual por virgens, por menores de idade, por corpos já falecidos, por excrementos, a antropofagia vão surgindo como contornos da tese que vai sendo desenvolvida, mas não há um problema que seja apresentado e nem tampouco resolvido. Os prisioneiros, todos eles, foram capturados em meio às mazelas de suas próprias vidas (o desconhecimento da filiação, o crime, o abandono, a marginalidade), e, como tais, eles não gostam de estar ali. Claramente, no entanto, não há nenhuma tentativa (ou possibilidade) de fuga, de forma que a situação inicial é a única situação ao longo de toda a peça. Assim, pode-se dizer que, por princípio, a peça apresenta uma galeria de “perversidade sexuais”, mas sem um objetivo claro que não seja apenas a exposição. 

No elenco dirigido por Luizapa Furlanetto, há boa participação de Marcelo de Paula e de Ricardo Ricco, cujas vozes são usadas de forma clara e precisa. No entanto, é a minúscula participação de Rafaela Azevedo que realmente chama a atenção positivamente. Em belíssimo trabalho corporal, a atriz faz de seus poucos minutos em cena um grande acontecimento no espetáculo. Todos os demais trabalhos são fracos, sem vida, sem cor, cambaleantes em oratórias sem técnica, sem emoções mais profundas além de máscaras, sem verdades que possam/poderiam tornar o que se vê em algo mais interessante. Apesar da sucessão de cenas repletas de atos perversos (a dor do açoite, o alimentar-se de fezes, o concurso de “cus”, entre outros), a peça não choca porque vulgariza as ações a ponto de fazê-las perderem as supostas importâncias. Lá pelas tantas, lamber uma vagina menstruada, por exemplo, equivale ao mesmo que sair ou que entrar de cena, sem hierarquia nos sentidos, o que é uma grande falha da direção de Furlanetto. 

A trilha sonora de Isabel Viany é uma das piores coisas já vistas no teatro carioca. Unindo Nino Rota à trilha do musical “Chicago”, Tchaikovsky a Strauss, e terminando com um samba, exibindo um desconhecimento atroz dos referenciais e das potencialidades significativas de cada matriz, a direção musical atrapalha a peça, lutando contra ela por uma atenção que deveria apenas ser voltada à cena e não aos seus elementos argumentativos. Estão bem o figurino de Cesar Soares e a iluminação de Orlando Schaider, embora sem destaques. 

Talvez o pior momento de “120 dias de Sodoma” seja o final, quando a produção força um relacionamento entre o que foi criado pela cabeça imaginativa de Sade e um contexto político brasileiro atual. É um grande equívoco. Os valores que fundamentam os personagens sem nome do ministro, do juiz e do bispo, essas três figuras apenas representativas, não fazem referência à hipocrisia de uma determinada sociedade em uma época específica, mas ao modo como o homem que se diz civilizado encara/reprime o seu próprio desejo sexual, isso visto sem limites sociais, temporais ou geográficos. Pelo exposto, a peça vale enquanto exposição do lado obscuro da sexualidade humana, mas pouco além. 

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Ficha Técnica:
Texto: Marquês de Sade
Adaptação: Rodolfo Garcia Vasquez a partir da obra de Marquês de Sade
Direção: Luiz Furlanetto
Elenco: Matheus Silvestre, Ricardo Ricco, Marcelo de Paula, Layla Fassarella, Michelle Guimarães, Isabel Viany, Pvisrael, Marcello Andreata, Elmir Mateus, Rafaela Azevedo, Che Oliveira, Thuany Andrade, Laura Molica, Isabela Moss, Heiner Miranda, Clécio Rodrigue, Zé Britto.
Produção: Matheus Silvestre
Iluminação: Orlando Schaider
Figurino: Cesar Soares
Cenário: Teatro O Grupo
Realização: Teatro O Grupo
Preparação Corporal: Lourival Prudêncio
Direção Musical: Isabel Viany
Assessoria de Imprensa - Minas de Ideias

O dragão dourado (RJ)

Elenco de "O dragão dourado" em cena
Foto: Heiner Miranda

Desafinado

Pensando no texto, “O dragão dourado” pode fazer dupla com “O Cortiço”, romance de Aluísio Azevedo; e com “Delicatessen”, filme francês de Jean-Pierre Jeunet e de Marc Caro. Em contexto, está uma verve cômica do realismo naturalismo: os ambientes vistos de forma orgânica, como um imenso ecossistema onde os “bichos” agem por instinto, sem moral, sem ética, sem valores de positivo e de negativo, o que olha para o ser humano a partir de um ponto de vista que é interessante pela ótica da realização de suas vontades. A peça dirigida por Ole Erdmann, a partir de texto de Roland Schimmelpfenig, no entanto, está muito longe tanto disso, como de qualquer outra coisa, simplesmente porque nela não há qualquer coerência, como também há ausência consciente de coerência, o que indicaria um sentido. No palco da La Paz, na Lapa, zona central do Rio de Janeiro, a peça reúne signos muito diferentes, opostos, de forma a construir algo sem forma e, por isso, muito ruim infelizmente. 

