sábado, 26 de abril de 2014

2 x Matei (RJ)

Guida Vianna e Gilberto Gawronski
Foto: divulgação

A ironia afiada de Matei Visniec

Em “2 x Matei”, há uma afiada ironia à tendência humana de dar sentido para as coisas. No espetáculo em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, há a justaposição de dois textos do dramaturgo romeno Matei Visniec: “O último Godot” e “O rei, o rato e o bufão do rei”. A peça dirigida por Gilberto Gawronski tem brilhante interpretação dele de Guida Vianna, idealizadora do projeto. Vale a pena conferir a montagem, mas principalmente refletir sobre o que pode unir as duas histórias.

Na primeira história, temos o autor de “Esperando Godot” (Gilberto Gawronski), saindo do teatro após uma sessão cancelada pela falta de público e se encontrando com Godot (Guida Vianna), que está ali para reclamar a sua não participação na peça. No diálogo, está imanente o fato de que o texto célebre de Samuel Beckett é famoso porque, em nenhum momento, fica-se claro quem é Godot, pelo qual Didi e Gogo esperam. Incluir Godot na história traria sentido para a peça, retirando-a do Teatro do Absurdo e, talvez, incluindo-a no roll das muitas comédias costumeiras do teatro convencional. O gesto traria público para a produção, mas, sem dúvida, retiraria dela toda a importância estética. Ao discutir sobre essa possibilidade, esses dois personagens flertam com a rendição ao mundo do puro entretenimento e, enquanto isso, a ironia vem à tona.

Em “O rei, o rato e o bufão do rei”, o imperador e seu bobo foram presos por uma revolta popular e aguardam suas execuções. A melhor parte do texto desse quadro começa quando ambos preparam o discurso final. Vem aí o deboche ao burguês, àqueles que tiram quem está no poder para ocupar-lhes não apenas o lugar, mas também seus vícios. Mais uma vez, duas pessoas conversam em um lugar isolado sobre a tendência da grande multidão que, nessa história, grita ao lado do patíbulo, e, na primeira cena, dorme em casa. O ponto da alta da ironia está no último momento da segunda cena, no como os dois personagens se dirigem à morte: dispostos, mais uma vez, a enganar à massa, essa tão ingênua em sua sanha de poder.

Gilberto Gawronski e Guida Viana mantêm a excelência de suas interpretações no jeito cuidadoso de dizer o texto, com todas as sílabas claras, mas também as intenções, as pausas, as possibilidades de sentido disponíveis. O volume alto convive com o baixo em um roteiro de falas jamais desperdiçado. No caso específico da segunda cena, os dois atores apresentam a multiplicidade de seu trabalho na viabilização das nuances da situação dramática. É brilhante!

O preciosismo do cenário na primeira cena é também a beleza dos figurinos na segunda, ambos assinados por Gawronski. Projeção, led e luz fria de lado, tem-se recursos orgânicos e artesanais, como palha, folha natural, elementos de feltro e cobertor barato, de outro. Destaque também para a maquiagem na caracterização dos quatro personagens. O visagismo é assinado por Hélio Dias.

O título “2 x Matei” alude à célebre montagem de “4 x Beckett”, de Gerald Thomas. Guida e Gawronski pretendem, com isso, homenagear seus mestres teatrais, Sérgio Britto e Ítalo Rossi, falecidos recentemente, que faziam parte do elenco dessa antológica montagem inovadora da cena teatral carioca nos anos 80. A ser visto! 

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Ficha técnica
De: Matéi Visniec
Tradução:
O último Godot (Roberto Mallet)
O rei, o rato e o bufão do rei (Pedro Sette-Câmera)

Com Guida Vianna e Gilberto Gawronski
Direção e cenografia: Gilberto Gawronski
Supervisão: Amir Haddad
Direção de movimento: Andrea Jabor
Figurinos: Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues
Visagismo: Hélio Dias
Luz: Vilmar Olos
Vídeo e som: Jorge Neto
Produção executiva: Wagner Uchoa
Realização: GPS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS

O estranho caso do cachorro morto (RJ)

Rafael Canedo e Thelmo Fernandes em bons trabalhos
Foto: divulgação

Sem direção

O maior problema da encenação de “O estranho caso do cachorro morto” é que não há marcas de uma direção que exiba uma concepção firme sobre o que se vê. Ao contrário, sai-se da Sala Marília Pêra, no Teatro Leblon, com a nítida impressão de cada ator está em cena fazendo o que acha que deve, se esforçando, mas sem uma visão da peça como um todo. Com direção assinada por Moacyr Goes, a peça foi a grande vencedora do último Laurence Olivier Awards, o grande prêmio do teatro inglês. Tem texto do premiado Simon Stephens a partir de livro escrito por Mark Haddon que fala menos sobre autismo e conta mais a história de um casal de pais que precisam aprender a lidar com um filho autista. Em cena, são positivos os trabalhos de interpretação de Rafael Canedo, como o filho Christopher, e de Thelmo Fernandes, como o pai Ed, mas apenas os seus infelizmente.

