sábado, 5 de outubro de 2013

Incêndios (RJ)

Marieta Severo em grandioso trabalho
Foto: Leonardo Aversa

Maravilhosamente sedutor


“Incêndios” é um acontecimento raro infelizmente. Um elenco que reúne grandes atores, uma produção que une grandes artistas, um espetáculo a partir de um grande texto. Escrito pelo libanês Wadji Mouawad (1968), o texto coleciona prêmios ao redor do mundo desde quando lançado há dez anos. Na história, temos uma mulher que, ao morrer, faz nascer aos olhos dos filhos a sua própria vida. Um casal de gêmeos, ao conhecer o testamento da mãe, é chamado para retornar ao ponto inicial que hoje poderá explicar sua existência. Nesse trajeto, hão de encontrar, e o público também, com várias pessoas que explicarão os contornos, pois não há fogo sem algo (ou alguém) que queime. Aderbal Freire-Filho, em seu currículo grandioso, apresenta um trabalho ímpar, porque aqui é humilde em se apagar. Fazendo-se grande no excelente uso do idioma teatral em todas as suas ferramentas, a peça parece contar-se sozinha, ao natural, de forma simples e fluente, apesar de sabermos movimentar uma meticulosa máquina cênica. Marieta Severo, Kelzy Ecard e Isaac Bernat fazem brilhar uma história da qual não se consegue tirar os olhos um só minuto sequer, maravilhosamente sedutora. Ao lado dos demais do elenco, o trio mantém o excelente ritmo que as fábulas contadas ao redor da fogueira têm para espantar a noite mais escura e fazer calar o coração. “Incêndios” é excelente. 

Três cartas são deixadas como herança aos dois filhos. À gêmea, cabe entregar uma carta ao pai, esse que sempre pensou-se estar morto. Ao gêmeo, cabe entregar uma carta ao irmão mais velho dos dois, esse que sempre pensou-se nunca ter existido. Cumpridas as entregas, os dois poderão aí, enfim, escrever o nome da mãe na lápide vazia e receber do tabelião a terceira carta, essa, sim, dirigida a eles. Surge, dessa forma, todo o passado da mãe, sua mãe, sua avó, seus amigos e inimigos. Mouawad parece escrever a história de Jocasta (Sófocles), que teve seu filho arrancado de suas mãos numa tola tentativa de espantar, com isso, o destino já definido. Nesse tipo de texto, pode-se escolher entre buscar a sua sorte ou esperar que ela venha, mas, quanto à sua vinda, disso não há como ter dúvidas. Presos a uma situação, a uma missão materna em honra do próprio sangue que lhes corre nas veias, os dois irmãos unem a Grécia Antiga ao Teatro Contemporâneo, saindo de Sófocles, passando por Shakespeare e por Raccine, chegando em Sartre, em Ionesco e em Beckett. De tempos em tempos, o teatro faz lembrar o homem que a vida é também existência e que ser sujeito ou ser objeto nem sempre é uma escolha. 

Aderbal sabiamente usa o espaço vazio para contar teatralmente a história escrita por Mouawad. O vazio, pois, só assim o é porque é o contrário de preenchimento. Sem alguém no palco, nunca teria valor o vazio e, se, nessa encenação, há sempre uma cena começando, se desenvolvendo ou começando imediatamente ao fim da anterior, é porque cada vez mais o vazio precisa ser esperado. Navval (Marieta Severo), a mãe de Jeanne (Keli Freitas) e de Simon (Felipe de Carolis), morreu após um período de cinco anos em silêncio absoluto. Ela estava vazia de palavras, como é vazia de expressões a impressionante interpretação de Marieta Severo nesse personagem tão seco, tão árido, tão duro. O cenário de Fernando Mello da Costa, porque leva o vazio horizontal do palco para a verticalidade das paredes enferrujadas, faz metáfora para o vermelhidão do sangue de lobos na terra abandonada por Navval, para a podridão de histórias há muito esquecidas no passado, mas lá presentes. Com cenas rápidas, articuladas magistralmente, a direção apressa o ritmo da sincronia enquanto abrilhanta a diacronia. Assim, os fatos se dão a ver com força e existência com a mesma intensidade com que os monólogos se impõem aos diálogos e ganham a atenção pela sensibilidade, pela coragem e pela riqueza de detalhes com que são ditos. De personagens protagonistas à quase figurações, todos os personagens surgem nessa história com uma trágica função: não há nada, enfim, que passe despercebido pelos olhos dos deuses. Aos trabalhos de iluminação de Luiz Paulo Nenem, de figurinos de Antônio Medeiros e de trilha sonora de Tato Taborda, só se devem elogios. 

Se, nos elementos cênico-narrativos, “Incêndios” é um sucesso, nas interpretações, eis aqui um furor. A dificílima inexpressividade com que Marieta Severo colore sua personagem equilibra-se com a forte presença cênica de Kelzy Ecard. Uma aparece muito mais que a outra, mas, no teatro, arte cujo todo só pode ser contemplado inteiramente quando já não existe, a impressão é que estão sempre presentes, uma ao lado da outra. O mesmo jogo de oposições, responsável pela complexidade, se vê nos trabalhos de Freitas e de Carolis, que interpretam os irmãos. Os quatro personagens estabelecem as bases sólidas que fazem com que “Incêndios” se dê a ver. Por sua vez, Fabianna de Mello e Souza e Isaac Bernat, na delicadeza com que constroem suas figuras numerosas e diferentes, preenchem o todo, enquanto Julio Machado e Marcio Vito fazem os cortes: o carrasco e o anjo da guarda. O mérito da excelência do trabalho de elenco, em seu conjunto, mas também em cada parte, é da direção de Aderbal Freire-Filho: o texto bem dito, as intenções bem colocadas, as pausas bem feitas, os movimentos e gestos ágeis, cheios de póetica e sobretudo claros. 

O gesto de jogar baldes d`água no corpo a ser enterrado é tão cheio de sentidos que sua força significativa é argumento definitivo para “Incêndios” ser assistido, ser lido, ser visto no cinema também. À peça, aqui, o aplauso agradecido! 


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FICHA TÉCNICA:
De Wajdi Mouawad
Tradução: Angela Leite Lopes
Direção: Aderbal Freire-Filho

Com Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Fabianna de Mello e Souza Julio Machado e Isaac Bernat

Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Figurinos: Antonio Medeiros
Trilha Sonora: Tato Taborda
Direção de Produção: Maria Siman
Produção Executiva: Luciano Marcelo
Produtores: Felipe de Carolis, Maria Siman e Marieta Severo
Produtor associado: Pablo Sanábio
Idealização do Projeto: Felipe de Carolis
Realização: Emerge, Primeira Página Produções e Teatro Poeira

2 comentários:

  1. muito maravilhosa a peça e muito bem lida aqui. explêndida. e como foi dito lá em cima: ..."acontecimento raro (infelizmente)"... aspas minhas. Ivan Lima

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  2. Gostei de Marieta Severo e outros do elenco, mas os atores que fazem os gêmeos são muito fracos. Sem Marieta, a peça nada seria.

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