quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O sósia (RJ)

Daniel Archangelo e Ricardo Ventura em cena
Foto: divulgação

Desafios não vencidos

"O sósia", uma das oito peças radiofônicas do suíco Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) escritas entre 1946 e 1956, esteve em cartaz no Teatro Sesc Café Pequeno. "Der Doppelgänger", o titulo original, foi a única peça do famoso autor que não foi levada sem modificações ao palco, porque o próprio autor sabia que seu eixo dependia do mistério do não visto que só o rádio poderia proporcionar. Encenada pelo grupo Tentáculos Espetáculos, dirigida por Guilherme Delegado, a produção consistiu em uma enfadonha tentativa museológica de participar do Ano da Alemanha no Brasil com um texto cuja importância nem seu próprio autor lhe conferiu. Felizmente já saiu de cartaz.

Um escritor procura um diretor de peças radiofônicas para mostrar-lhe o mote de um roteiro. Trata-se do seguinte: um homem culpado por um crime chega para outro, dizendo-lhe que ele está preso. O segundo é inocente, mas irá preso mesmo assim, inclusive sabendo que o primeiro é quem é o culpado. Um é sósia do outro e, na narrativa cênica, os personagens do escritor e do diretor se confundem com os personagens da história que a dupla desenvolve. A atmosfera, assim, da história contada pelo escritor para o autor vai se tornando cada vez mais densa, próxima do universo kafkiano de "O processo", ou de "Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Stevenson, por exemplo, cheia de marcas que fazem dessa uma narrativa boa de ser contada dentro do expressionismo. Infelizmente, Delgado não deu atenção a isso, isto é, não possibilitou marcas que fizessem essa intenção vir à tona. Ao contrário, no release, consta uma confusão conceitual constragedora. Eis um trecho:

""O Sósia faz parte de um conjunto de três espetáculos que o grupo está realizando para abordar a questão do duplo. Começamos em 2010 com "Nariz!", de Gogol. A ideia da cópia de alguém, que de alguma forma desafia e coloca em questão a própria pessoa, é um tema bastante frequente na literatura desde o século XIX. E sempre esteve profundamente associado ao gênero do fantástico. Além disso, a construção de um duplo em cena requer a criação de um jogo cênico bastante singular e inventivo, já que não é algo que possa ser representado de forma ‘realista’, pontua Guilherme Delgado, diretor do espetáculo."

Realismo e Fantástico não são gêneros conflitantes, mas o segundo é um subtipo do primeiro. Existem três tipos de realismo: o psicológico, o naturalismo e o fantástico. No terceiro, o real é construído, como nos demais, com fortes marcas de verossimilhança, mas essas articulações servem para amparar acontecimentos estranhos para o expectador/o leitor que frui a obra, pois os personagens já estão com eles, de certa forma, acostumados. Para ser didático, Dona Redonda (Dias Gomes) explode e o fato assusta os moradores de Saramandaia, mas o acontecimento não é investigado e logo dá lugar para outros fatos de mesma importância. Um grupo de 50 meninas vem passar as férias de verão no casarão dos Buendía (Gabriel Garcia Marquez) e, por isso, compra-se 50 penicos que, durante décadas, ficarão guardados num quarto de penicos. Ou seja, o aparecimento de um sósia, uma prisão sem julgamento, a vontade de um preso de provar sua inocência não tem muito para alimentar o (realismo) fantástico, mas poderia ter, sim, bastante material para construir o expressionismo. O cinema noir, de que em outro trecho também fala o release, também lida bem com o expressionismo, porque, dentro da sétima arte, consiste em histórias policiais contadas em locações internas, em preto e branco e com contrastes bem marcantes. A fotografia noir distorce as formas, fazendo no cinema o que Munch fez nas artes visuais: representando os personagens não a partir da forma como o mundo os vê, mas sugerindo ao fruente um ponto de vista emocional e intelectualmente corrompido de um dos personagens (o labirinto jurídico de Kafka, o monstro criado por Stevenson). No caso da peça "O sósia", o espectador vê a história através do diretor radiofônico que também vai interpretar o preso.


Dürrenmatt estava certo. Os dois atores precisariam ser gêmeos idênticos para o problema da semelhança entre os dois estar resolvido e darmos mais espaço para nos dedicar a outros elementos da estrutura. O ouvinte do rádio participa mais da narrativa porque preenche com formas tudo aquilo que é só som. O jogo é assim diferente, pois o importante é o como essa relação de voz e o que ela representa se estabelece. O teatro tem outros desafios, exige-se mais de uma história e muito mais da forma como ela é contada em cena. Ricardo Ventura (o escritor) e Daniel Archangelo (o diretor) variam pouco a apresentação dos seus personagens. Archangelo faz uma boa crítica, procurando a ironia na crítica à história que ele ouve, construindo os melhores momentos da encenação. No entanto, Ventura varia unicamente em altura do volume da voz, sem exploração de diferentes entonações, intenções, sem pausas inteligentes, sem manutenção da tensão. Os movimentos, os gestos, os acontecimentos, na encenação de Guilherme Delgado, é linear, sem vida, monótona. A aparição de Aline França nua, ela também assina a assistência de direção, não chega perto do que a imaginação de uma mulher nua por um ouvinte na Europa do pós-guerra, mesmo que seu corpo seja bonito. A questão é conceitual: o que se imagina é sempre muito mais belo que o que se vê.

Atualizar (no sentido de verter) para o teatro de hoje uma peça escrita para o rádio no pós-guerra exige desafios que modificam o eixo da narrativa. Esses desafios não foram vencidos pelo grupo Tentáculos Espetáculos.

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Ficha técnica
Texto: Friedrich Dürrenmatt
Tradução: Rogério Silva Assis
Direção e Concepção Visual: Guilherme Delgado
Assistente de direção: Aline França
Elenco: Aline França, Daniel Archangelo e Ricardo Ventura
Cenografia: Carlos Augusto Campos
Iluminação: Luiz Paulo Barreto
Programação visual: Not.a.pipe
Fotografias: Leo Coura
Direção de produção: Guilherme Delgado
Produção Executiva: Daniel Archangelo
Realização: Tentáculos Espetáculos

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