A história pode ser dividida em quatro partes. Na primeira, morre assassinado o cachorro da Sra. Shears (Carla Guidacci), crime esse que instiga o adolescente Christopher (Canedo) a descobrir o mistério. Apesar de proibido pelo pai (Fernandes), o jovem sai entrevistando as pessoas da vizinhança à cata de informações. Na segunda parte, o pai apreende um caderno vermelho do filho onde há anotações sobre as investigações, além de um diário. A relação conflituosa (e amorosa) do pai e do filho, cuja morte da mãe (Silvia Buarque) é recente, desvenda as especificidades do convívio com alguém autista enquanto exibe a importância da segurança na construção da identidade ao longo da difícil fase da adolescência. É quando se descobre que, na verdade, a mãe não morreu. Na terceira parte, Christopher embarca para Londres a fim de morar com a mãe e com o atual marido (Leon Góes). Vêm à luz aí o embate interno entre o ser mãe, o ser esposa e o ser mulher, tudo isso em choque com a realidade específica de Christopher. Por fim, há a volta para casa, o que não é necessariamente um retorno à situação inicial. Partes expostas, está evidente o quanto as curvas dramáticas do texto de Stephens são claras na dramaturgia embora inexistentes na direção de Goes.

Silvia Buarque (Mãe) apresenta o mesmo personagem durante toda a peça, sem nuances, sem pontos de mudança, sem crises e nem ápices, mas a mesma linearidade superficial do início ao fim. O mesmo se pode dizer do Sr. Shears (Leon Góes) e da Sra. Shears (Carla Guidacci), em péssimas atuações, porque sem marcas de verdade. Eduardo Rieche, Paulo Trajano, Fabiana Tolentino e Ricardo Gonçalves têm personagens que, nessa ausência de concepção de direção, são pouco além de figurantes dispensáveis. A questão mais problemática está na interpretação de Siobhan, por Sabrina Korgut: nem ao menos se sabe quem é essa personagem e o que ela faz se olharmos apenas para a montagem aqui em questão. Siobhan é um dos pontos altos do texto de Simon Stephens. Ocupando um lugar que fica entre a professora, a terapeuta e amiga, é através dessa personagem que o público se aproxima da obra, mantendo a consciência, sem se entregar totalmente à emoção. Stephens divide as falas dos personagens com ela em pontos específicos e com objetivos claros: ao dividir a dramaturgia com essas quebras de eixo lineares e relacionais, o autor sustenta a emoção e prende a atenção, atrasando o ápice eficientemente até o fim. Na versão de Moacyr Goes, Siobhan está muito mais para uma menina que quer ser a namorada de Chritopher, sem nem mesmo transparecer isso.

Ainda sobre os trabalhos de interpretação, Thelmo Fernandes e Rafael Canedo exibem excelentes trabalhos, porque também ambos constituem um núcleo encerrado em si próprio. Christopher (Canedo) é o protagonista e seu trabalho é realmente fechar-se em si ao construir personagem que se isola de parte do mundo por motivações da ordem da sua psicologia especial. Embora se relacione também com outros personagens, é com o Filho que o Ed (Thelmo Fernandes) mais convive, o que possibilita mais base segura para que o intérprete do Pai possa se apoiar ao dar vida ao personagem. Infelizmente, são essas as duas únicas bases seguras de “O estranho caso do cachorro morto”.

Um cão de madeira de um lado, um rato inexistente (os atores “fazem de conta” que o rato existe) de outro, um caixa eletrônico interpretado por uma atriz e, por fim, um cão de verdade marcam a bagunça conceitual da estética dessa produção. O cenário de Ana Santana e de Mônica Martins podem representar várias coisas, mas, ao mesmo tempo, nada, ficando pior ao conviver com o vídeo de Lucas Canavarro e de Renan Brandão. Explorando o lúdico e o realismo, o onírico e o racional, o contexto visual da produção não leva a história para lugar algum.

O texto de “O estranho caso do cachorro morto” é feliz em situar um caso específico e trata-lo como específico, levando para o geral a relação das pessoas não-autistas com as portadoras dessa característica. A versão brasileira desse espetáculo, no entanto, não acompanha os méritos do texto.