No andar térreo de um edifício, há um restaurante de comida oriental chamado “O dragão dourado”. Em sua cozinha, um grupo de chineses estão às voltas com os pedidos, também preocupados com a forte dor de dente de um deles, o menor, que vem se estendendo há dias. Nos andares superiores, nos apartamentos, os moradores estão em seus conflitos pessoais e o texto sugere uma relação rítmica entre esses fatos e os que acontecem no andar de baixo. Sem qualquer relação de causa e de consequência, a liga que justapõe os diversos pequenos ambientes e o que acontecem neles é apenas temporal, isto é, a organicidade do prédio está em seu conservar de ações isoladas, mas que dão a ver um todo. Aí está o realismo naturalismo: o sufocamento (que é sentido pelo público, mas vivenciado pelos personagens) chama a atenção da fruição para os personagens que aparecem e desaparecem, resolvendo seus problemas de forma imediatista, sem reflexão, mas que, no contexto do todo, fazem sentido ou poderiam fazê-lo. É uma pena que o texto não tenha tido boa transposição para o palco. 

“O dragão dourado”, a peça, não tem ritmo consistente, as interpretações são sofríveis, o desenho de iluminação é terrível. Erdmann justapôs sangue com marcas de realidade (um líquido vermelho na boca da atriz que interpreta o chinês menor) e sangue expresso com um tecido vermelho segurado próximo do nariz da atriz como se ambos os signos utilizados fossem a mesma coisa, isso para exemplificar apenas um problema da ordem da linguagem. O líquido vermelho e o tecido da mesma cor se referem ao mesmo “sangue”, mas, na arte, vinculam a obra teatral a lugares diferentes, porque requerem do espectador um comportamento diferente (o líquido é um signo icônico, o tecido um signo simbólico). Homens interpretando mulheres prejudicam o realismo, a base do realismo naturalismo, quando a justificativa não está clara como aqui é o caso. E, ainda dentro da direção, o espetáculo é sem coesão interna, começando com exercícios de metateatro – em que o ator interpreta o personagem, mas também o próprio ator – mas abandonando-os, porque os entraves do ritmo assim parecem leva-lo a fazê-lo. (Enquanto atuam, no início da peça, os atores dividem suas frases com expressões como “pausa” ou “pausa curta”, quebrando a contracena para dirigirem-se ao público, estabelecendo um jogo de personagem e de ator rapsodo que é fatigante para o intérprete e muito mais para o público.) Ao longo de mais de cem minutos, “O dragão dourado” não cria nenhuma oportunidade de se estabelecer enquanto uma estrutura coesa infelizmente. 

Os trabalhos de interpretação de Genilda Maria e de Michelle Guimarães são péssimos. Sem ritmo, temos a impressão de que as atrizes precisam se lembrar das marcas para poderem executá-las, além dos personagens, todos eles, serem apresentados de forma superficial, farsesca, rasa. Ricardo Ricco está apagado em cena enquanto Matheus Silvestre parece interpretar o mesmo personagem várias vezes (as duas mulheres são iguais), variando apenas no sutil tom de voz as algumas diferenças. Vinícius Saramago é quem tem o único trabalho gracioso do elenco, essa sensação desperta pela personagem da Cigarra, cujo conflito parece ser o melhor entre os expostos na narrativa. 

Os figurinos de Flávia Cassiano atendem bem à peça embora sem destaque. O cenário de Anderson Dias cria um labirinto interessante de espaços que, infelizmente, não são bem usados pela direção e, menos ainda, pela concepção de luz, essa o pior recurso desse espetáculo cênico. Orlando Schaider deixa personagens no escuro quando precisam ser vistos em seus apartamentos, cria uma luz forte demais para o interior intimista de um restaurante e expõe um desenho ilustrativo para o que acontece na cozinha dele. 

Reconhece-se que o “O dragão dourado” é uma peça difícil para ser interpretada por um elenco pouco numeroso em um espaço não muito privilegiado como o é o La Paz. As dificuldades da enorme variedade de personagens, desfilando por um cenário cheio de degraus sob um desenho de luz cambaleante, são cada vez maiores na medida em que o ritmo da dramaturgia necessita de mais envolvimento. Nesse sentido, mais responsável é a direção pelo ausência de um conceito que desse conta, pelo menos, de coerência semântica. Uma pena. 

