domingo, 15 de dezembro de 2013

Vampiras lésbicas de Sodoma (RJ)

Thiago Chagas apresenta uma versão sua do maravilhoso
tom de humor de Paulo Gustavo. Imperdível!
Foto: Arthur Seixas

Para gargalhar de si próprio

“Vampiras lésbicas de Sodoma” é mais uma montagem teatral carioca que tenta ressuscitar o saudoso teatro de besteirol enterrado no fim dos anos noventa infelizmente. (Para citar apenas duas outras montagens, “O médico e o monstro” e “Randevu do avesso” tiveram o mesmo objetivo.) Fincando-se mais solidamente nessa zona de desconforto entre o império do politicamente correto e a anarquia, temos aqui Marya Bravo e Thiago Chagas em excelentes trabalhos de interpretação. A primeira traz o peso da sua potente e afinada voz em números herméticos e nobremente frios. O segundo, com o humor bastante específico e muito meritoso de Paulo Gustavo, tem o timing perfeito e disponibiliza todo o carisma de que a peça precisa. Em cena, no palco do Teatro Municipal Café Pequeno, marcando a primeira direção de Jonas Klabin, temos aqui duas grandes forças opostas a se duelarem, gerando a gargalhada gostosa que uma boa comédia pode oferecer.

Prestes a fazer 30 anos, o texto de Charles Busch, como toda boa dramaturgia, é atemporal. Depende ele apenas do como é feito. Não há jeito certo e jeito errado de fazer teatro, mas há, sim, formas mais confortáveis de viabilizar um texto para a encenação teatral de jeito a possibilitar mais sucesso. No caso do besteirol, que os americanos chamam de “teatro do ridículo”, vale a tensão que o público sente diante da tosquice que o espetáculo apresenta. É uma contradição, pois, nesse tipo de espetáculo, o certo é justamente o errado e o errado é positivamente o certo. Quando os atores erram o texto, quando o cenário cai, quando o músico desafina, quando o bailarino erra o passo e quando tudo isso acontece deixando claro, em primeiro lugar, que é um erro e que isso não foi previsto, então, temos um enorme acerto. Como nos tempos do bom “Sai de Baixo” ou, mais antigo, de “Os Trapalhões”, os erros que acontecem em cena são os grandes momentos. Para acontecerem os erros, é vital termos um arranjo complicado, pesado, logarítmico para haver o contraponto. Nesse caso, até quando o acerto acontecer, será algo a se aplaudir. Diante disso, partamos para a análise de “Vampiras lésbicas de Sodoma”.

Milênios atrás, uma “monstra” chamada Sucubo (Marya Bravo) recolhia jovens virgens vencedoras de um concurso cujo prêmio era a morte. A peça começa quando uma Menina Virgem (Thiago Chagas) ganha essa sentença, mas consegue um outro destino. Ao ser mordida pela criatura, morde ela também e, por isso, não morre, mas torna-se uma igual, ganhando a eternidade. Com o passar dos séculos, assim, La Condessa Legerdemain (Bravo) e Madalaine Astarté (Chagas) atravessam a existência à cata de sangue novo, em vários momentos, duelando-se entre si por suas vítimas. E suas aventuras são a força que alimenta a narrativa bem dirigida por Jonas Klabin. Marya Bravo tem números musicais melodramáticos e, por isso, bastante cômicos. Thiago Chagas tem números cômicos e, por isso, bastante ácidos. A alternância, assim, é equilibrada e fluída. O espectador acompanha os quadros em busca de saber como tudo vai terminar e, enquanto isso, se diverte.

Nas interpretações, destacam-se o olhar arregalado com que Bravo viabiliza a sua personagem, deixando ver a imagem terrível que a personagem quer transmitir às suas vítimas e aos seus algozes. Também, o tom debochado com que Chagas “se diverte” com sua personagem, sobretudo quando se relaciona com o público. Também é ótima a participação pequena de Davi Guilherme como a “fofoqueira” Olga Fanhota, mas também como o pianista, que acompanha ao vivo todas as canções interpretadas durante a peça. Todas essas avaliações se justificam na forma coesa com que Klabin dá a ver essa estrutura cênica, onde um elemento bem se relaciona com o outro. 