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Ficha técnica:
Texto: Mark Haddon
Adaptação: Simon Stephens
Direção: Moacyr Goes
Elenco: Thelmo Fernandes, Sabrina Korgut, Silvia Buarque, Leon Góes, Rafael Canedo, Carla Guidacci, Eduardo Rieche, Ricardo Gonçalves, Paulo Trajano e Fabiana Tolentino
Cenário: Ana Santanna e Monica Martins
Figurinos: Joana Mendonça e Luiza Oliveira
Desenho de luz: Tomás Ribas
Direção musical: Ary Sperling / Trilha Sonora Original: Rafael Sperling
Direção de Produção: Moacyr Goes
Produção Executiva: Juliana Lago
Assistente de direção 1 : Matheus Senra
Assistente de Direção 2 e Produção: Fernanda Curi
Video Mapping: Lucas Canavarro e Renan Brandão

Amores (RJ)

Grupo Os Desequilibrados faz 18 anos
Foto: Dalton Valério

Símbolo da nova e essencial dramaturgia brasileira

“Amores”, que ganhou vários prêmios de Melhor Texto quando estreou no fim dos anos 90, pode ser um símbolo de que a nova dramaturgia brasileira tem mesmo consistência e qualidade para ficar. Dirigido por Ivan Sugahara, a produção que abre a comemoração dos 18 anos de trabalho dos Desequilibrados é a segunda montagem do texto de Domingos Oliveira (1936) e mais um novo trabalho do grupo. Em cartaz na Sede das Companhias, na Escadaria do Selarón, na Lapa, a peça aborda o ponto de vista dos relacionamentos nos últimos anos pré-internet do Brasil. Porque feita com delicadeza e com bastante qualidade, “Amores” convida a pensar sobre o hoje com argumentos fortes, além de emocionar e de divertir.

Transformado em uma espécie de apartamento, o palco das Sede das Companhias é lugar onde esses personagens se encontram. Como quadros pendurados na parede, o público está dentro desses lugares, observando calado o que acontece. Há três partes fundamentais na história escrita por Domingos de Oliveira. Na primeira, o funcionário público Pedro (Saulo Rodrigues) e sua esposa Telma (Ângela Câmara) estão obcecados pela vontade de ter um filho. As falas são apressadas, o volume da voz é bastante alto, o tom é quase agressivo, pontuando o desespero deles com o relógio da fertilidade. Assim, ao querer “coroar” o casamento com o nascimento de um filho, Pedro e Telma se mostram mais próximos da separação contraditoriamente. Na segunda, decepcionado com a vida e extremamente carente com as relações, o roteirista de TV e professor de filosofia Vieira (José Karini) vive o dilema de ganhar a sua filha Cíntia (Lívia Paiva), ajudando-a no trabalho e com os namoros, mas também de justamente perde-la através dos mesmos motivos. Também aqui as brigas pontuam conversas que falam principalmente de amor, mas também de liberdade e de segurança. Como uma flor que nasce nesse asfalto, a terceira história aparece, sendo a mais bonita e a que é esmagada mais terrivelmente. Em “Amores”, a doce Luiza (Ana Abbott) parece ter encontrado o amor de sua vida, sendo correspondida lindamente pelo pintor Rafael (Lucas Gouvêa), mas ambos descobrem que ele é soropositivo nessa época do mundo em que a AIDS era sinônimo de sentença de morte física além de social. Situada no fim dos anos 90, é interessante pensar que, quando “Amores” foi levada ao palco pela primeira vez, os figurinos dos personagens eram as mesmas roupas que o público usava na plateia. As músicas eram as mesmas, o Presidente do Brasil era o mesmo, as referências culturais podiam ser as mesmas. Menos de vinte anos depois, a história desses amigos e desses parentes que se encontram para contarem de si talvez não seria a mesma se tivesse acontecido hoje, mas identificar essa diferença e refletir sobre isso são tarefas do público e mérito da direção.

Os trabalhos de interpretação são excelentes, mas maior ainda é o resultado em conjunto. É visível que a concepção que ampara a estrutura do que é visto em um diálogo é a mesma que está presente em outro, apesar de se mostrar em nuances diferentes. Dessa forma, ao se movimentarem pela narrativa, os personagens exibem uma história que é coesa e coerente, que é rica em suas diferenças e potencialidades, que é inteligente pelos vários níveis de interpretação que possibilita. “Amores” envolve o público com alegria e jovialidade, cheio de pretensões conquistadas: queremos ser amigos desses personagens, leva-los para casa e também nós contar-lhes nossas histórias.

Com minucioso cenário (Carolina Sugahara) e figurino (Tarsila Takahashi), trilha sonora e sonorização de primeiríssima qualidade nos mínimos detalhes, “Amores” investe sólida e inteligentemente no realismo, estando aí o motivo primeiro pelo qual o público se envolve tão facilmente com a história e com quem a conta. Nesse sentido, do texto que é dito às interpretações, da movimentação às pausas, em cada parte e no todo, “Amores” é uma bela obra que os Desequilibrados oferecem em seu próprio aniversário. Ganham aplausos e que também vida longa!