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Ficha Técnica
Texto - Roland Schimmelpfenig
Direção - Ole Erdmann
Elenco - Genilda Maria, Matheus Silvestre, Michelle Guimarães, Ricardo Ricco, Vinícius Saramago
Assistente de Direção - Roberta Rodrigues
Produção - Matheus Silvestre
Assistente de Produção - Layla Fassarella
Iluminação - Orlando Schaider
Cenário - Anderson Dias
Figurino - Flavia Cassiano
Trilha Sonora - Tauã de Lorena e Laura Lenzi
Adereços - Johnny de Souza Farias
Design Gráfico - Iuli Vieira
Fotógrafo - Gustavo Otero
Realização - Teatro O Grupo
Assessoria de Imprensa - Minas de Ideias
Casting - Matheus Silvestre
Preparação Corporal - Mari Alvarenga

Clementina, cadê você? (RJ)

Elenco em cena
Foto: divulgação

Sem a justa homenagem

“Clementina, cadê você?” é um bom espetáculo de entretenimento, mas que deixa a cantora Clementina de Jesus (1901-1987) ainda sem a justa homenagem na passagem dos seus 50 anos desde o início de sua carreira. A peça é alegre, divertida e Ana Carbatti dá “conta do recado” na interpretação do personagem título de forma potente, bela e interessante. No entanto, sai-se do teatro, sabendo apenas dois trechos da vida da Rainha Quelé: como ela conheceu seu marido e como ela foi descoberta por Hermínio Bello de Carvalho, o que é pouco, considerando que foram 86 anos de vida para uma mulher negra, pobre e que fez e faz ainda muito sucesso. Com texto de Pedro Murad e direção de Duda Maia, o resultado estético é simplório, com movimentos dramatúrgicos e cênicos bastante simples, pouco ricos, perdendo oportunidades de representar metáforas que poderiam dar ao todo mais valor. A produção está em cartaz no palco principal da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, com Bruno Barreto, Bruno Quixotte, Sergio Kauffmann, Vidal Assis e Wendell Bendelack além de Carbatti. 

Clementina e um grupo de amigos (todos homens) estão em volta de uma grande mesa fazendo samba. À vontade, ela sente necessidade de atender aos pedidos que lhe chegam para contar um pouco mais de sua vida, driblando a memória e preenchendo os espaços vazios como sua imaginação manda (“Clementina, cadê você?” não é, assim, um documentário!). Começa a narração de como ela conheceu seu marido, Albino Pé Grande, isso ainda no início dos anos 30. Encerrada essa parte, Clementina começa a contar de como a fama chegou a ela, o que aconteceu no início dos anos 60. Depois, próximo do fim, a sua dor quando na ocasião de sua viuvez. A peça, em que 20 canções são interpretadas, termina sem que vários outros acontecimentos não tenham sido nem mesmo citados, esses que também poderiam ter sido usados como motivo para o repertório musical que se ouve. 

Bruno Barreto, Bruno Quixotte, Sergio Kauffmann, Vidal Assis e Wendell Bendelack se revezam a na interpretação de figuras (que não chegam a personagens): o marido, os filhos, Hermínio, amigos. Suas aparições são rápidas, sem forma dramatúrgica e pouca valorização do texto, mas nobres, porque é possível identificar boa integração de cada um no conjunto do elenco. Carbatti está, nesse trabalho, em lugar de destaque. Sua Clementina é doce, afável, além de talentosa. A vontade que o espectador sente de saber mais da personagem talvez não venha apenas de uma falha do texto e da direção, mas da forma vibrante com que a cantora é interpretada pela atriz. 

As cenas são rápidas e fluídas. Os figurinos, o cenário e o desenho de luz são muito simples e sem destaque. Em “Clementina, cadê você?”, além de Carbatti, a interpretação ao vivo das questões é o único ponto positivo, o que faz desse espetáculo um bom entretenimento e nada além. 

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FICHA TÉCNICA
Idealização - Cristiano Salgado
Texto - Pedro Murad
Direção - Duda Maia
Elenco - Ana Carbatti, Bruno Barreto, Bruno Quixotte, Sergio Kauffmann, Vidal Assis e Wendell Bendelack
Direção musical - Pedro Miranda
Cenário e figurinos - Clívia Cohen
Iluminação - Renato Machado
Diretora assistente - Letícia Medella
Preparação vocal - Carol Futuro
Engenharia de som - Branco Ferreira
Operador de som - Tig Picado
Operadora de luz – Tamara Torres
Diretor de palco - Rodrigo Ferreira
Fotografia - Pedro Murad
Design - Luiz Arbex
Assessoria de imprensa: Barata Comunicação
Direção de Produção e Produção executiva: CultConsult / Elaine Moreira e Maria Inês Vale
Realização: Espaço de Dança Cristiano Salgado

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Bibi canta e conta Piaf (RJ)

Em um dos melhores momentos,
Bibi Ferreira e Nilson Raman
interpretam Edith Piaf e Yves Montand
Foto: divulgação


Reverências!

