terça-feira, 25 de março de 2014

A bala na agulha (SP)

Eduardo Semerjian em cena
Foto: divulgação

Em tempos de Caio Castro, eis aqui uma reflexão imperdível

A produção paulista “A bala na agulha” é uma grata participação na programação do teatro carioca. A partir de texto de Nanna de Castro, a peça dirigida por Otávio Martins situa uma discussão sobre o fazer teatral que, embora parta da relação profissional entre atores, chega em uma reflexão sobre as expectativas do homem em qualquer tempo sobre seu trabalho seja ele qual for. O excelente desenho de iluminação de Pedro Garrafa, ao lado das interpretações sólidas de Eduardo Semerjian, de Denise Del Vecchio e de Alexandre Slaviero definem esse espetáculo como uma das peças imperdíveis da temporada.

Na história, Chico Valente (Semerjian) e Cadu (Slaviero) dividem o palco em “Esperando Godot”, espetáculo produzido pela atriz Célia de Castro (Del Vecchio). O primeiro é um ator experiente da cena teatral, embora sem reconhecimento e quase sempre sem trabalho nos últimos tempos. O segundo é um jovem galã da televisão, atualmente bastante famoso por sua participação na novela, mas sem formação em teatro em contraste com seus “gordos” cachês. Em uma sessão, Valente aprisiona a equipe em seu minúsculo camarim, tendo como cúmplice o contrarregra Éden. Seu objetivo é simples: com arma em punho, ele quer jogar um tipo de jogo de humilhação com o colega mais jovem. O embate é interrompido por Célia que, para a surpresa de ambos, começa a participar da situação a que o público do teatro, o real e o fictício, assiste. A beleza da dramaturgia está em envolver trechos referenciais de textos célebres (Beckett, Ibsen, Tchekhov, ...) em uma estrutura que se modifica, se aprofunda, se reinventa a cada nova cena para além do previsível jogo de poder. A curva dramática é ascendente, situando os três personagens em uma trama complexa, inteligente, sensível e muito perspicaz. 

Todos os elementos de “A bala na agulha” se movimentam e fazem caminhar uma estrutura narrativa que é potente, bela e significativa. Enquanto expõem o outro, os personagens se expõem e a direção de Otávio Martins faz acontecer momentos bons e excelentes. Com ótimo uso dos tempos e da dicção, das expressões e dos tons, dos gestos e dos movimentos, o melhor de Semerjian está em interpretar Didi de forma emocionada e consequentemente ruim. O resultado disso é que fica evidente que o personagem Cadu aprendeu um pouco sobre a profissão de ator durante o desenrolar do jogo em que se vê envolvido. Del Vecchio e Slaviero, cujos personagens são menos contemplados pela dramaturgia, apresentam trabalhos que ganham pela sutileza.

O cenário de Claudio Solferini e a iluminação de Pedro Garrafa compõem um quadro de beleza singular. O balanço embaixo do foco afinado da cena inicial expressa com galhardia a efemeridade do trabalho do ator teatral. Os galhos secos do clássico de Beckett fazem boa articulação com a espera de Godot que, nesse caso, pode ser o reconhecimento que Chico Valente espera para si. A trilha sonora assinada pela direção, com Bizet, Strauss e outros, fazem referência a outras obras, concordando com o texto de Nanna de Castro positivamente.

Para longe do superficial encontro entre um ator experiente que aprende o que acha que já sabe com um jovem ator, “A bala na agulha” coloca em debate as expectativas versus a frustração. Fica para a contemporaneidade o pensamento por sobre o valor que damos aos acontecimentos da vida. Em tempos de Caio Castro, eis aqui uma reflexão imperdível.

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Ficha técnica:
Texto: Nanna de Castro
Direção: Otávio Martins
Elenco: Eduardo Semerjian, Denise Del Vecchio, Alexandre Slaviero e Júlio Oliveira
Assistente de direção: Pedro Garrafa e Beto de Faria
Desenho de luz: Pedro Garrafa
Trilha sonora: Otávio Martins
Figurino: Marichelene Artsevisks
Cenário: Claudio Solferini
Direção de produção: Will Sampaio
Idealização: Applaud Produções

segunda-feira, 24 de março de 2014

Os músicos de Bremen (RJ)

Anderson Oliveira em trabalho cheio de méritos
Foto: divulgação
Um ótimo espetáculo para toda a família

“Os músicos de Bremen” é a versão de Anderson Oliveira para o célebre conto dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Coberto de méritos, o espetáculo diverte o público de todas as idades, mas principalmente a plateia adulta que, além de se divertir com a peça, se diverte com as crianças que se divertem com a peça, lotando o Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Em cena, o elenco de atores/cantores, os músicos e o artista circense são responsáveis por uma produção de alta qualidade.