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FICHA TÉCNICA
Texto: Domingos Oliveira
Direção: Ivan Sugahara
Elenco: Ana Abbott, Ângela Câmara, José Karini, Lívia Paiva, Lucas Gouvêa e Saulo Rodrigues
Assistência de Direção: Beatriz Bertu
Cenário: Carolina Sugahara
Figurino: Tarsila Takahashi
Iluminação: Renato Machado
Programação Visual: Luciano Cian
Fotografia: Dalton Valério
Direção de Produção: Marcelo Chaffim
Realização: Os Dezequilibrados

sábado, 19 de abril de 2014

E se elas fossem pra Moscou? (RJ)

Isabel Teixeira, Julia Bernat, Stella Rabello e Paulo Camacho
Foto: divulgação

O melhor de Christiane Jatahy

No futuro, saberemos que Christiane Jatany fez tanto para o teatro brasileiro quanto Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Ao fundar o teatro brasileiro moderno, na famosa encenação de “Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues, o diretor dividiu o palco em planos e ofereceu a plateia algo não só diferente do que já se tinha visto, mas algo bom para a história do espetáculo nacional. Há cinquenta anos, projeções de vídeo fazem parte do teatro no Brasil, mas ninguém usa de forma tão inteligente esse elemento como Christiane Jatahy. E “Se elas fossem pra Moscou?” é o seu melhor espetáculo também nesse sentido. Escrito a partir de “As três irmãs”, texto fundamental do russo Anton Tchekhov, a peça em cartaz na Sala Mezanino do Espaço Sesc Copacabana atualiza o texto original no que de mais rico esse conceito tem para oferecer. Com belíssimas interpretações de Isabel Teixeira, Stella Rabello e de Julia Bernat, a produção conta ainda com excelentes trabalhos de direção de arte (Marcelo Lipiani, Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues) e de direção de som (Denilson Campos).

O rompimento com o realismo psicológico de Tchekhov se dá na cena de abertura quando as três atrizes entram em cena, se sentam em um sofá bastante próximo do público e o encara nos olhos. No gênero que melhor lê o texto original, temos o espectador observando o mundo a partir do olhar das protagonistas (Irina, Masha e Olga). Na adaptação de Jatahy, a situação de fruição permanece positivamente a mesma: estamos observando o mundo através de Irina. A conversa banal de Tchekhov esconde uma crítica afiada à sociedade, aos valores, à hipocrisia da época. A conversa banal de Jatahy esconde vulcões em erupção. Moscou é, para os personagens de Tchekhov, a válvula de escape para não enfrentar a realidade. Jatahy, no entanto, não fala (quase) de saudade, mas questiona o que fazer para modificar a vida e por que isso é tão difícil. Nesse sentido, com aproximações e com distâncias da obra russa, “E se elas fossem para Moscou?” é um novo espetáculo, que independe do primeiro, o critica, o analisa e que, sob determinados aspectos, vai além.

No início da peça, Irina (Julia Bernat) está completando 20 anos no exato dia em que se lembra o primeiro ano de falecimento de seu pai. Olga (Isabel Teixeira), a filha mais velha, faz uma festa para Irina, a qual atendem Maria (Stella Rabello), a irmã do meio, como também outros convidados (o público). Entre o serviço de bolos e taças de champagne, as três irmãs se destroem mutuamente e também se abraçam como em toda boa família. Maria mostra-se primeiro: o público sabe que seu casamento está prestes a acabar e, diante dessa situação, ela tem dificuldade em se concentrar. A preocupação de Olga em cuidar dos outros revela, em seguida, um relapso em cuidar de si própria: a personagem está ficando velha, acima do peso, solitária e triste. Então, apresentados os conflitos menores, a peça de Jatahy volta a sua atenção para o seu conflito central: o de Irina. Olhando para o público, Julia Bernat informa o público qual é a questão por trás de sua personagem e, com isso, situa o espetáculo em um outro lugar conceitual.

“E se elas fossem pra Moscou?” propõe, entre outras questões, uma discussão sobre o real e o virtual. Sem ser mais uma peça “cabeçuda” (e pretensiosa) como tantas a que se assiste, essa tem a maturidade de não se esquecer de que é arte mesmo ao dissertar sobre um tema. Na peça, as atrizes estão corporalmente presentes diante do público. Ao mesmo tempo, um filme é realizado e exibido em outra sala. Nele, as atrizes estão presentes através de um jogo de luzes que chamamos de cinema. Ao discutir a presença (A pessoa nem sempre está onde o corpo está.), essa montagem se pergunta e questiona sobre virtual (o que está em vias de ser ou imanente na presença) e atual (aquilo que é resultante de uma confluência entre tempo e espaço e que não é sinônimo de contemporâneo), sobre real (o estruturado a partir de regras que são próximas do além da narrativa) e irreal (aquilo que foge dessas regras). E destaca a responsabilidade do ato de estar presente. Sem suportar a realidade, Irina de Jatahy adota uma válvula de escape bem mais profunda do que simplesmente falar dos anos vividos em Moscou, como a de Tchekhov.