Bibi Ferreira é um desafio para qualquer teórico de teatro. Todos nós sabemos que o que diferencia o teatro das outras artes é a relação triádica entre quem faz, quem vê e o que é feito. 2500 anos depois de terem sido escritas, podemos ler as tragédias de Sófocles. 250 anos depois de terem sido compostas, um estudante de piano pode tocar as músicas de Bach. As pinturas do renascimento estão vivas, “... E o vento levou” está disponível, o prédio do Theatro Municipal está de pé, ou seja, nenhuma outra arte precisa do artista para sobreviver e nem mesmo do público. Com teatro, não é assim. Em 1983, Bibi Ferreira interpretou Piaf pela primeira vez no Brasil, reinaugurando, no ano seguinte, o Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Trinta anos depois desse acontecimento marcante para a história do teatro brasileiro contemporâneo, o mesmo concerto é remontado e as novas gerações tem a mesma atriz diante de si em igual (ou quem sabe maior, força). Bibi dribla o tempo, os conceitos fundantes do teatro, a rigidez estética e vence a cruzada com extrema galhardia. 

“Piaf, a vida de uma estrela da canção”, da autora inglesa Pam Gems, estreou no palco do Teatro Ginástico (hoje Sesc Ginástico) sob direção de Flávio Rangel, contando a vida da maior cantora francesa, Edith Piaf (1915-1963). O sucesso estrondoso deu a nossa maior cantora e intérprete a Comenda das Artes e das Letras da República Francesa por duas vezes – em 1985 e em 2009, orgulhando o Brasil e seus artistas. Agora, no ano em que se celebram os 50 anos de falecimento de La Môme, “Bibi canta e conta Piaf”, uma realização da Montenegro e Raman, voltou em uma temporada no Teatro Oi Casa Grande, com orquestra e coral, entre apresentações em outras capitais e, também, no Lincoln Center, em Nova Iorque. Na altura dos seus noventa anos e com belíssimo vigor físico (e vocal!), para nós, estar diante de Bibi Ferreira é um privilégio indulgente, uma honra purificadora, uma benção sem exageros. 

Com alta dose de elegância, Bibi e Nilson Raman (mestre de cerimônias) narram a vida de Piaf enquanto suas canções são interpretadas pela cantora, pelo coro e pelos músicos. Com uma sutileza sábia e bela, Bibi dá vida para as letras, critica, sorri e faz emocionar. A discrição dos gestos faz oposição com a grandiosa potência vocal de forma que, em dupla, a articulação de ambos cria o referencial cênico que se espera para a fruição das músicas, essas cantadas em francês e sem legendas. Para os não falantes do idioma de Piaf, basta olhar para sua intérprete e a história está dada: uma atriz, diante de um público, interpretando uma personagem. É destaque também a sobriedade com que Raman conduz a narrativa – sem exageros, em postura aristocrática e com grande clareza e carisma. Como um corifeu, Raman representa o público ao lado de Bibi, dando a ela o cuidado, o respeito e o carinho que ela merece. 

Cheia de palavras pomposas e um tanto quanto repleta de marcas exageradas, essa análise crítica está longe de expressar o arrepio que se sente ao ver alguém atravessar três décadas, trazendo Piaf de 1983 a 2013. Isso para não lembrar de “Minha querida lady” (adaptação de 1962 do musical “My fair lady”), de “Alô, Dolly” (de 1965, adaptação de “Hello, Dolly”), de “Gota d´água” (1975) e de “Bibi Ferreira vive Amália Rodrigues” (2001), entre tantos outros espetáculos desde 1946. Às portas de um novo espetáculo, em que interpretará as canções de Frank Sinatra, eis em Bibi uma determinação, uma disciplina, um talento inigualáveis. Reverências! 

Conselho de classe (RJ)

Marcelo Olinto em excelente trabalho de interpretação
em "Conselho de Classe"
Foto: divulgação

Assistir é imprescindível

           “Conselho de classe” é uma peça instigante. O texto coloca em reunião quatro professores de uma escola pública, membros de um conselho de pais, alunos e funcionários, esses representados pelos professores, que também são pais e funcionários. Em questão, está, sim, as mazelas do ensino público nacional, mas muito mais que isso: a complexidade do homem, o lugar para onde nossas crenças nos levam, o desejo humano de paz e de descanso, além de seus valores éticos e morais. Sem dúvida, é um texto maduro de Jô Bilac, mas também um trabalho de ourivesaria de cada ator e sobretudo das diretoras Bel Garcia e Susana Ribeiro, cujos elogios se estendem a equipe. Vontade de rever várias vezes, vontade de sentar com os personagens e discutir (sou professor há 16 anos e, nos primeiros 5 anos, em escola pública de ensino fundamental), vontade de escrever essa análise que agora você lê. A peça está em cartaz no Espaço SESC - Mezanino e depois seguirá para a Sede das Cias. Nesse clima de manifestações nacionais e dia do professor, assistir à “Conselho de classe” é imprescindível. 