A profusão imensa de detalhes na direção de arte de Marta Reis garante a atmosfera gótica, soturna, difícil que o espetáculo necessita para acontecer com sucesso. Dentro desse setor, estão a iluminação de Luiz Paulo Nenen, a direção musical de Davi Guilherme, o visagismo de Daniel Reggio, as coreografias de Alan Rezende, tudo isso supervisionado por César Augusto, que garante a bizarrice dos cachos dos cabelos loiros de Chagas na Antiguidade, as inserções nos diálogos de informações que tiram do eixo o tempo e as épocas, a sensualidade exposta dos corpos bem torneados de André Vieira e de Thadeu Matos, na articulação de tudo em tom positivamente grotesco.

O teatro besteirol tem o mérito de alargar a visão sobre a hipocrisia da sociedade burguesa (a classe média) a ponto de discuti-la, debochar dela, expor suas feridas. Ao rir, o público ri de si próprio, esse espectador da zona sul carioca e, portanto, parte da sociedade que a peça mesmo, em si, critica. Diferente da montagem original, essa produção tem ainda o mérito de agregar canções internacionais traduzidas para o português, como “A balada da dependência sexual”, de Brecht e de Weill; “Petronella tira já”, de Hollander e de Tiger; e “Masculino-Feminino”, de Spoliansky e Schiffer, cuja letra incluo abaixo. Maravilhoso!

Maskulino - Feminino Põe um masculino com um feminino E claro vão se apaixonar. Logo masculino diz ao feminino Que são um casal tão singular. Tu és feminino quase masculino E eu sou masculino quase feminino. Este masculino e este feminino O mundo irão modernizar. Você será masculino Se permites eu serei seu feminino. E todos vão estranhar E vão descriminar, mas vai passar. E o feminino sai de masculino Terno e calça de xadrez E o masculino sai de feminino Numa saia que ele mesmo fez E o feminino tem de masculino Que o masculino tem de feminino Mas o masculino e o feminino Não trepavam nem de vez em vez Os dois se achavam Muito masculino ou muito feminino Mas nada vai impedir Quem quer se unir E resistir Já que o feminino de um feminino Nem sempre pode se esconder Com o masculino de um masculino A coisa pode até endurecer E quando másculo do feminino Pega o afeminado masculino Nasceu um lindo de um mascu-feminino Hermafrodita, quer dizer O filho é assexuado Será abençoado ou será castrado E masculino e feminino Tem mais um menino prá niná.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Charles Busch
Direção e Versão Brasileira: Jonas Klabin
Direção Musical e Piano: Davi Guilhermme
Supervisão Geral: Cesar Augusto
Protagonista: Marya Bravo
Ator Convidado: Thiago Chagas
Com: Davi Guilhermme, Thadeu Matos, Thuany Parente, Thiago Páschoa e André Vieira
Direção de arte: Marta Reis
Coreografia: Alan Rezende
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Design de Som e Sonoplastia: Gabriel D’Angelo
Visagismo: Daniel Reggio
Programação Visual: Tânia Grillo
Fotografia Artística: Arthur Seixas
Assistente de coreografia: Silas Campos
Alta Costura: Ana Amaro
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Direção de Palco: Thiago Páschoa
Assistente de Produção: Natalie Kneit
Operador de Luz: Genilson Barbosa
Operador de Som: Guilherme Coelho Gomes
Coordenação Administrativa e Financeira: Cristiane Cavalcante
Contabilidade: Paulo Cezar Mendes
Assessoria Jurídica: Dionísio, Hollanda e Bodas Sociedade de Advogados

A versão para “A Balada da Dependência Sexual” foi realizada por Claudio Botelho

Produção: André Vieira e Jonas Klabin
Coprodução: Gávea Filmes
Realização: Treco Produções

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