É singular e definitivo o trabalho de interpretação de Isabel Teixeira, de Stella Rabello e de Julia Bernat. Corpo, voz, intenções, dosagem na expressão das emoções, relação com o público, com o elenco, com os técnicos, com o cenário, enfim, em tudo, os trabalhos de interpretação ratificam uma concepção que aproxima o real da narrativa do real além da peça. O resultado, que não é o hiperrealismo, é uma nova roupagem do realismo psicológico, ao qual Pinter, Mamet, e agora o mundialmente Tracy Letts (“Album de família”) se voltaram em suas obras mais contemporâneas.

É vibrante o resultado estético de “E se elas fossem pra Moscou?”. O cenário é rico em detalhes como se exige do bom teatro realista. A qualidade sonora, com minuciosa dosagem entre a sutileza presencial e a surdez sufocante, cada uma em seu momento claramente pensado, é destacável também. Os figurinos têm seu ponto alto na expressão do universo interior de Olga. A direção de movimento merece destaque pela forma como os técnicos que produzem o filme participam discretamente da cena até desaparecerem, embora estejam sempre presentes. Da mesma forma, a beleza cuidadosa com que os cenários entram e saem, expondo a realidade enquanto ela é questionada pontualmente.

Sobre o filme, que é exibido no mesmo horário da peça em outra sala, nota-se que Jatahy domina também a técnica cinematográfica, construindo uma obra paralela potente, mas apenas auxiliar a essa. Repleto de referências ao sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cuja filmografia vai do surrealismo ao existencialismo, a obra, em separado, consegue ter o mérito de apresentar uma outra e particular estrutura narrativa. No filme, é Maria a protagonista, enquanto à Irina um papel bem menor é legado.  Ao se relacionar com um velho amigo de infância, André (Paulo Camacho, no filme, ganha importância muito maior do que na peça.), ela reflete sobre os anos em que esteve casada e a possibilidade do fim desse ciclo. No mais, tudo o que for válido destacar na obra fílmica só o será em relação à peça, essa, sim, com vida independente e rica.

“E se elas fossem pra Moscou?” diverte, emociona e proporciona reflexão cada vez mais fundamental na contemporaneidade. O elevando apuro estético em nada compromete a profundidade da proposição teórica, ou vice-versa. Oferecendo o seu melhor, cada elemento participa da estrutura como um todo de forma articulada, vibrante, potente. É o melhor trabalho assinado por Christiane Jatahy, essa que não substitui Ziembinski, mas há de ser reconhecida como ao seu lado em tão vital e bem vinda importância ao teatro brasileiro.

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FICHA TÉCNICA:
A partir do texto “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov

Com Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabello

Adaptação, roteiro e edição ao vivo: Christiane Jatahy
Direção de fotografia e câmera ao vivo: Paulo Camacho
Concepção cenário –Christiane Jatahy e Marcelo Lipiani
Direção de arte e cenário – Marcelo Lipiani
Figurino – Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues
Direção Musical – Domenico Lancelotti
Iluminação – Paulo Camacho e Alessandro Boschini
Músico em cena – Rafael Rocha (stand in – Felipe Norkus)
Projeto de som – Denilson Campos
Diretor de palco – Thiago Katona
Coordenação técnica vídeo e pintura de arte cenário– Felipe Norkus
Mixagem ao vivo – Francisco Slade
Assistente de direção e interlocução artística – Fernanda Bond
Assistente de cenário e produção de objetos – Paula Vilela
Consultoria de vídeo – Julio Parente
Projeto Gráfico – Radiográfico
Direção de produção – Tatiana Garcias
Coordenação de produção – Henrique Mariano
Assistente de produção – Náshara Silveira


Elenco de apoio no filme: Paulo Camacho, Rafael Rocha, Felipe Norkus e Thiago Katona
Colaboração no roteiro – Isabel Teixeira, Julia Bernat, Stella Rabello e Paulo Camacho
Co-produção: Le CENTQUATRE-PARIS
Um projeto da Cia Vértice de Teatro
“E SE ELAS FOSSEM PARA MOSCOU?” é patrocinado pelo FATE – Fundo de Apoio ao Teatro da Secretaria Municipal de Cultura.

