segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Entre-nós (BA) (3o OFF-Rio, Multifestival de Teatro de Três Rios)

Igor Epifânio e
Anderson Dy Souza
Foto: divulgação

O simples excelente e necessário

“Entre-nós” é tão bom esteticamente quanto o é socialmente e a prova disso é que, para a análise e para a assistência, não é difícil encontrar as justificativas para a ovação recebida na segunda noite do 3o OFF-Rio, Multifestival de Teatro de Três Rios. Com texto e direção de João Sanches, a peça, que estreou em janeiro de 2012, conta com os atores Igor Epifânio e Anderson Dy Souza, interpretando os muitos personagens e operando a luz, e com o músico Leonardo Bittencourt, dando conta da trilha sonora ao vivo. Dois personagens-atores se vêem diante de uma grande personagem-plateia para construir e, ao mesmo tempo, para apresentar um espetáculo sobre a diversidade sexual. Ambos não sabem como será isso, mas usarão o repertório cênico de que dispõem para dar cabo do objetivo. Nesse momento, a peça já começou.

Bastante interessante é identificar as marcas da amarrada articulação entre os diversos elementos cênicos vistos em “Entre-nós”. A começar pela movimentação da dupla de atores, vemos o palco vazio, as bambolinas levantadas, os refletores e a mesa de luz à mostra e o músico sob um foco. O caminho que inicia no público e vai até o fundo do palco começa a ganhar divisões ao longo da narrativa, determinando a esquerda para um personagem-ator e a direita para outro, alternando-se em alguns momentos, mas deixando claro o estabelecimento de um lugar seguro para quem quer que nele esteja. Começam aí as pistas para o público se identificar com os atores, numa conversa que pretende ser positivamente de igual para igual, apesar da altura do palco e da plateia permanecer às escuras. A frente, o proscênio, parece estar destinada ao contato direto com a audiência, enquanto o centro e o fundo são os lugares privilegiados para os personagens que contarão a história que habita, por sua vez, dentro dessa história já iniciada. Os movimentos são ágeis, os olhares determinam os limites, as figuras habitam o espaço mesmo quando não concretizadas em nenhum ator. (Há momentos em que dois personagens interpretados pelo mesmo ator estão em cena. Esse ator, então, não viabiliza nenhum deles, mas narra o que acontece para o público que, através da poética, vê as duas figuras em curso.) Desde a cena de abertura, a tensão entre cada ator-personagem consigo próprio e entre um e outro são visíveis e isso dá força para cada um resolver o seu nervosismo com uma boa participação na narrativa que parece estar sendo criada ao vivo. Tanto um como o outro não sabem exatamente o que fazer e como lidar com um tema tão difícil quanto a diversidade sexual, mas suas fraquezas se tornam impulsos para participar de uma espécie de jogo entre eles. De cada lado, um não quer perder para o outro e essa relação fisga definitivamente o espectador para dentro da história.

Vamos à história. Rodriguinho é um adolescente terminando o ensino médio. Apesar de ser um dos garotos mais bonitos e cobiçados da escola, mantém-se virgem. Com a chegada de Fabinho à classe, o interesse gerado pelo novato vem acompanhado do questionamento acerca de sua própria sexualidade. Rodrigo pergunta para si próprio: “será que sou gay?” Em paralelo a isso, os pais exigem a perda da virgindade, os amigos o empurram para encontros e Fábio o mantém mais e mais distante. Talvez porque tratam-se de atores-personagens adultos interpretando personagens adolescentes, o tema ganhe a força que um drama adolescente poderia não ter. Porque a encenação dirigida por Sanches está recheada de esforços no apagamento das marcas de teatralidade, a relação da plateia com o palco não encontra desafios e flui, fazendo rir das dificuldades que cada cena que parece nascer impõe. Os dois atores-personagens interpretam mulheres, meninas, fortões, prostitutas, professoras, homossexuais afetados e homossexuais não-afetados com o mesmo valor, dividindo com público a oportunidade da crítica. O diálogo é limpo, rápido, potente. O ritmo é mantido de forma ascendente com vistas a um ápice cada vez mais esperado, a partir das respostas que as perguntas vão ganhando: Rodriguinho é mesmo gay? Rodrigo e Fábio ficarão juntos? Como será suas vidas? Haverá beijo entre dois atores homens no palco? Cada momento é como um ponto de mudança sydfieldiano, apontando a narrativa para o fim, arrastando facilmente a atenção para o desfecho.

As mudanças de iluminação e da trilha sonora, bem como as intervenções da fumaça cênica, marcam a passagem das cenas com breves intervalos necessários ao respiro da boa fruição narrativa. Para haver a distensão é preciso cultivar a tensão afinal. O figurino de ambos age em total relação com o texto, também viabilizando quebras: a parte superior é formal (ternos e camisas) enquanto a parte inferior é casual (bermudas e tênis). As partituras interpretativas são positivamente farsescas, tirando desse gênero a rapidez que a comédia precisa para encarar um tema tão sério sem tirar-lhe a força. O contato com o público é espontâneo, a fruição torna-se vibrante.

Por tudo isso, “Entre-nós” tem justificados os aplausos recorrentes em cena aberta e a natural contribuição do público na cena que antecede fim, quando uma votação acontece com vistas a como se dará o fim da peça. Ao largo dos moralismos, da cafonice estética, das lições de comportamento, a peça tem o mérito de discutir os valores de forma humana, com a manutenção de um real que só não é mais próximo do além da narrativa porque aí não seria teatro. E que bom que o é. Viva o bem dito através do bem feito! E obrigado.

*

Ficha técnica:
Texto, direção, figurino e iluminação: João Sanches
Elenco: Igor Epifânio e Anderson Dy Souza
Trilha sonora: Leonardo Bittencourt
Produção: Patrícia Rammos (Da Preta Produções)

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