Publicado em 1812, o conto simboliza que a união dos mais fracos garante a vitória dos mais fortes. Na história original, um burro, um cachorro, um gato e uma galinha espantam um grupo de ladrões e vivem felizes para sempre em uma casa confortável. Na adaptação de Oliveira, a história acontece no interior de Minas Gerais na primeira parte do século XX. Cansados de tanto trabalhar sem receber nem mesmo bom trato (quanto menos um salário) dois Empregados (Erick Rizental Leandro Amado) e  e uma Cozinheira (Juliana Veronezi) fogem de uma fazenda de um Barão (André Rayol). Triste por viver confinada em casa, a Filha do Barão (Talita Monteiro) resolve fugir também. Os quatro formam um grupo mambembe que se apresenta nas ruas das cidades por onde passa, mas seus negócios vão mal até que uma Mulher aparece (Ronize Carrilho). Essa personagem irá, primeiro, criar um espetáculo que “fará” dinheiro, trazendo sucesso ao conjunto. Depois, porém, participará da história de outro modo. O mais interessante da dramaturgia de Oliveira é que, diferente do que acontece no romantismo fantástico de dos Grimm, os personagens são vistos a partir de uma certa dose de complexidade que, ainda que não distancie a peça do público infantil, situa a narrativa em um lugar um tanto quanto mais nobre.

A trilha sonora de “Os músicos de Bremen” é feita a partir de canções conhecidas do público, compostas e amplamente divulgadas antes dessa adaptação. O resultado é positivo, também pela qualidade vocal e musical dos artistas que interpretam as músicas ao vivo em cena), porque o público tem como participar da peça, cantando junto as canções que conhece. Se a história é conhecida, a ordem das canções não o é e. Assim, a surpresa vem mesmo em narrativa tantas vezes batida. São bastante felizes os arranjos e a direção musical de Dalton Coelho nesse sentido, bem como o trabalho dos músicos Tchello Andrade, Anderson Oliveira e Mário Sampaio.

O cenário de Francisco Costa e o figurino de Anderson Oliveira reforça o romantismo do texto original, apresentando um resultado limpo, idealizado e semanticamente valoroso. A fachada da casa da fazenda, a carroça, os figurinos ricos em detalhes constroem bem esse lugar maravilhoso onde vivem (sofrem, são felizes, pelo qual lutam, do qual fogem, etc...) esses personagens. Há apenas dois senões: um que prejudica a verossimilhança (base na qual se apoia o romantismo) e um que atrapalha a encenação. Quanto ao primeiro, o Barão não pode prender a empregada em um galinheiro sem portão. Sobre o segundo, há que se dizer que as botas e os sapatos de sola lisa não possibilitam a segurança necessária aos atores que se movimentam no palco escorregadio.

Sem destaques, “Os músicos de Bremen” é um espetáculo que representa a pujança de uma equipe talentosa e bem dirigida. Eis aqui um ótimo espetáculo para toda a família. 

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Ficha Técnica:
Texto e Direção: Anderson Oliveira
Arranjos e Direção Musical: Dalton Coelho
Codireção Musical: Juliana Veronezi
Elenco: Erick Rizental, Talita Monteiro, Leandro Amado, Juliana Veronezi, André Rayol, Ronize Carrilho, Tchello Andrade, Anderson Oliveira e Mário Sampaio
Artista circense: Edivaldo Silveira da Silva
Figurinos: Anderson Oliveira
Cenário: Francisco Costa
Iluminação: Vlad Russo
Programação Visual: Ingrid Carrielo
Produção Executiva: Fernanda Milfont
Produção e Realização: R&A Produções e Vero Soluções Musicais

Morde (RJ)

Simone Kalil
Foto: divulgação

Não morde

O problema de “Morde” é que o público se sente obrigado a rir uma vez que a atriz ri das próprias piadas. Em cartaz na Sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, a comédia escrita e interpretada por Simone Kalil serve para comemorar os 15 anos de sua carreira no teatro. Apesar do grande carisma, a atuação e a dramaturgia não têm méritos que superem o constrangimento de uma expressão que deveria (e poderia!) ser espontânea como a risada. Fica “chato” não rir e essa sensação afasta o espetáculo da avaliação mais positiva.

No texto de "Morde", constam uma série de crônicas engraçadas escritas por Kalil e publicada em livro homônimo. Repleto de estruturas cômicas por si só, a dramaturgia deixa pouco para o teatro. A atriz, vestida de negro, em um cenário muito colorido (que talvez faça referência às peças que ela interpretou nesses anos de carreira), se dirige ao público em primeira pessoa, contando diversas histórias. Nem todas as narrativas são sobre teatro. Nem todas as narrativas são sobre família. Nem todas as narrativas têm Kalil como protagonista. “Morde” também não chega a ser um stand up comedy, porque, além do cenário e do figurino (Kalil usa uma saia farthingale e um corpete com ombreiras no último trecho), a encenação tem dois pequenos intervalos que marcam o fim e o início de quadros que, para complicar, não se diferenciam entre si nem quanto à temática, nem quanto à estética.

Simone Kalil tem bom uso da voz, mas o ritmo da prosódia segue regular ao longo de toda a encenação dirigida por Alexandre Régis. São visíveis os problemas na pausa de respiração e na discordância entre os movimentos da fala e os olhos que medem a participação do público. Percebe-se um trabalho que celebra e visa o reconhecimento, mas há pouco espaço para ele vir naturalmente.

Como já se disse, o cenário e o figurino de Caká Oliveira não deixam exatamente claro onde está a atriz/personagem Kalil. A bancada, o espelho e a arara podem fazer ver um camarim ou uma coxia de teatro, principalmente porque estão à frente de uma cortina vermelha (que se abrirá como que para um público fictício). No entanto, o excesso de cores do conjunto e o “trono” à frente de um biombo à direita discordam da parte já citada e não estabelecem uma possibilidade nova de interpretação do espaço. Vê-se Kalil vestindo uma espécie de figurino, mas o texto realmente não assegura o espectador de que se trata de uma atriz recebendo o público.