Cidadela (RJ)

Os personagens de "Cidadela"
Foto: divulgação

O desafio do teatro surrealista

“Cidadela” é uma feliz produção do Coletivo Arvorá que investe no teatro surrealista como raramente se vê. Em sua dramaturgia, assinada por Diego de Angeli, parte-se do realismo, para subverte-lo, nega-lo e, então, investir na pura imagem. Ao longo de cem minutos, o espectador não sabe exatamente o que está vendo, quem são esses personagens, onde e quando vivem, o que exatamente querem. Em um mundo motivado pelas ações e reações, ansioso por uma lógica que possa dar conta do que mais parece irracional, o desafio do texto é enorme, por isso, meritoso. Ao dirigir o próprio texto, Angeli sabiamente fez vir dele o melhor: o carisma das cores que prenda a atenção ao quadro que não se entende. O espetáculo cumpriu a primeira temporada na Sede das Cias, na escadaria do Selaron, na Lapa, Rio de Janeiro.

Do realismo, “Cidadela” não foge da estrutura familiar e da certeza que esses personagens têm de que, se pararem, virarão árvores. Pai (Frederico Demarca), Mãe (Juliana Longuinho), Filho (Guilherme Hinz) e Filha (Juliana Linhares) compõem uma família de músicos de perambulam sem pausa. Sabe-se que o Pai morreu e que a Filha terá um(a) filho(a) (Jefferson Zelma), mas, assim como quem já foi continua vivo, quem ainda não nasceu já está presente. O fato de um dos personagens avistar um ou mais seres humanos pode modificar a vida do grupo, mas pode não. Uma cidade pode ser um ajuntamento de seres humanos, pode ser uma reunião de árvores também. Nesses últimos pontos, “Cidadela” subverte o realismo e, como se disse, investe no onírico em sua dramaturgia. Os diálogos não têm sempre uma lógica enunciativa, os sons das palavras segue o mesmo não-padrão positivamente. Em sua estrutura, a peça se mostra coesa e coerente.

Na encenação, a inexpressividade do elenco incomoda, mas amarra uma concepção que se mostra sóbria e firme. No momento em que almeja conceitualmente subverter a lógica realista, as reações devem desaparecer, privilegiando as ações. Dessa forma, os personagens agem não a partir de situações ou de outras ações, mas por impulsos da ordem de suas naturezas. Frederico Demarca tem um participação pequena, mas cheia de força. Juliana Longuinho traz traços firmes e sólidos e Juliana Linhares preenche “Cidadela” com graça e muito carisma. Sobre Linhares, há que se ressaltar a belíssima voz nos momentos de canto.

Os figurinos de Bruna Lobo e a iluminação de João Gioia e de Wagner Azevedo são o ponto alto de “Cidadela”. Coberto de variações do mesmo tema, o quadro final parece envolver o espectador em uma realidade corretamente paralela, que cita o mundo lá fora, mas para apresentar um escape a ele. Banhado pelos tons terra, o espectador é iluminado ora pela luz, ora pela escuridão em uma edição de cenas que torna o seu conteúdo ainda mais interessante e positivo.

A melhor obra surrealista é aquela que não é bela, justamente porque esse gênero artístico discute o papel da harmonia na tese hegeliana. Nesse sentido, “Cidadela” não é uma peça de entretenimento, ilustrativa, figurativa ou com uma narração tradicional. Dessa forma, os elogios aqui feitos são resultados de uma reflexão, mas mais ainda pela qualidade dos argumentos na sugestão desse olhar. Não há dúvidas de que, em tudo, houve uma minuciosa proposição. Parabéns.

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FICHA TÉCNICA
ELENCO: Frederico Demarca, Guilherme Hinz, Jefferson Zelma, Juliana Linhares e Juliana Longuinho
TEXTO E DIREÇÃO: Diego de Angeli
DIREÇÃO MUSICAL: Frederico Demarca
PREPARAÇÃO VOCAL: Juliana Linhares
TRILHA SONORA ORIGINAL: Frederico Demarca
PREPARAÇÃO CORPORAL: Juliana Longuinho
DIREÇÃO DE MOVIMENTO: Vanessa Garcia
ILUMINAÇÃO: João Gioia e Wagner Azevedo
FIGURINO: Bruna Lobo
CONCEPÇÃO ESPACIAL: Diego de Angeli
CONSULTORIA CENOGRÁFICA: Tomás Fage
CENOTÉCNICO: André dos Santos Salles
PROGRAMAÇÃO VISUAL: Cecilia Mascheroni
FOTOGRAFIAS: Clarice Lissovsky
COLABORAÇÃO ARTÍSTICA: Helena Maria Cosi e Rodrigo Carrijo
MARKETING DIGITAL: Jefferson Zelma
DIRETOR DE PRODUÇÃO: Guilherme Hinz
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Samia Oliveira
REALIZAÇÃO E IDEALIZAÇÃO: Coletivo Arvorá

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O lugar do passado (RJ)

Wilmar Martins em cena
Foto: divulgação

A boa essência do teatro

“O lugar do passado” reúne os melhores valores do teatro: um ator, em cena, interpretando um personagem e, através dele, contando uma história. Dirigido por Daniel Archangelo, o monólogo interpretado por Wilmar Amaral parte de dois contos célebres da literatura brasileira: “Noite de almirante”, de Machado de Assis; e “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal Machado. Em cartaz no teatro Sesc Casa da Gávea, a peça tem excelente interpretação e direção, mas, sem dúvidas, um brilhante trabalho de desenho de luz assinado pelo diretor.