Na história, há uns dias, um aluno foi barrado na entrada da escola por usar boné pela diretora. Indignado, ele uniu-se a outros colegas, deles recebendo apoio, e a notícia se espalhou. O caso foi parar nos ensaios do grupo de teatro, que estava montando, sob a direção da professora de Artes, a peça “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, cujo nome é também o da escola. No dia seguinte, a peça foi representada no ginásio, com a cruz de Zé do Burro servindo de meio de entrada da massa “embonezada” dentro da escola. Na confusão, a diretora foi agredida, hospitalizada e afastada por motivos de saúde da função. O conselho, então, precisa se reunir para dar conta de vários assuntos importantes antes do encerramento do ano letivo. Eis que um jovem diretor-substituto, interventor enviado pela Secretaria de Educação, aparece na reunião. 

Jô Bilac poderia ter escrito apenas um texto de conversas retóricas, cheias de filosofia, crises e idealismos. Felizmente, foi além. Em meio aos diálogos quase platônicos, há muitos intervalos e acontecimentos paralelos que dão base, escopo e cor para o que se diz. A professora que defende o equilíbrio se aproveita do ritmo ameno para vender roupas e produtos de beleza, além de utilizar o telefone da escola para fins pessoais. A professora que defende a ordem, a hierarquia, o cumprimento dos deveres e a retidão leva a chave do ginásio para a sua própria casa e mantém trancados parte da história da escola para motivos que ela considere privilegiados. A professora mais experiente e que ouve com mais atenção as posições também é a mais velha, a mais desacreditada e a mais querida do grupo. O interventor que vem defender a pureza das ações, o comprometimento, a responsabilidade é aquele que irá dar carona no seu carro para uma das professoras, pegando o volante imediatamente após beber uma latinha de cerveja. Assim, e muito mais, “Conselho de Classe” está longe de apenas expor os problemas das políticas públicas da educação, mas pauta a complexidade humana sob um ponto de vista ético e moral que inaugura um novo estilo em Jô Bilac (com menos força, o dramaturgo discutiu a profissão do crítico de teatro em “Caixa de Areia”). Por isso, toda a plateia sente o convite para a catarse, para a reflexão e para a discussão. O teatro cumpre o seu papel. 

Quando falamos em teatro aqui, falamos em Bel Garcia e em Susana Ribeiro, aqui assistidas por Raquel André, que assinam o transporte da literatura de Jô para o palco realizado pelo grupo Cia dos Atores. Com a maestria de quem conhece o idioma teatral, a dupla de diretoras dosa com galhardia cada informação que solta, de forma a virar o jogo, subverter a narrativa pelo seu oposto, reimprimir um ritmo que parecia ter sido perdido mas nunca o foi. O desenho de movimentação pelo palco é excelentemente usado, as pausas e os clímaxes nos momentos de diálogo, as intervenções externas (a água que falta, o banheiro sujo, o ventilador que pifa, as vozes que vêm da rua, o telefone que toca,...) e os momentos de reflexão dos personagens são usados em favor da narração e de sua fruição cênica com galhardia. O tempo passa sem que seja visto, a atenção está presa à velocidade com que as respostas vão sendo dadas às perguntas que o espectador vai fazendo à peça. 

São brilhantes as interpretações. Em personagens extremamente opostos, César Augusto e Paulo Verlings se dividem em trabalhos que viabilizam personagens ora inaptos diante dos acontecimentos, ora dispostos a fazer algo por si (buscar uma vaga na Secretaria, dar direção para o caos instalado na escola). Outra oposição se repete em Leonardo Netto e em Thierry Trémoroux, essa mais clara que a anterior pela força de seus personagens na história, em que os intérpretes dão vida a posições morais e éticas bastante diferentes em relação a função do educador. Com igual força, cada um dos quatro personagens apontados precisa ser forte para garantir o equilíbrio e, assim, sustentar a tensão e fazer o público ansiar pelo final quando o resultado poderá ser dado. Eles o são, o que é excelente. No entanto, “Conselho de Classe” parece ser para Marcelo Olinto, cujo personagem resume em si todo o carisma da profissão de professor (entre todas, a profissão mais honrada!), cujo personagem requer para si o carinho do público pela sua idade avançada e cujo personagem diz as coisas mais vitais de jeitos mais sutis. O verdadeiro grito de “Conselho de classe” está no sussurro de Tia Paloma, interpretada por Olinto, em um dos momentos mais importantes do espetáculo. No jeito de caminhar, na fala aparentemente despretensiosa, no olhar falsamente desperdiçado, nos gestos muito sutis, Olinto está excelente. 

A opção da direção em fazer personagens femininos serem interpretados por homens pode até reforçar algum tipo de preconceito, mas, sem dúvida, faz muito bem para a peça. Não tenho dúvidas de que, fossem cinco mulheres em uma reunião de professores sob um calor infernal, o resultado estético não seria tão bom porque a plateia demoraria mais tempo para se interessar pelo assunto. Essa demora possível é consequência, sim, de preconceito, pois é como se não déssemos o devido valor ao que diz um grupo de mulheres. No entanto, o fato de demorarmos mais para entender o jogo de atores homens serem chamados por nomes femininos é o “perfume” de que Bilac, Garcia e Ribeiro se utilizam para encantar a plateia de forma que, quando notamos, já estamos fisgados pela trama, sem possibilidade (nem vontade) de voltar. 