Nas palavras da dramaturgia, “Morde!” é uma ordem dada aos atores para que eles fisguem o público (com os dentes) com o seu trabalho em cena. “Morde” tem boas intenções e faz com que o público saia do teatro torcendo pelo sucesso da atriz que o interpreta, mas infelizmente não “morde”.

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Ficha técnica:
Texto e atuação: Simone Kalil
Direção: Alexandre Régis
Produção: Tamires Nascimento
Iluminação: Fábio Erre
Direção de movimento: Jefferson Almeida
Preparação vocal: Jane Celeste
Cenário e Figurino: Cacá Oliveira
Captação de recursos: Flávio Helder
Projeto Gráfico: Davi Palmeira
Assessoria de imprensa: Minas de Ideias

Homens de Solas de Vento (SP)

Ricardo Rodrigues e Bruno Rudolf na abertura nacional do
17o Palco Giratório em Porto Velho/RO
Foto: divulgação

Um grande espetáculo no maior evento de difusão das artes cênicas do país

“Homens de Solas de Vento” é o espetáculo convidado a abrir a 17a edição do Palco Giratório do SESC, o maior evento de difusão das artes cênicas do país. Seguindo na trilha de “A memória roubada”, "Os perdidos" e “A volta ao mundo em 80 dias”, a atual produção da Cia. Homens de Solas de Vento envolve técnicas circenses na viabilização de sua narrativa, trazendo do espectador não apenas o seu intelecto e a sua emoção, mas requisitando a sua consciência enquanto homem físico. O circuito nacional do Sesc teve abertura solene em Porto Velho, no estado de Rondônia. A escolha por essa cidade é, também, simbólica: a programação levará 768 apresentações artísticas e mais de 1.200 horas de oficinas a 126 cidades diferentes (26 estados) entre março e novembro de 2014. Neste ano, a bailarina e pesquisadora Angel Vianna (85 anos) será homenageada. Márcia Costa Rodrigues, gerente de cultura do Sesc, reforça que a curadoria não foi de espetáculos, mas de grupos, o que dá importância não apenas às qualidades estéticas do espetáculo em si, mas à pesquisa no campo das artes dos grupos participantes. A Cia. Solas de Vento, de São Paulo, foi um dos 19 grupos escolhidos para “girar” das cidades mais distantes até as grandes capitais. No espetáculo “Homens de Solas de Vento”, não há falas, de forma que toda a dramaturgia é voltada para expressão física. Em um país de tão grandes proporções e de uma variada cartela de identidades, certamente será bonito admirar como os públicos diversos receberão esse lindo espetáculo teatral.

Dois homens ficam presos em uma alfândega, sem conseguir viajar. Vê-se suas malas e sua empolgação para partir, vê-se os passaportes constantemente mostrados e sua frustração a ouvir o impedimento, vê-se a espera. Não sabemos quem são, para onde vão, de onde vêm, seus nomes, seus estados civis, a época em que vivem (embora possamos acreditar que não é hoje pela ausência de ferramentas tecnológicas, como telefones celulares, etc). Ou seja, os personagens se expressam através do mínimo de informações – não são mulheres, não são velhos nem crianças, não são nem paupérrimos nem milionários – deixando o resto por conta do preenchimento do público. Quanto ao lugar e ao tempo, também acontece o mesmo – entraram, mas não podem sair. O tempo passa, pois as ações não se repetem, mas não se sabe ao certo o quanto passa. Ou seja, em termos de narrativa, os "buracos" da história têm mesmo tamanho de seu preenchimento, de forma que peça requisita um público que não é apenas audiência, mas criador. 

Dirigido por Rodrigo Mateus e interpretado por Bruno Rudolf e por Ricardo Rodrigues, a peça se narra principalmente pelo preciosismo das possibilidades corporais no ato da expressão. Os atores caem, pulam, se penduram, batem e se batem a partir de detalhes minuciosamente planejados que encantam o olhar do espectador que, antes de tudo, se vê no lugar dos intérpretes, esses em excelentes formas físicas. Em outras palavras, antes de ser um olhar de espectador para personagem, é um olhar de homem para homem, pois as acrobacias cheias de lirismo a que se assiste fazem oposição, mas partem do corpo humano, tão humano quanto o do público. Terminada a peça, as pessoas da plateia poderão sair do teatro apesar de terem estado em repouso durante a audiência. Por outro lado, apagadas as luzes do palco, os personagens permanecerão ali à espera, apesar de tantos movimentos em contrário. Essa oposição é um dos grandes méritos estéticos dessa obra.

Com belíssimo trabalho de orientaçãoo circense e de coreografia (Erica Stoppel e Adriana Grecchi), “Homens de Solas de Vento” tem desenho de luz de Douglas Valiense e de Maria Druck e trilha sonora de Marcelo Lujan. O todo viabiliza amarrada concepção cênica e narrativa que acaba por prender a atenção mesmo quando as informações estão apenas sendo ratificadas. Para o final, está reservado um desfecho que coroa o tema central da produção: somos homens e vivemos, mas somos homens melhores quando convivemos.