Nas duas histórias, um homem passou muito tempo vivendo a recordação da amada que ficou no passado. Um deles, ainda garoto, viu uma parte do corpo dela e, depois, partiu para o futuro de onde só saiu quando na aposentadoria. O outro foi em viagem, deixando-a em terra e, agora, vem para revê-la. Na cabeça de cada um, a lembrança idealizada, o sonho alimentado, o desejo ansioso por ser realizado. E, consequentemente, a provável frustração. Essa contradição imanente, jamais escondida aos olhos do público, mas tampouco anunciada, é o que faz de “O lugar do passado” ter um texto tão humano. Positivamente, tem-se aqui um homem falando sobre homens para homens.

A interpretação de Wilmar Amaral é tocante. A maquiagem sóbria não esconde as rugas e o cabelo branco do intérprete, ratificando o realismo psicológico que melhor nos ajudam a ler os contos originais aqui transpostos. Os movimentos lentos, a retórica perfeita, o tom de voz ágil mas ainda delicado valorizam a beleza da literatura do entre séculos. O sabor das palavras entretinha o público leitor assim como seus significados, daí a descrição funcionar como recurso argumentativo da história que se conta. A adaptação de Amaral da literatura para o teatro valoriza as duas artes positivamente para o público.

A direção de Daniel Archangelo faz correr o ritmo no texto, trabalhando com as imagens que as palavras podem construir (e constroem). Por outro lado, faz alentar os tempos no gestual, criando imagens com o cenário e com a luz cujas belezas permitem respirar, fruir as narrativas, se identificar e responder. Os detalhes são minuciosos e a estrutura, apesar de aparentemente simples, é complexa, e positiva porque, assim, representa bem o homem, esse também um animal não superficial.

O terno cinza com colete equilibra bem o tom madeira expresso na mala, no banco e na árvore. A superfície seca do papel pode dar a ver a aridez das vidas que se abstém do amor até o limite. E também pode representar a velhice para o qual se dirigiu o marinheiro e onde chegou o funcionário público. O jogo de luzes de Archangelo cria quadros de beleza singular que oxigenam a história e lhe dá impulso, aumentando o seu valor já alto.

Há que se saber que Wilmar Amaral, cujo trabalho interpretativo foi elogiado, se tornou ator há menos de dez anos apesar de sua idade já avançada. Considerando as histórias de coragem contadas em “O lugar do passado”, essa informação permanece não sendo essencial, mas, sem dúvida, pode ser uma preciosa cereja. Aplausos!

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Ficha Técnica
Seleção de textos, adaptação e atuação: Wilmar Amaral
Direção: Daniel Archangelo 
Assistente de direção: Ana Cecília Reis
Trilha sonora: Wilmar Amaral
Cenografia: Carlos Augusto Campos 
Iluminação: Daniel Archangelo
Produção: Wilmar Amaral Produções Culturais Ltda.

Concreto armado (RJ)

A nova peça do Teatro Inominável
Foto: Paula Kossatz

Pretensioso

“Concreto armado” se perde em muitas histórias, intenções não resolvidas, boas interpretações mal posicionadas em uma dramaturgia pretensiosa negativamente. De um lado, os diálogos poéticos tiram o foco das cenas que levam a história para adiante. De outro, a concepção de direção se apresenta desequilibrada em cenas justapostas, fazendo com que a aparência de várias peças dentro de uma se fortaleça ao longo da apresentação. Em cartaz no Teatro de Arena do Espaço Sesc Copacabana, a nova peça do Teatro Inominável tem texto e direção de Diogo Liberano. Vale a pena conferir o belo trabalho de Gunnar Borges e de Marina Vianna ao lado dos já bem esperados bons trabalhos de Adassa Martins e de Laura Nielsen.

Não é difícil perceber que “Concreto armado” fala sobre as oposições entre o concreto e o perecível, entre o oxigênio que vivifica, mas também corrói, entre o preservar e o destruir que fazem da vida ser representada de forma complexa nesse tipo de teatro positivamente. Também é fácil identificar que a narrativa se posiciona de forma crítica em relação à realização da Copa de 2014, ou melhor, em relação às reformas no Estádio do Maracanã que elitizaram o lugar, isso visto como um símbolo para a divisão cada vez mais acirrada de classes nas obras urbanas dos governos estadual e municipal no Rio de Janeiro. O problema é: se o assunto e o tema da peça são tão acessíveis, por que tantos rodeios poéticos?