Ainda antes de terminar, vale uma nota para o cenário (Aurora dos Campos), para o figurino (Rô Nascimento e Ticiana Passos) e para a iluminação (Maneco Quinderé). São vibrantes dos múltiplos espaços que a ambiência providenciou à direção. Corredores, saídas, cantinhos, zonas de proteção e de plena exposição, momentos meramente ilustrativos e outros bastante narrativos: não há um só detalhe que não seja bem aproveitado na organização e na utilização do espaço. Quanto ao vestuário, é bastante interessante notar o quanto as roupas masculinas dão feminilidade aos personagens pelas nuances. Um relógio colorido aqui, uma tiara lá, uma calça apertada adiante, um cabelo bem penteado a seguir, uma alfaiataria bem feita por fim são portas de entrada para as mulheres que estão em cena, sem que a questão de gênero se torne um problema (os personagens não são homens nem héteros, nem gays. São mulheres e todo o resto não nos interessam naquele contexto de discussão profissional). O desenho de iluminação, assim como a trilha sonora de Felipe Storino, tem o valor de ser discreto, mas presente. As mudanças de luz acontecem e pontuam o ritmo da peça muito bem, mas não fazem felizmente nos esquecer de que estamos num frio e monótono ginásio escolar. 

Ao contrário do que dizem, 2013 foi e está sendo um excelente ano para as artes cênicas no Rio de Janeiro. “Conselho de classe” é argumento em favor disso. 

*

Ficha técnica
Texto: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia e Susana Ribeiro
Assistência de direção: Raquel André
Elenco: Cesar Augusto, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Paulo Verlings e Thierry Trémouroux
Figurino: Rô Nascimento e Ticiana Passos
Cenário: Aurora dos Campos
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha original: Felipe Storino
Direção de produção: Tárik Puggina
Produção: Nevaxca Produções
Coprodução: Treco
Realização: Cia dos Atores

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A outra cidade (RJ)

Excelente direção de arte de Rui Cortez
Foto: divulgação

No futuro, saberemos

Se “A outra cidade” for realmente um bom espetáculo, só saberemos no futuro, pois creio que faltam agora fontes suficientes para embasar tal avaliação. Essa é, assim, uma das belezas da arte contemporânea: nem tudo pode ser plenamente analisado no momento da produção, pois há marcas que só ficarão claras em outro tempo. Escrito e dirigido por Pedro Brício, o espetáculo paira estranho no palco do Centro Cultural do Rio de Janeiro, criando lugares para imediatamente desfazer-se deles. Na trama, que se passa no sul da América do Sul, um garoto de 14 anos cria histórias de frente para o mar. Ele, cuja mãe faleceu na ocasião do seu nascimento, é obcecado pelo fim do mundo e agora aguarda um tsunami que está para chegar e arrasar toda a cidade. Tratado como fantasia depressiva do protagonista primeiramente, pois ninguém acredita que o tal tsunami de fato chegará, esse “lugar” que situa o personagem como um visionário logo é quebrado: de fato, vem o tsunami. Ou seja, a crença dele, que fazia com que o espectador o visse como alguém afetivamente ligado à morte, não era apenas crença, mas certeza. Comemorando os dez anos da Zeppelin Cia, esse espetáculo requer do espectador uma constante quebra de paradigma, embora não se aproxime do teatro do absurdo por apresentar referências de lugar e de tempo muito fortes. Divergente sem ser pós-dramático, “A outra cidade” tem difícil análise e difícil fruição e, talvez porque convide ao desafio, valha a pena ser visto. 

Ariela (Ludmila Rosa), cujo espírito vemos, é a mãe de Valentin (Bernardo Marinho) e de Augustino (Sérgio Módena). Pela forma como seus diálogos com o filho mais novo se dão a ver na estrutura dramática, é o espectador levado a crer que se trata de mais uma imaginação de Valentin. Não o é, pois Mercedes (Erica Migon), irmã de Ariela e atual namorada de César (Sávio Moll), viúvo de Ariela, também vê a falecida. Não sabemos onde foram parar as fotos de Ariela, há um guarda roupa na areia da praia sem que sua origem e destino sejam revelados e, por aí, vários contextos se abrem, mas não se fecham e tampouco se relacionam os demais. 