Além da Cia. Solas de Vento, o grupo permambucano Magiluth, o gaúcho Gente Falante e o tocantinense Lamira Artes Cênicas integraram a semana de abertura nacional do 17o Palco Giratório do Sesc. Não há dúvidas de que há de ser um ano de excelente programação.


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Ficha técnica

Argumento/concepção: Bruno Rudolf e Ricardo Rodrigues
Direção: Rodrigo Matheus
Elenco: Bruno Rudolf e Ricardo Rodrigues
Trilha sonora: Marcelo Lujan
Iluminação: Douglas Valiense e Maria Druck
Orientação de Arte: Luciana Bueno.
Orientação Circense: Erica Stoppel
Orientação Coreográfica: Adriana Grecchi
Orientação de Montagem em Altura: Alex Marinho.
Operação de luz: Marcel Gilber ou Roseli Martinelli ou Amanda Felisbino
Operação de Som: Bruno Cavalcanti ou Luana Alves ou Bruno Bachy
Fotografia: Mariana Chama
Programação Visual: Sato – Casadalapa
Produção: Cia. Solas de Vento.

sábado, 22 de março de 2014

Ana – Ensaios sobre “O tempo e o vento” (RJ)

Ana Vitória e Jane Duboc em cena
Foto: divulgação

Pouco

“Ana – Ensaios sobre “O tempo e o vento”” precisa ser analisado não como poderia ser, mas sobre o que quer ser. Nesse sentido, e talvez só nesse sentido, é positivo enquanto obra estética. O que se vê no palco do Teatro Sesc Ginástico não é uma viabilização cênica da obra do escritor gaúcho Erico Verissimo (sem acentos!) (1905 – 1975), mas um comentário a um capítulo do romance épico “O tempo e o vento”. E apenas um comentário. Com dramaturgia e direção de Marcelo Aquino, a peça tem direção de movimento de Denise Stutz e direção musical e composições de Jane Duboc. Em cena, há a participação honrosa de Angel Viana. Ao espectador, o ponto mais positivo é fato de durar apenas sessenta minutos.

“O tempo e o vento” é um romance escrito entre 1949 e 1961, disposto em sete livros: O continente 1 e 2, O retrato 1 e 2 e O arquipélago 1, 2 e 3. Erico Verissimo “constrói” o Rio Grande do Sul nos dois primeiros livros, carregando nas cores, enaltecendo os personagens, criando um universo romântico, maravilhoso, especial. Nessa primeira parte (que começa antes do Tratado de Madrid (1750) e vai até a Revolução Federalista (1893)), as mulheres são fortes, os homens são guerreiros, as paisagens são belíssimas, o tempo passa fluentemente. É preciso que seja assim nessa primeira etapa, porque Verissimo irá “destruir” o mesmo estado que construiu nos cinco livros que vêm depois (que percorre as primeiras quatro décadas do século XX). Na segunda e na terceira parte, o autor irá deixar ver o quanto o homem é corrupto, o quanto a sociedade é sórdida, o quanto as relações são capciosas. O Dr. Rodrigo Terra Cambará, protagonista do romance, é a versão de Verissimo de Getúlio Vargas: o caudilho, o populista, o ditador na visão do romancista. Na árvore genealógica, esse personagem é bisneto de Bibiana Terra Cambará, que, por sua vez, é neta de Ana Terra, essa apenas protagonista de um capítulo homônimo do primeiro livro da primeira parte. (Ou seja, dizer que Ana Terra é coluna fundamental de “O tempo e o vento” é, antes de qualquer coisa, um erro literário!) Sua história é contada desde os seus 25 anos até o início de sua velhice. (Ou seja, dizer que estamos diante da história da vida de Ana Terra é outro erro literário!!)

A dramaturgia de Marcelo Aquino não situa os personagens fazendo coisas, mas se dá a ver a partir de figuras que dizem (comentam verbal e corporalmente) o que Ana Terra era. Ou seja, não estão esgarçadas as cores dos atos, mas da avaliação dos atos: a pureza de Ana quando a história começa, a feminilidade de Ana quando ela se encontra com Pedro Missioneiro, a coragem de Ana quando chegam os castelhanos, a determinação de Ana quando o dia seguinte ao massacre de sua família amanhece e começa o resto de sua vida. Para o espectador, a narrativa fica superficial, pois, nos diálogos de Aquino, por exemplo, a primeira vez em que Ana vê o índio e seu desejo sexual por ele são enunciados justapostos enquanto, em Erico Verissimo, passam muitos meses e vários pequenos acontecimentos entre um e outro. Com isso, vê-se que os atos são “atropelados” em função das letras das canções interpretadas ao vivo em cena, essas que exortam, ao lado do texto, os valores das consequências dos atos.

Carol Machado protagoniza a narrativa cênica, sendo aquela que mais falas têm, considerando que nenhuma dentre as atrizes realmente têm uma personagem para si, mas todas são, de alguma forma, uma Ana Terra sem que haja diferenças entre elas. A interpretação é cheia de força, de bons usos dos tempo, de gestual equilibrado e crescente, de ótimas entonações. Quanto as demais atrizes que compõem o elenco, percebem-se trabalhos que reproduzem equilíbrio no conjunto sem destaques. Angel Viana tem importância na história das artes cênicas brasileiras o suficiente para marcar positivamente sua participação em qualquer espetáculo e de qualquer forma. (No programa, constam cinco bailarinos que não aparecem em nenhum momento do espetáculo.)

