segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Zé Trindade: a última chanchada (RJ)

Alice Borges e Paulo Mathias Jr. em grandes trabalhos
de interpretação
Foto: divulgação

O valor das boas interpretações

As interpretações de Paulo Mathias Jr. (Zé Trindade) e de Alice Borges (Dercy Gonçalves) fazem do musical “Zé Trindade: a última chanchada” um espetáculo bom de ver. A peça, que faz uma homenagem justa ao comediante baiano, faz refletir sobre a forma como os vários elementos de uma narrativa cênica precisam se articular para o sucesso realmente vir. Nesse caso, a dupla de protagonistas parece sentir os ambientes frágeis do espetáculo e neles investir mais de si para que se mantenha o equilíbrio. O texto do famoso cronista dO Globo Artur Xexéo é muito ruim e a direção de João Fonseca, mais uma vez, é comportada, porque subserviente ao texto infelizmente. Falhas menores se ajustam com outros pontos positivos e o resultado é, felizmente, uma produção que vale os aplausos, mas também os apontes negativos.

O problema central de “Zé Trindade: a última chanchada” é que Artur Xexéo, nesse trabalho, não se mostra tão bom dramaturgo quanto o é o seu personagem Dramaturgo, esse interpretado por Rodrigo Nogueira. O Dramaturgo (o personagem) sabe que é necessário um conflito para haver teatro (no caso, teatro quer dizer uma produção narrativa tradicional, com grandes produtores e voltada para o grande público). Pressionado pelo Produtor (Alexandre Pinheiro), o Dramartugo (Nogueira) precisa escrever uma história sobre Milton da Silva Bittencourt, o Zé Trindade (1915-1990), mas, embora já tenha gasto o dinheiro do cachê, seu prazo está prestes a encerrar sem que se tenha conseguido produzir algo bom. Depois de vasculhar a biografia do comediante, nenhuma boa ideia lhe vem a cabeça, ou seja, o Dramaturgo sabe que a fama de Zé Trindade e o apreço que o público tinha por ele entre os anos 30 e 60 não são suficientes para sustentar uma narrativa teatral. É preciso um conflito, isto é, duas forças opostas e com a mesma força capazes de fazer com que o público se identifique com a situação, descubra o lado universal da história e acompanhe a caminhada do herói até a vitória. O miolo da peça “Zé Trindade: a última chanchada” é sua melhor parte, porque tem tudo isso.

Em uma análise actancial do trecho central desse espetáculo, encontramos facilmente um Sujeito (o Dramaturgo) que precisa escrever uma peça sobre Zé Trindade (o Objetivo). À sua ajuda, vem dos céus alguém para lhe ajudar: o próprio Zé Trindade (o Adjuvante), seguido de Dercy Gonçalves (o Segundo Adjuvante). O Oponente é o Tempo, aqui manifesto pela figura do Produtor (Alexandre Pinheiro), acompanhado do Ator que fará o protagonista (Rodrigo Fagundes). Quem envia o Sujeito (o Destinador) é a Ambição (pois, o Dramaturgo só topou escrever o texto por dinheiro, já que não gostava de Zé Trindade até encontrar-se com ele.). O Para onde o Objetivo leva (o Destinatário) é a homenagem a Zé Trindade e a fama que o Dramaturgo almeja para sair do bairro onde mora (o Catete, no Rio de Janeiro). Ou seja, todos os papéis actanciais estão distribuídos e é fácil, nesse trecho, reconhecer as forças que levam a história para adiante. Onde está o problema? No início e no fim.

Artur Xexéu abre o texto de “Zé Trindade” (e João Fonseca o mantém) com uma cena longuíssima em que Dercy Gonçalves (Alice Borges), recém falecida, chega ao céu e é recepcionada por Zé Trindade. Durante toda essa sequência, nada acontece e tudo o que se vê são ou gags (piadas prontas) ou trechos mera e monotonamente informativos. Estamos no céu, na nuvem dos comediantes, onde também há Charlie Chaplin, cujas frases são citadas à exaustão sem o menor motivo narrativo. Nisso, além do mais, há duas incoerências. 1) Dercy se encontrou com Chaplin antes de Zé Trindade, mas Zé não deveria ter sido o primeiro? 2) Dercy diz que não entende outras línguas e explica para Zé sobre o uso da tecla SAP na Terra, mas como ela entendeu o que lhe disse o britânico Chaplin? Indo além, Zé Trindade diz que gostaria muito de ir para outra nuvem, mas não diz nem para qual, nem o porquê, de forma que se localizar na história fica ainda mais difícil. Então, aparece, primeiro, o Assessor de Imprensa (Rodrigo Fagundes) e, por fim, São Genésio, o padroeiro dos atores e o gerente da nuvem dos comediantes. São Genésio resolve ajudar Zé Trindade, mas, para isso, o comediante terá que ir até a Terra para ajudar um Dramaturgo que está passando muito trabalho. Se conseguir ajuda-lo, ganhará o direito de mudar de nuvem. É quando o meio da peça já analisado começa. Ou seja, em “Zé Trindade: a última chanchada”, há duas histórias, uma principal (Zé Trindade querendo mudar de nuvem) e outra subordinada (Dramaturgo precisando escrever uma peça), só que a subordinada é muito melhor contada que a principal. Isto porque: a) O sistema de divisão em nuvens é falho, porque ninguém é apenas uma coisa. Há uma nuvem para apresentadores de televisão, mas Dercy, que também foi apresentadora de televisão, está só na de comediante, por exemplo. b) O motivo pelo qual Zé Trindade quer ir para outra nuvem não está claro e é apenas “fofo” no final. c) Os obstáculos que impedem o herói de atingir o Objetivo não são claros também. Não se sabe, assim, quem são os Opositores também; d) As ações inexistem e a narrativa é apenas descritiva.

