domingo, 20 de outubro de 2013

120 dias de Sodoma (RJ)

Em destaque, Rafaela Azevedo em cena
Foto: divulgação

Muito esforço para pouco


“120 dias de Sodoma” suscita uma questão importante na reflexão sobre teatro: a dos diferentes tipos de fruição da arte. Fruir literatura não é o mesmo que assistir a uma peça de teatro. Os acordos com a obra são outros. Marquês de Sade (1740-1814) não escreveu, no caso dessa peça, teatro, mas literatura. O romance é para ser lido por uma só pessoa de cada vez, à luz de velas e no tempo em que o leitor se dispor a fazê-lo. A adaptação de Rodolfo Garcia Vasquez é feita para ser assistida em um teatro, durante noventa minutos ininterruptos e em público. Talvez por isso, a necessidade de um motor que justifique o tempo de fruição e o drible dele sejam muito maiores. O teatro dissertativo precisa ter objetivos muito claros em uma situação também muito clara para ser bom. De outra forma, tende-se ao fracasso. No caso em questão, a ausência de um conflito que dê conta do movimento geral da obra, em que a narrativa conta como argumento para a dissertação e não o contrário, depõe contra ela. Com direção de Luiz Furlanetto, “120 dias de Sodoma” é bom, mas é banal. Está em cartaz, em sua segunda temporada, na La Paz, na Lapa, zona central do Rio de Janeiro. 

Três libertinos – um bispo (Marcelo de Paula), um ministro (Ricardo Ricco) e um juiz (Matheus Silvestre) – reúnem-se durante 120 dias em um castelo em que um grupo de prisioneiros prestam-lhe serviços sexuais de toda ordem. A narração é feita pelas pessoas que trabalham nesse castelo, nem os libertinos, nem os prisioneiros, e está dividida em três partes que vão sendo apresentadas ao público em capítulos. Cada uma das partes está vinculada a um libertino, embora dela todos os três façam parte. Na exposição, o nu, o sadomasoquismo, o interesse sexual por virgens, por menores de idade, por corpos já falecidos, por excrementos, a antropofagia vão surgindo como contornos da tese que vai sendo desenvolvida, mas não há um problema que seja apresentado e nem tampouco resolvido. Os prisioneiros, todos eles, foram capturados em meio às mazelas de suas próprias vidas (o desconhecimento da filiação, o crime, o abandono, a marginalidade), e, como tais, eles não gostam de estar ali. Claramente, no entanto, não há nenhuma tentativa (ou possibilidade) de fuga, de forma que a situação inicial é a única situação ao longo de toda a peça. Assim, pode-se dizer que, por princípio, a peça apresenta uma galeria de “perversidade sexuais”, mas sem um objetivo claro que não seja apenas a exposição. 

No elenco dirigido por Luizapa Furlanetto, há boa participação de Marcelo de Paula e de Ricardo Ricco, cujas vozes são usadas de forma clara e precisa. No entanto, é a minúscula participação de Rafaela Azevedo que realmente chama a atenção positivamente. Em belíssimo trabalho corporal, a atriz faz de seus poucos minutos em cena um grande acontecimento no espetáculo. Todos os demais trabalhos são fracos, sem vida, sem cor, cambaleantes em oratórias sem técnica, sem emoções mais profundas além de máscaras, sem verdades que possam/poderiam tornar o que se vê em algo mais interessante. Apesar da sucessão de cenas repletas de atos perversos (a dor do açoite, o alimentar-se de fezes, o concurso de “cus”, entre outros), a peça não choca porque vulgariza as ações a ponto de fazê-las perderem as supostas importâncias. Lá pelas tantas, lamber uma vagina menstruada, por exemplo, equivale ao mesmo que sair ou que entrar de cena, sem hierarquia nos sentidos, o que é uma grande falha da direção de Furlanetto. 

A trilha sonora de Isabel Viany é uma das piores coisas já vistas no teatro carioca. Unindo Nino Rota à trilha do musical “Chicago”, Tchaikovsky a Strauss, e terminando com um samba, exibindo um desconhecimento atroz dos referenciais e das potencialidades significativas de cada matriz, a direção musical atrapalha a peça, lutando contra ela por uma atenção que deveria apenas ser voltada à cena e não aos seus elementos argumentativos. Estão bem o figurino de Cesar Soares e a iluminação de Orlando Schaider, embora sem destaques. 

Talvez o pior momento de “120 dias de Sodoma” seja o final, quando a produção força um relacionamento entre o que foi criado pela cabeça imaginativa de Sade e um contexto político brasileiro atual. É um grande equívoco. Os valores que fundamentam os personagens sem nome do ministro, do juiz e do bispo, essas três figuras apenas representativas, não fazem referência à hipocrisia de uma determinada sociedade em uma época específica, mas ao modo como o homem que se diz civilizado encara/reprime o seu próprio desejo sexual, isso visto sem limites sociais, temporais ou geográficos. Pelo exposto, a peça vale enquanto exposição do lado obscuro da sexualidade humana, mas pouco além. 

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Ficha Técnica:
Texto: Marquês de Sade
Adaptação: Rodolfo Garcia Vasquez a partir da obra de Marquês de Sade
Direção: Luiz Furlanetto
Elenco: Matheus Silvestre, Ricardo Ricco, Marcelo de Paula, Layla Fassarella, Michelle Guimarães, Isabel Viany, Pvisrael, Marcello Andreata, Elmir Mateus, Rafaela Azevedo, Che Oliveira, Thuany Andrade, Laura Molica, Isabela Moss, Heiner Miranda, Clécio Rodrigue, Zé Britto.
Produção: Matheus Silvestre
Iluminação: Orlando Schaider
Figurino: Cesar Soares
Cenário: Teatro O Grupo
Realização: Teatro O Grupo
Preparação Corporal: Lourival Prudêncio
Direção Musical: Isabel Viany
Assessoria de Imprensa - Minas de Ideias

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