As canções de “Ana – Ensaios sobre “O tempo e o vento”” são redundantes, repetindo o primeiro tema apesar das letras diversas. O resultado é coerente, pois, em cena, temos a confirmação do que o texto diz, nada diferente, nada alternativo. Os figurinos de Ticiana Passos reforçam o vento na leveza dos tecidos e o tempo nas estampas circulares, também sem acrescentar nada de novo. A cenografia de Daniele Geammal nem expressa o planalto ou o pampa rio-grandense, nem sugere algo que seja claro, além dos espelhos que remetem ao reflexo de Ana na sanga onde ela usava lavar roupas. As vozes das atrizes concorrem deslealmente com os microfones das cantoras e com o som amplificado das canções, mas vencem a disputa valorosamente.

Pelo exposto, Marcelo Aquino quis pouco com “Ana – Ensaios sobre “O tempo e o vento”” e conseguiu, o que é bom.

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FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e direção: Marcelo Aquino
Direção de Movimento: Denise Stutz
Direção Musical: Jane Duboc
Com: Ana Vitória, Carol Machado, Carolyna Aguiar, Claudia Castelo Branco, Jane Duboc, Renata Costa e Roseane Milani
Participação especial: Angel Vianna
Stand in: Sandra Alencar
Trilha original: Jane Duboc e Felipe Dias
Arranjos: Jane Duboc e Claudia Castelo Branco
Cenografia: Daniele Geammal
Vídeos: Renato Livera
Figurino: Ticiana Passos
Iluminação: Rúbia Vieira
Visagismo: André Vital
Preparação Corporal: Carolyna Aguiar
Preparação Vocal: Gabriela Geluda
Assistência de Direção: Cleiton Echeveste
Programação visual: Arthur Schreinert
Fotografia: Desirée Do Valle
Assistência de Produção: Clarissa Quintieri
Produção executiva: Anna Sant’Ana
Direção de Produção: Roseane Milani
Realização: Gam Produções

O enxoval (RJ)

Verônica Reis e Ana Paula Secco em cena
Foto: divulgação

Uma pérola!

            “Enxoval” é uma pérola. Célia e Amélia são vistas na velhice, em um entre tantos dias que se repetem em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. A visão, que se mostra limitada em termos de espaço, é grandiosa em questão de tempo, o que aproxima o público de todas as idades das personagens, da história narrada, da peça como um todo. Participante das comemorações de vinte e dois anos da Cia Atores de Laura, a peça se apresenta no Teatro Poeira, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro.
            O lugar trágico, marca artística da contemporaneidade desde o Teatro do Absurdo, é aquele em que algo é superior à vontade dos personagens. O tempo é o principal protagonista dessa situação, pois ele passa independente do espaço e das pessoas. Em “O enxoval”, há quem espere o casamento que nunca aconteceu, há quem sinta falta do marido que já se foi, mas há também quem já se acostumou com os dois sentimentos e não faz, dessa falta, algo que lhes mude o contorno da vida. O dia a que o espectador de “O enxoval” assiste é apenas mais um dia, igual a tantos outros, de forma que a banalidade é tema, é assunto, é a questão pautada. O texto de Ana Paula Secco, Verônica Reis e de Luiz André Alvim reforça isso através das repetições triádicas, também expressas na direção de Alvim, cujo bom casamento deixa ver bom teatro.
            O trabalho de interpretação de Ana Paula Secco (Célia) e de Verônica Reis (Amélia) é, em minúcias, positivíssimo. O resultado emociona, diverte e faz refletir. O pequeno detalhe enternece, as repetições fazem rir e o todo pontua a discussão tanto sobre a forma como os idosos são tratados por si e pelas outras idades, como aquilo a que se espera quem ainda não está lá (mas quer chegar). Com um formato que se mostra meramente superficial no início, os trabalhos de interpretação se sujeitam a provas mais rígidas e passam por todas elas com louvor.
            O uso de todos os elementos estéticos é bastante simples, apontando para o principal nesse espetáculo: a interpretação da história. Fornecendo boas possibilidades sem causar entraves, o cenário e o figurino de Secco e a iluminação de Alvim dão a ver a narrativa em sua maior e mais positiva potencia.

            “O enxoval” estreou em abril de 2010. Há de envelhecer com o público, permanecendo um ótimo espetáculo.

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Ficha técnica:
Texto: Ana Paula Secco, Verônica Reis, Luiz André Alvim
Direção: Luiz André Alvim
Elenco: Ana Paula Secco, Verônica Reis, Luiz André Alvim
Iluminação: Luiz André Alvim
Cenário: Ana Paula Secco
Figurinos: Ana Paula Secco
Direção de Produção: Ana Lelis
Produção executiva: Isabel Pinheiro e Renata Campos

Camille e Rodin (SP)

Leopoldo Pacheco e Melissa Vettore em cena
Foto: divulgação

Morno

“Camille e Rodin”, apesar de ser um bom espetáculo, acaba por ser um tanto quanto monótono porque não exibe a evolução dos personagens além de um mínimo muito tímido. A peça é um trabalho raro de viabilização cênica do impressionismo no teatro, o que significa que o espetador primeiro vê o mundo a partir do olhar de um personagem, segundo porque esse olhar é um manifesto cansaço da ordem das coisas na cidade (cada vez mais burguesa) e uma fuga para o campo, onde o natural continua tendo o seu privilégio. Assim, se, de um lado, temos no Teatro Maison de France um espetáculo teatral que, em sua forma, manifesta o conceito de gênero impressionista; de outro, temos uma dramaturgia que pode cansar o espectador, porque apresenta uma curva dramática bastante pequena.