Por fim, na análise do texto e da encenação de um modo geral, percebe-se que houve uma intenção de produzir uma chanchada à moda dos anos 40 e 50. É reconhecível que houve a abertura de espaço para o improviso, mas esse só era possível, nas produções originais, porque o roteiro era amarrado o suficiente e, assim, capaz de manter a história no seu caminho sem ressalvas. Não é isso que temos aqui.

No que diz respeito às interpretações, temos os excelentes trabalhos de Paulo Mathias Jr. e de Alice Borges nos papeis de destaque, que fazem das caricaturas de seus personagens um ponto de partida para o aspecto humano nos quais eles são envoltos. Inimigos durante a vida, os vemos juntos, parceiros, no céu e na volta à Terra. Os dois intérpretes têm excelentes usos dos tempos, posicionam bastante bem as intenções, fazem a crítica, estão ativos, vivos e ágeis em cena. Zé Trindade e Dercy Gonçalves foram intérpretes cujas personalidades eram bastante marcadas em suas vidas além das narrativas. A barriga projetada pra frente, o movimento da cabeça seguido do fechar de olhos e as explosões dos lábios de um lado, e as vogais abertas, o despudor em relação ao corpo e o verbo solto de outro são superfícies difíceis de exibir com respeito e convite à profundidade, mas que Mathias e Borges conseguem com exuberância evidenciar. Em papéis menores e com concepções opostas, Helga Nemecksy e Rodrigo Nogueira estão igualmente em construções bastante positivas. Próxima de Zé e de Dercy, Cleusa (Nemecksy), a Esposa de Zé, auxilia a trazer o homem por trás da fama à frente da história. Próximo do público e chave para o realismo que aproxima a peça da homenagem, o Dramaturgo (Nogueira) é rápido nas respostas e inteligente nas propostas de avanço da narrativa. Em contrapartida, Rodrigo Fagundes, Alexandre Pinheiro, Luisa Viotti e Nêga pouco acrescentam, primeiro porque seus personagens são mal construídos na dramaturgia, e segundo porque todas as suas sustentações não conseguem sair da superficialidade em nem um só momento infelizmente.

O cenário de Teca Fichinski, a direção musical de João Bittencourt e a iluminação de Dani Sanchez são positivos, mas sem grandes destaques. O figurino da Espetacular Produções e Arte tem a falha de manter o vestido de Cleusa longe do cinza, paradigma criado para unificar os personagens já falecidos.

Os estudos de semiótica teatral apontam para inexistência de signos teatrais, mas, sim, para a existência de signos “tornados teatrais”. Isto é, em teatro, tudo o que vemos vem de outros sistemas semânticos, mas se tornam teatro a partir da articulação comandada por um ator (ou mais de um). Nesse sentido, aplaude-se o valoroso esforço de boa parte do elenco em articular os elementos à sua disposição, ainda que nem sempre esse trabalho tenha sido vitorioso.

Em tempo, o filme "Entrei de gaiato", com Zé Trindade e Dercy Gonçalves, está inteiro no Youtube. Veja aqui.

*

FICHA TÉCNICA

Texto: Artur Xexéo
Direção: João Fonseca
Elenco: Paulo Mathias Jr., Alice Borges, Rodrigo Nogueira, Helga Nemeckzy, Rodrigo Fagundes, Alexandre Pinheiro, Luisa Viotti e Nêga.
Músicos: Mig Martins e Lucas Loureiro
Direção musical: João Bittencourt
Assistente de direção e Direção de movimento: Rafaela Amado
Cenário: Teca Fichinski
Figurinos: Espetacular Produções e Artes / Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo
Iluminação: Dani Sanchez
Programação visual: Luiz Stein Design
Assessoria de imprensa: Barata Comunicação
Direção de produção: Barata Comunicação

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!