Nas conversas com o espírito da mãe, Valentin quer muito saber para onde vão os mortos quando não mais vivos, enquanto a mãe deseja que o filho pare de pensar nela, já que essas lembranças machucam a sua alma. A relação entre esses dois objetivos é forte e potente, mas parece não ter sido o bastante para a dramaturgia de Brício. Em “A outra cidade”, esse diálogo divide lugar com a frustração de César e de Mercedes: ele largou as aulas de filosofia que lecionava para trabalhar em uma loja de sapatos e ela quer que seu relacionamento seja oficializado por César. Na casa, Augustino e sua noiva Pepeliz (Branca Messina) estão às portas do casamento, com apenas um resquício de sugestão de que algo talvez não vá bem entre eles. E, assim, como os personagens mal podem influir dentro de seu próprio núcleo, quanto menos nos demais, não há uma história que realmente se manifeste enquanto uma estrutura sólida e que dê conta do todo de “A outra cidade”. Por esse não aprofundar de trato e por essa falta de sugestão de hierarquia e articulação narrativa, a peça entrega para o espectador a responsabilidade pelo sentido, embora finque-se em lugar de contadora de história, cheia de informações divergentes. 

A direção de Pedro Brício tampouco é clara. O ritmo da comédia, sobretudo em Migon, em Messina e em Celso André (ele em personagem menores) não encontra lugar à vontade na história de Ariela, que morreu de câncer; de Valentin, que não conheceu a mãe; de César, que não sabe o que fazer da vida. Assim, nem ri-se em alguns momentos, nem chora-se em outros, e nenhum dos dois lados aponta para algum tipo de humor negro que poderia melhor embasar a concepção. Estão em bons trabalhos Bernardo Marinho, Sávio Moll e é possível identificar a boa contribuição de Celso André na diversidade de seus personagens. No entanto, Branca Messina e Ludmila Rosa trazem participações fracas, sem carisma, com falas verbais e gestuais sem vida e nem cor. 

O maior ponto positivo de “A outra cidade” é a belíssima direção de arte de Rui Cortez. Os figurinos estão excelentes em ótimo casamento com o cenário tanto no chão e na rotunda, como na escolha dos móveis e na dupla com o desenho de iluminação de Tomás Ribas. A marca atemporal, em que o verde marinho colore a cidade litorânea prestes a desaparecer e também as lembranças da ditadura sul-latino-americana, é vista tanto nos trajes masculinos como na diferente composição das roupas femininas. O conjunto faz pensar sobre o valor não completamente visto, mas, quem sabe, imanente nesse espetáculo de Pedro Brício. Esperemos! 

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FICHA TÉCNICA
Texto e Direção: Pedro Brício
Elenco: Bernardo Marinho, Branca Messina, Celso André, Erica Migon, Ludmila Rosa, Sávio Moll e Sergio Módena
Direção de Arte, Cenário e Figurino: Rui Cortez
Iluminação: Tomás Ribas
Música: Felipe Storino
Programação visual: Alcinoo Giandinotto
Direção de Produção e Administração: Carla Mullulo
Produção: Carla Mullulo e Sábado Produções Artísticas
Realização: Zeppelin Cia
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Entre Cabelos, Olhos e Furacão (SP)


Filipe Catto no show
Foto: Pops Lopes

O universo expressionista de Filipe Catto

Do ponto de vista teatral, o show “Entre Cabelos, Olhos e Furacão", apresentado na última quarta-feira, 9 de outubro, no Theatro Net Rio, é um sucesso talvez tão grandioso como o é enquanto musical. No espetáculo, os elementos significativos são bem articulados, construindo discretamente uma atmosfera propícia (e bem vinda) para a fruição das letras cantadas em altas doses de potencialidade. A começar pelo refrão "Seu moço, traz mais uma gelada que a nega aqui hoje teve alforria!", da música “Roupa do corpo”, a primeira grande canção do repertório, todos os signos refletem o universo expressionista das letras. A personagem que sai de casa apenas com a roupa do corpo volta a aparecer criminosa (“Crime Passional”), solitária (“Nescafé”), excitada (“Adoração”), leve (“Dia Perfeito”) e solitária outra vez (“Luz Negra”), mas sempre muito apaixonada. E são esses sentimentos quem ditam as regras que dão a ver o mundo do qual ela tenta nos convencer: formas diagonais, muitas sensações, emoções afloradas, cores e tamanhos em oposição. Em tudo, há coesão e coerência, marcas de um percurso textual bem escrito e bem apresentado. 

Filipe Catto, cantor gaúcho de 25 anos, é contratenor, isto é, próximo correspondente do contralto (feminino), sua voz é aguda e seu intérprete parece à vontade quando em falsete. O resultado, uma voz que não é grave para um homem e nem aguda para uma mulher, argumenta em favor de uma figura que não pertence a nenhum lugar ou sentimento, mas é livre. Sem dúvida, o material sonoro de que o músico dispõe está plenamente a serviço das letras que compõe e canta, o que reforça as marcas realistas que são apenas ponto de partida para a fruição do expressionismo. Vítimas das emoções, seus personagens são amantes antes de serem homens ou mulheres, sempre em atividade, inconformados com o que destino lhes providenciou e em luta por algo melhor. A voz de Catto é forte e potente mesmo quando é sussurro, não deixando-se fixar, assim, sob a égide de nenhuma classificação da ordem do tom ou do volume. Forma e conteúdo, dessa forma, marcam de novo a coerência já apontada. 