“Camille e Rodin” tem, em sua estrutura fundamental, a figura da escultora Camille Claudel (1864 – 1943). É ela quem começa e quem termina a narrativa, as cartas dela ao irmão dominam boa parte das cenas, é ela quem propõe problema. Ainda bastante jovem, chegou às mãos do já famoso Auguste Rodin (1840-1917) como aluna e ajudante. Ao longo dos anos, veio a frustração profissional e amorosa. Nas reclamações da artista, apesar de trabalhar muito, era apenas o mestre quem ganhava os aplausos. Além disso, Rodin permanecia casado enquanto o romance entre os dois acontecia. Na visão de Keppler e de Andreato, Claudel se apresenta insatisfeita enquanto artista e enquanto mulher. Já Rodin aparece como aquele que nunca prometeu nada nem à aluna, nem à amante. Por isso, embora os nomes famosos, “Camille e Rodin” emprega sua força em se mostrar como uma grande “discussão de relacionamento” antes de qualquer outra coisa infelizmente. O desmérito, no entanto, não está nisso, mas em evidenciar pouco as nuances dessa situação inicial. É desde as primeiras cenas, e durante toda a peça, que se vêem as reclamações de Camille.

Os trabalhos de interpretação concordam com o texto e pouco deixam ver a crítica. De um lado, Melissa Vettore não perde um só momento de se expressar, preenchendo inclusive seus silêncios de gestos e de expressões faciais. Por outro, Leopoldo Pacheco tem raros momentos de explosão, mantendo as faces impassíveis em quase toda a narrativa. O resultado final não é ruim, pois, mesmo o ritmo permanecendo linear em boa parte da encenação, é possível identificar três momentos: o primeiro encontro entre os dois artistas, uma discussão definitiva e todo o resto. É preciso ressaltar positivamente o excelente trabalho de dicção, o bom uso do espaço e a relação corporal entre os dois intérpretes em cena.

O cenário de Marco Lima, o figurino de Marichilene Artisevskis e trilha sonora de Jonatan Harold pouco variam, o que ratifica o tom do texto, da direção das interpretações, dando a ver um trabalho coeso e coerente. De forma positiva, a iluminação de Wagner Freire pontua as cenas, criando em um espaço único dois universos diferentes, de tempos diferentes, sem prejudicar o realismo de que o impressionismo parte. A oficina de trabalho de Rodin e o quarto de Camille são pequenas "ilhas" onde os personagem se escondem para fugir do turbilhão da cidade. Por isso, é o melhor elemento usado em “Camille e Rodin”.

Desde o início, o espectador sabe tudo o que vai acontecer em “Camille e Rodin” e o “como as coisas vão acontecer” é pouco para manter a atenção. Em tempos de internet banda larga e de wikipedia, o interesse sobre a biografia de dois artistas fundamentais na história da arte também é um atrativo fraco. Fica um aplauso que é morno.

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Ficha Técnica:
Texto: Franz Keppler
Direção: Elias Andreato
Elenco: Leopoldo Pacheco e Melissa Vettore
Assistente de direção: Leandro Goddinho
Desenho de Luz: Wagner Freire
Cenografia: Marco Lima
Trilha sonora:  Jonatan Harold
Figurino: Marichilene Artisevskis
Fotografia: Alexandre Catan
Projeto: Dramática Produções Artísticas
Direção de Produção: Andrea Caruso
Produção Executiva: Gabriel de Souza
Realização: Dramática Produções Artísticas

terça-feira, 11 de março de 2014

12 homens e uma sentença (SP)

Norival Rizzo interpreta o Jurado n. 8
Foto: Zineb Benchekchou

Excelente!

“12 homens e uma sentença”, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil, está entre os melhores espetáculos desse início de 2014 e certamente será um dos melhores do ano na capital fluminense. Com excelentes interpretações e com um minucioso jogo de cena dirigido por Eduardo Tolentino de Araujo, a peça foi escrita por Reginald Rose para teleteatro em 1954, quando foi veiculada pela CBS nos Estados Unidos. Três anos depois, o filme (“12 Angry Men”) dirigido por Sidney Lumet recebeu diversas premiações pelo mundo e tornou famosa a história de doze jurados debatendo o caso do assassinato de um pai por seu filho. A montagem atual, que estreou em São Paulo sob a mesma direção, mas com um elenco diferente, é a primeira produção do texto no Brasil e é assinada pelo casal Ana e Mario José Paz, que também foram responsáveis pelo belíssimo monólogo “Rosa”, com Débora Olivieri.

