quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Resquícios (RJ)

Elenco em cena
Foto: Gutemberg Brito

Enternecer

Em “Resquícios”, o teatro contribuiu muito pouco para a atualização de “Marcovaldo”, do italiano Italo Calvino ( 1923-1985), publicado em 1963, e agora adaptado para teatro pelo grupo dirigido por Carmen Frenzel. Não há uma regra que diz que as peças adaptadas devem ser exatamente como as obras originais. (“Tieta”, de Aguinaldo Silva, por exemplo, foi uma novela muito mais interessante do que é o romance “Tieta do Agreste”, de Jorge Amado.) O fato é que, quando algo ou alguém resolve atualizar (não confundir com contemporaneizar) uma obra, há que se pensar no que de melhor tem o novo sistema a fazer ver a estrutura anterior. Essa peça, revela bons trabalhos de interpretação, todos alunos formandos da Escola Técnica Martins Pena, e tem o mérito de evocar o universo de Calvino, o qual podemos relacionar facilmente com o de Dostoévski e o seu Príncipe Michkin, e o Lispector e a sua Macabeia. A peça esteve em cartaz no Teatro Armando Costa, na Lapa, onde funciona a escola onde os atores fizeram a sua recente formação.

Dentro da literatura neorrealista de Calvino, estamos dentro do personagem protagonista, contemplando o mundo lá fora. “Contemplar” é a chave que divide o neorrealismo do outros realismos, pois aqui não é o personagem com o qual nos identificamos que faz a crítica, mas ele é a crítica. Como Michkin e como Macabeia, Marcovaldo é o contraponto de um mundo hostil, duro, árido, aterrador. Pai de uma família pobre e com muitos filhos, ele conserva em si um ar infantil que pontua uma oposição marcada na realidade em que vive. Para Calvino, de um lado, há o mundo e, de outro, há Marcovaldo. O que o move ao longo dos acontecimentos (é um livro de contos) não são os fatos, suas causas e suas consequências, mas o tempo, as necessidades momentâneas, as situações em que se vê envolvido, sem planos, estratégias ou ambições. Sem dinheiro algum, a família faz uma visita ao supermercado e experimenta o prazer (?) de olhar os outros comprarem. Uma plantação de cogumelos na rua causa um alvoroço com um gari. O encontro com um menino rico é um emblema. A perseguição de um gato, que o leva a uma casa cheia de gatos, o faz conhecer uma senhora aprisionada. A entrega de presentes da empresa onde trabalha para os filhos dos funcionários, ofício esse que Marcovaldo divide com os próprios filhos, define uma relação com a família e no trabalho. Ou seja, nenhum fato é antecedente dos demais, podendo ser desorganizados, reorganizados, redistribuídos, porque o verdadeiro protagonista é a cidade que tenta inutilmente enterrar Marcovaldo, mas não consegue, tão maleável ele é.

É difícil reconhecer esse universo na adaptação de Carmen Frenzel, porque a figura do protagonista é interpretada por vários dos 17 atores que estão em cena, todos eles usando tons pastéis. Exatamente como aconteceu em “Nem mesmo todo o oceano”, dirigido por Inez Viana (aí temos o realismo naturalismo, que é parecido com o neorrealismo, mas diferente!), o espalhamento do eixo principal dá muita responsabilidade para os fatos que, na verdade, são sem importância. O ritmo parece se arrastar muito mais, porque, então, uma curva dramática torna-se necessária, o que, na narrativa em quadros, isso não é fundamental. De um modo geral, como está dado, “Resquícios” parece mais servir para ver-se os bons trabalhos de interpretação do que propriamente nos contar uma história.

Destacam-se Hikari Amada, Juliana Marins, Junio Duarte, Letícia lecker e Mariana Novaes, embora seja de extrema relevância para o trabalho o belíssimo desenho de luz de Renato Machado, a direção musical de Marcio Carvalho e de Raoni Costa, esses que também assinam as composições musicais, e a preparação vocal de Josane Custódio. Como já se disse, a concepção de Carmen Frenzel para a adaptar “Marcovaldo” traz mais problemas do que ganhos, mas, dentro do que se propôs, se mostra coesa e coerente, pois “Resquícios” é, de fato, uma estrutura una que se movimenta do todo às partes e das partes ao todo. O destaque feito a alguns trabalhos de interpretação se justifica pela forma íntegra com que os intérpretes atuam nas cenas e nas cenas com o público, evidenciando carisma, mas também excelente dicção, boas pausas, ótima dosagem das intenções, além de presença corporal admirável.

Em meio a uma selva de tiros, corrupções, manifestos, opiniões e muito calor, Marcovaldo nos faz lembrar de todas as gentes humildes que vivem alheias às grandes questões e nos fazem ver a beleza que é simplesmente esperar para tomar uma cerveja diante do gol do Brasil.

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Ficha técnica:
Espetáculo inspirado na obra de Ítalo Calvino
Direção: Carmen Frenzel
Direção Musical e Composições Originais: Marcio Carvalho e Raoni Costa
Preparação Corporal: Vera Lopes
Preparação Vocal: Josane Custodio
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Aldecir Azevedo
Figurino: Nivea Faso
Visagismo: Rogerio Garcia
Orientação teórica: Fabio Lima
Orientação de produção: Flávio Leandro
Apoio de pesquisa: Cris Muñoz
Programação visual: Ricardo Rocha
Tradução: Alessandra Barbagallo

Elenco:
Andrea Romão
Caio Passos
Deisi Margarida
Diogo Rodrigo
Erick Villas
Felipe Silcler
Fred Bilheri
Hikari Amada
Isadora Marinho
Jessica Obaia
Joice de Negri
Joyce Francisco
Juliana Marins
Junio Duarte
Letícia Iecker
Mariana Novaes
Sheilla Garcia

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