Sobre os demais elementos estéticos, o repertório casa-se bem com o belíssimo desenho de iluminação, esse cheio de focos solitários e potentes, dispostos em diagonais ou em plongèe absoluto, ambas escolhas que desformam as formas e, por isso, ratificam o expressionismo. A lâmpada solitária, o coração de neon, as luzes coloridas dão a ver um universo de bas-fond, em cuja noite esses seres inconformados se movimentam bem. Nele se encontram Billie Holliday e Edith Piaf, Amy Winehouse e o grupo dos 27, além da nata do samba brasileiro da mítica Lapa de outrora, mesmo sendo todos eles expoentes de gêneros musicais diferentes. Filipe Catto, assim, com “Entre Cabelos, Olhos e Furacão", está em outro lugar que não é o mesmo de Marcelo Camelo, Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Tiê e de Malu Magalhães, entre outros, expressando a diversidade da nova música brasileira. 

“Entre Cabelos, Olhos e Furacão" é o segundo disco de Catto, seguido de “Fôlego”, lançado em 2011. Eis um artista cujo trabalho vale a pena conhecer e acompanhar. 

O teste in blues (RJ)

Carlos Vereza volta aos palcos 21 anos depois
Foto: divulgação

Monótono


O maior problema de “O teste in blues” é o fato de que o espectador mediano sabe que já viu tudo aquilo, porque é capaz de prever todos os acontecimentos. Numa noite de final de semana, o cinegrafista Michael recebe uma jovem atriz para o último de uma longa fila de testes de vídeo para o papel de uma protagonista. Ela está nervosa e demora em acertar o texto. Ele está cansado, desolado, em fim (e decadência) da carreira frustrada. Por algum motivo, ele se sente atraído por ela e os dois começam um diálogo que, de espontâneo, passa a ser imperioso, porque começa a chover forte lá fora. Nisso, um velho profissional se ressignifica a partir de uma jovem iniciante. Em igual sentido, uma garota cheia de referências da arte e da literatura se transforma depois de vislumbrar seu talvez trágico futuro. Escrito, interpretado, com direção e direção de trilha sonora de Carlos Vereza, o espetáculo constrói a sensação de mofo, de coisas já muitas vezes ditas, de tédio. Cumpriu temporada no Teatro Jobim no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 

Como ator da peça, Carlos Vereza repete o mesmo personagem já muitas vezes vistos em suas participações na TV: o homem triste, desinteressado, vítima da própria melancolia e cheio de raiva reprimida. Passa as horas dentro de um estúdio velho, obsoleto, cheio de livros e pó, bebendo café e whisky, fumando um cigarro atrás do outro enquanto sua barriga cresce. Carolinie Figueiredo também não tem desafios na viabilização do contraponto, primeiro porque é só manifestar direta oposição a com quem contracena, e segundo porque, como já se disse, o papel é raso. O conflito entre os dois é pura e simplesmente as diferenças de suas personalidades e elas em suas vidas, pois, enquanto chove, estão ambos presos um ao outro. Dessa forma, fica-se sem entender a princípio porque ele não encerra logo ou o expediente ou a carreira (há tempo para isso antes da chuva começar) e porque ela simplesmente não vai embora, pegando um táxi (a peça se passa nos dias de hoje). Logo, somos levados a ter certeza de que os personagens são meros (e tolos) motivos para um texto que tergiversa sobre a velhice e a juventude, o trabalho e a arte. Em termos de dramaturgia literária e cênica e de interpretação, “O teste in blues” tem pouco a acrescentar. 

O cenário de José Dias, visivelmente, também não é desafiador, a não ser pelo virtuosismo da chuva que cai realmente no lado de fora da janela. A marca realista é bem vinda porque estamos diante de um drama realista psicológico, embora falte à peça uma trama melhor amarrada e sobrem-lhe críticas sociais. O figurino de Rafaela Rocha e a iluminação de Maurício Ferreira são igualmente positivos porque, sem problemas, fornecem os meios necessários para a narrativa correr, houvesse uma. 

21 anos depois da última vez em que esteve no palco de um teatro, o grande ator Carlos Vereza ainda fica na “dívida” com seu público fiel e admirador. “O teste in blues” não corresponde às expectativas infelizmente. 

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Ficha Técnica:
Autor, Direção, Interpretação e Trilha Sonora: Carlos Vereza
Atriz Convidada: Carolinie Figueiredo
Direção de Arte e Cenografia: José Dias
Assistente de Direção: Marcelle Lacerda
Figurinos: Rafaela Rocha
Iluminação: Maurício Ferreira
Fotografia: Ricardo Rheingantz
Produção Gráfica: João Paulo Andrade
Assistente de Cenografia: Paula Senra
Cenotécnico: Adílio Athos
Teclados: Leo Silva
Assessoria de Imprensa: Passarim Comunicação / Ciranda Comunicação
Produção Executiva: Roberto Ricardo