Antes de tudo, o público carioca tem diante de si um verdadeiro “banho de teatro” com os ótimos trabalhos de interpretação de Alexandre Mello (5), Henrique César (9), Marcello Escorel (7), Mário José Paz (11) e de Xando Graça (Jurado 2), e com os excelentes Camilo Bevilacqua (4), Genezio de Barros (3), Henri Pagnoncelli (10) e Norival Rizzo (8) (em ordem alfabética). Em “12 homens e uma sentença”, não há nada além de doze homens conversando, sem mudanças de cenário, com discretíssimos movimentos no quadro de iluminação, com figurinos em nuances bem sutis. Tudo está no texto e nas intenções, nas pausas e nos movimentos pelo espaço, esse que se restringe ao interior de uma sala auxiliar ao tribunal: uma mesa, cadeiras, um ventilador que não funciona, alguns papéis para votação. É nessa arena que grandes intérpretes mostrarão e mostram o seu melhor (e consequentemente onde os maus evidenciam suas debilidades). Não é, em se tratando dessa peça, na afetação das caricaturas que os doze homens hão de se diferenciar, mas na forma como reagem às presenças uns dos outros. E é nesse jogo de estratégia que os personagens vão se localizando, próximos de uns, distantes dos outros, mas onde, principalmente, que os intérpretes vão dando a ver a sua experiência, o seu talento e a sua formação. Os citados estão de parabéns.

Com uma sentença óbvia, os jurados entram na sala prontos para condenar o réu à morte. No brilhantismo de Tolentino, a peça começa com os 12 jurados de frente para o público, um ao lado do outro, mas às escuras, apenas com um contraluz aceso. É o único momento realmente “teatral” do espetáculo que começa verdadeiramente quando um dos jurados (Rizzo) resolve absolver o réu. Para a condenação, é necessária a unanimidade. Ou seja, o grupo dos onze investem sobre o discordante a fim de convence-lo (ou de serem convencidos). Do falar baixinho aos brados emocionados, do ritmo lento ao tom empolado, passando pelo sotaque e pela linguagem mais simples, a sensação de sufocamento vai crescendo no público que assiste ao embate completamente entregue a saber como será o fim. Nenhum dos jurados têm nome e, apesar disso, são eles quem mais se expõem ao expor detalhes do caso diante ao qual estão diante. Formalmente, nessa narrativa, quanto mais se aproxima da história do réu, mais se chega às histórias dos jurados que julgam o réu, mas o preciosismo do texto de Rose está em deixar para a direção e para as interpretações esse trabalho de equilíbrio (Um dramaturgo ruim certamente escreveria pequenos monólogos para cada jurado nos quais o público os conheceria mais de perto.). É de altíssimo nível o trabalho de direção de Eduardo Tolentino aqui.

O realismo que pauta as escolhas estéticas em todos os cantos dessa estrutura dá garantias à audiência para que a entrega seja plena. Com um belíssimo resultado artístico, "12 homens e uma sentença" é digno de todos os elogios que tem recebido desde sua estreia brasileira. Parabéns!

*

FICHA TÉCNICA
TEXTO: Reginald Rose
TRADUÇÃO: Ivo Barroso
DIREÇÃO: Eduardo Tolentino de Araújo

ELENCO:

Jurado 1 | EDMILSON DE BARROS
Jurado 2 | XANDO GRAÇA
Jurado 3 | GENÉZIO DE BARROS
Jurado 4 | CAMILO BEVILAQUA
Jurado 5 | ALEXANDRE MELLO
Jurado 6 | BABU SANTANNA
Jurado 7 | MARCELO ESCOREL
Jurado 8 | NORIVAL RIZZO
Jurado 9 | HENRIQUE CESAR
Jurado 10 | HENRI PAGNONCELLI
Jurado 11 | MARIO JOSÉ PAZ
Jurado 12 | GUSTAVO RODRIGUES
Guarda | Francisco Paz

CENÁRIO: Lola Tolentino
FIGURINO: Ana Cristina Monteiro de Castro
ILUMINAÇÃO: Nelson Ferreira
FOTOS: Dalton Valerio
DESENHO GRÁFICO: Rico Lins
PALCO E CAMARIM: José Milton Damasceno
OPERADOR DE LUZ: Rodrigo Emanuel
PATROCÍNIO: Banco do Brasil
DIRETOR DE PRODUÇÃO: Bruno Katzer
PRODUÇÃO: Ana Paz
ASSESSORIA DE IMPRENSA: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Eu, o Romeu e a Julieta (RJ)

Adriano Garib e Marina Provenzzano
Foto: divulgação

A sutileza versus o hermetismo


“Eu, o Romeu e a Julieta” faz tantas voltas para chegar onde quer chegar que, quando chega, o lugar acaba frustrando as expectativas de quem foi. O grande lugar de complexidade da história está nas barreiras construídas pelo personagem Pedro em volta de si mesmo e que o impedem a realizar seu grande sonho. O conflito é interno: quanto mais Pedro quer fazer algo, menos ele consegue fazer e o mérito maior desse espetáculo da Cia das Inutilezas está em trabalhar essa sutileza. Não há narrativa que não trate do homem, mas poucas histórias conseguem tematizar lugares tão sensíveis o que temos aqui. Pena que o espetáculo que esteve em cartaz no Mezanino do Teatro Sesc Copacabana tenha, como Pedro, construído tantos “muros” sobre si próprio.

