sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

As bondosas (RJ)

Astúcia, Angústia e Prudência
Foto: divulgação

A comédia que (se) rasga

Na segunda metade de 2013, uma gratíssima surpresa estreou na programação de teatro carioca e agora cumpre apresentações em outros palcos do estado. Trata-se de “As bondosas”, espetáculo a partir de “As criadas”, de Jean Genet, escrito pelo maranhense Ueliton Rocon e dirigido por Tom Pires. Levando o público para um Brasil distante, mas não menos Brasil, a peça acontece no velório de um desconhecido em que três carpideiras cumprem o seu ofício de rezar pela alma do cliente. Prudência (Sidcley Batista), Angústia (Gerson Lobo) e Astúcia (Leandro Mariz) são três mulheres de reputação ilibada, castíssimas em vivenciar vinte e quatro horas por dia os desafios de suas cruzes. Não se veem peladas para não despertar a vaidade, não tomam banho nuas para não tocarem o próprio corpo, vivem a purgar em si os males da humanidade. Na encenação de Pires, o mérito com que a produção conta a si mesma vem do jogo de cena, sempre vibrante, cheio de surpresas e em uma bonita curva dramática ascendente. É uma produção da Cia. Teatro Investigativo.

“As bondosas” é uma metáfora para a hipocrisia, mas seria um espetáculo tolo se fosse apenas para a hipocrisia social. Não é. A comicidade surge das situações em que se vê o quanto cada uma das três mulheres esconde de si próprias as suas vontades mais secretas. No momento em que uma revela (antes para si) parte de seu caráter mais íntimo, as demais começam a reagir ou elevando seus padrões ou aliviando-se em fazer o mesmo. A gula e a fofoca são os primeiros pecados a transbordarem. No início do velório, aparentemente absortas em suas orações, o trio sente falta de alguém que lhes ofereça, ao menos, uma xícara de café. Enquanto sentem o cheiro da bebida fumegante que invade a sala, olham ao redor e reparam na forma como se comportam os presentes. Como foram contratadas, não são íntimas dos contratantes e, assim, resta-lhes entender o que se passa pela observação. Possíveis traições, segredos imanentes, falta de valores, de sensibilidade e de religião são o que supõem (sem confirmar) ver, denunciando a si próprias. Nenhuma delas se dirige a ninguém, conservando, na medida do possível, os olhos baixos e a oração intermitente. "Por que as pessoas não rezam também? Por que não lhes servem algo? Algum deles (a) tem dignidade o suficiente para lhes dirigir o olhar?" Nesse patrulhamento da moral, acabam por exporem-se a si próprias, causando-lhes horror a si e as demais, e fazendo o público gargalhar.

Prudência (Batista) é quem parece liderar o trio por ser também a mais velha e, portanto, a que há mais tempo está em "estado de purificação". Tendo sido casada outrora, fugira do marido, apavorada com o medo de pecar, antes de "consumar a lua-de-mel" (é o que anuncia). Sob sua batuta, todo o universo de regramento é desvendado para o público que, na boa direção de Pires, vai valorando os elementos que surgem não mais a partir de fora da narrativa, mas a partir dos personagens que estão em volta deles. Quando, por exemplo, um sapato vermelho aparece, não é apenas um objeto de vestuário, mas está impregnado de toda uma carga de liberdade que é resultado de uma boa estrutura narrativa bem articulada.

Os figurinos de Leandro Mariz são positivos porque são vivos, isto é, possuem marcas de vida além do recorte narrativo. São bons também, porque expressam o exagero que nutre as opções estéticas assumidas e renegadas pelas personagens. O cenário de Sidcley Batista auxilia a direção em criar uma situação que se movimenta em paralelo ao mundo além dali: a) os familiares do morto, que dormem deixando-as sozinhas madrugada a dentro no local; b) o sul do país, que está mais preocupado com outras questões e menos com as "almas ilibidas" dos confins do sertão. As caixas fazem evoluir os lugares narrativos, se modificarem e expressarem, assim, esse transbordamento das emoções que marcará a vida dessas personagens.

Sem dúvida, o mérito maior é do trabalho de interpretação pela forma como articulam os elementos argumentativos do discurso primeiro para, em seguida, quebrar com todos eles e, nesse processo, manter felizmente o interesse pelo novo que sempre aparece. O trio, sem destaque, está excelente, fazendo dessa produção um excelente programa! Parabéns!

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Ficha Técnica:
Texto - Ueliton Rocon
Pesquisa musical e Direção - Tom Pires
Atores - Gerson Lobo / Leandro Mariz / Sidcley Batista
Cenário - Sidcley Batista
Figurino - Leandro Mariz
Iluminação - Eduardo Salino
Realização: Cia.SOS de teatro Investigativo

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