Há vinte e cinco anos, Pedro quer interpretar Romeu no clássico “Romeu e Julieta”, de Shakespeare. Também há vinte e cinco anos, nasceu Ana, uma atriz de publicidade que, agora, se candidata à vaga de Julieta na mais última tentativa de Pedro de realizar o seu sonho. Interpretado por Adriano Garib, Pedro articula muitas palavras por segundo, movimenta-se em um ritmo regular de tensão e distensão e tem uma respiração ofegante, tudo isso marcando o seu nervosismo em estar, sendo ele um homem de meia idade, diante de uma jovem e bonita atriz iniciante. Os ensaios para a produção não evoluem, pois Pedro (o produtor, o diretor e ator protagonista) não consegue se aproximar de Ana e o efeito é tanto cômico quanto trágico, isto é, ao mesmo tempo, vemos a insegurança e a determinação (duas características opostas) de um homem diante do seu ofício. Profundo conhecedor da obra de Shakespeare, ele não quer que absolutamente nenhum detalhe passe despercebido e, quanto mais se vê próximo da realização do seu grande intento, mais treme.

O primeiro problema de “Eu, o Romeu e a Julieta” é que a história é contada a partir de um personagem Menino, interpretado pelo ator Antônio Rabello Medeiros, que tem 12 anos. Os pais desse Menino se separaram recentemente. O pai dormiu por um tempo no sofá e depois foi embora de casa. O Menino sente saudades dele e narra para o público uma das coisas de que ele mais sente falta do pai: de vê-lo, ao contar histórias, arrancar as últimas páginas dos livros para que os finais fossem inventados pelos leitores e não apenas aceitos tais quais foram escritos. Com isso, a dramaturgia literária e cênica assinada por Emanuel Aragão informa a respeito da importância de terminar histórias, fazendo uma ponte da situação familiar do Menino com a história que esse Menino começa a contar para o público, a de Pedro. Pedro e Ana, assim, não existem no mundo do Menino, mas apenas em sua imaginação, de forma que temos uma história dentro da história e a relação entre as duas vai se tornando cada vez mais infelizmente óbvia, como o Pai do Menino, Pedro também não terminou a sua história. 

Outra questão relevante em termos negativos é o ritmo da narrativa. A primeira coisa que acontece em cena, a chegada de Ana na sala de ensaios, se dá aos 60 minutos de espetáculo. Esse alargamento exagerado do tempo tem um motivo claro: construir a tensão que marcará o personagem Pedro, como já se disse. No entanto, porque temos duas histórias e ainda teremos uma terceira, essa tensão toda que é criada acaba sendo um elemento que se torna obsoleto e, portanto, nem tão útil assim. Tendo apenas assistido à história durante dois terços do tempo, o Menino e a diretora assistente da peça “Eu, o Romeu e Julieta”, Liliane Rovaris, interferirão propriamente na cena no final da narrativa. Ou seja, mais para o final da apresentação, esse espetáculo da Cia. Inutilezas, que ainda não encerrou nenhuma da histórias que começou, proporá uma terceira infelizmente.

Na direção de Emanuel Aragão, há um jogo de câmeras que relaciona o que acontece no lado de fora do teatro com a cena a que estamos assistindo dentro da sala. Enquanto vemos Pedro tenso, à espera de Ana na sala de ensaios do cenário de Antônio Pedro Coutinho, vemos Ana, através do vídeo, fazer o seu trajeto da rua até a porta de entrada da sala. O efeito se repete algumas vezes ao longo da peça e, no final, temos uma forte aproximação das ruas de Copacabana com a peça a que estamos assistindo, essa, por sua vez, já uma história dentro de uma outra história. Quando se notam que as cenas exibidas ao público são mais um virtuosismo da operação (no sentido de apertar o botão play na hora certa) do que propriamente da captação - o que fica claro quando assistimos aos personagens na rua e, em seguida, os vemos sair da coxia -, sabemos que o elemento narrativo usado aqui é um hermetismo interessante do ponto de vista da forma, mas praticamente vazio na ordem do conteúdo. É apenas uma terceira ponta dessa estrutura que, até então e ao final, se mostrará cambaleante.

Assim, ainda que a carga dramática bastante bem pontuada pelas excelentes interpretações de Adriano Garib (Pedro) e de Marina Provenzzano (Ana) sejam teatral e narrativamente relavantes, o espetáculo como um todo parece mais querer exibir o bom uso de técnicas de dramaturgia ( uma história, dentro de uma história, dentro de uma história) e de uso de elementos cinematográficos do que propriamente tratar de um tema e enfrenta-lo com uma boa narrativa. Com mais de duas horas de duração, “Eu, o Romeu e a Julieta”, além de ótimos trabalhos de interpretação, e de um uso bastante interessante dos elementos cênicos (lousas, luzes fosforescentes, objetos de ensaio teatral, etc) traz uma investigação estética que é, de fato, batente rica. Pode não resultar em um trabalho realmente sólido, mas, sem dúvida, com belas paisagens. 

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Ficha técnica

A partir da obra de William Shakespeare
Texto e direção: Emanuel Aragão
Diretora assistente: Liliane Rovaris
Elenco: Adriano Garib, Antonio Rabello e Marina Provenzzano
Iluminação: Isadora Petrauskas
Cenário: Antonio Pedro Coutinho
Figurino: Liliane Rovaris
Trilha sonora: Alex Tolkmitt
Fotografia: Felipe Lima
Realização: Cia. das Inutilezas