Na narrativa escrita por Diogo Liberano (ao lado de Keli Freitas), as cenas iniciais - em que uma professora coordena a abertura de um grupo de estudo na pós-graduação em urbanismo em uma universidade - vão lançando várias questões à audiência. Em seguida, temos o universo particular de cada um dos alunos participantes do grupo, o que também vai abrindo plots narrativos (que precisarão ser fechados). A organização não-linear exige que o espectador, que ainda está identificando sobre o quê é o espetáculo, também tenha que organizar a história em sua cabeça para frui-la. Por fim, a alternância de tons (ora temos cenas fechadas em si, ora a professora lê os seus diários para o público) avisa que a peça tem, em si só, jeitos diferentes de se relacionar com a plateia. É só quase no final da peça que se percebe com clareza o pressuposto elementar: o Maracanã pode ruir. Como ponto de partida para uma história, essa imagem possível é válida, é interessante e é positiva ficcionalmente falando. No entanto, se ela aparece só no final, corre o risco de não ter bases suficientes na narrativa que lhe assegurem o direito de bem existir, pois, de antemão, ninguém realmente acredita que o Maracanã possa vir a ruir (assim como o Titanic, cuja impressão de invencibilidade tornou a tragédia ainda maior). Em outras palavras, cenas belíssimas como a de Riane (Adassa Martins) e Virgília (Flávia Naves) nem fundamentam o todo da história, nem se estruturam independentemente, de forma que sobram infelizmente na criatividade já reconhecida e elogiada de Liberano.

Adassa Martins brilha como era esperado em “Concreto armado”, principalmente em uma cena em que a atriz canta à capela. Construindo uma personagem que não consegue se situar nem a favor, nem contra às coisas que vê, o tom monocórdio ganha sentido e vida em um preciosismo delicado. Flávia Naves, Laura Nielsen e Marina Viana apresentam trabalhos cheios de potência em construções mais sutis, mas não menos fortes. Gunnar Borges surpreende em primeiro trabalho realmente relevante. A forma como o ator constrói uma figura sensual, complexa, forte e carismática através dos ótimos usos do tempo e das pausas, do desenho corporal e da excelente movimentação pelo espaço fazem desse personagem um ponto marcante.

A direção de Diogo Liberano não apresenta uma concepção sólida, mas uma cabaleante indecisão sobre como contar qual história. Não bastando os diálogos, co-escritos por ele, o diretor escreve cenas a partir de marcações histriônicas que, como o texto, pretendem coisas que depois não conseguirão oferecer. O quadro final, por exemplo, resume bem essa hipótese: o guarda-chuva é um símbolo, a paisagem estampada no guarda-chuva é outro símbolo, a água que os personagens jogam nesse guarda-chuva e que depois cairá sobre o palco são outros símbolos. O girar é outro símbolo. E, assim, “Concreto armado” é uma justaposição de símbolos, apenas alguns bem utilizados.

A barra de ferro, o cenário circular e em rampas, a planta alocada em uma beirada, o figurino com variações do mesmo tema são outros símbolos que podem ser muitas coisas e, em “Concreto armado”, também podem não ser nada. Muito diferente de “Sinfonia sonho” e de “Maravilhoso”, essa produção expressa a imaturidade que até Diogo Liberano tem o direito de ter. 

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FICHA TÉCNICA
Direção: Diogo Liberano
Dramaturgia: Diogo Liberano e Keli Freitas

Elenco: Adassa Martins (Riane), Andrêas Gatto (Paolo), Caroline Helena (Antonisia), Flávia Naves (Virgília), Gunnar Borges (Alexandre), Laura Nielsen (Glória) e Marina Vianna (Manuela).

Diretora Assistente: Marcela Andrade
Assistência de Direção: Taís Feijó
Direção Musical: Luciano Corrêa
Cenário: Elsa Romero
Figurinos: Marina Dalgalarrondo
Iluminação: Renato Machado
Assistência de Iluminação: Lívia Ataíde
Fotografia: Paula Kossatz
Vídeo: Philippe Baptiste
Social Media: Teo Pasquini
Programação Visual: Francisco Barcelos
Artistas-Pesquisadores (UFRJ): Bruno Marcos e Natã Lamego
Produção: Dani Carvalho e Tamires Nascimento
Realização: Teatro Inominável

Pequenas imperfeições (RJ)

Luciana Fontenelle e Diego Braga
Foto: divulgação

A repetição inadvertida da situação inicial

Em “Pequenas imperfeições”, temos a história de dois personagens-atores que estão ensaiando uma peça, mas também o início de suas carreiras. Interpretados pelos atores Diego Braga e Luciana Fontenelle, os personagens-atores estão sozinhos, sem direção, sem um texto, mas querendo fazer algo novo, algo que chame a atenção da crítica, da classe, da fama. Quem é de teatro vai identificar  facilmente o desejo de fazer algo relevante e a prece por ser reconhecido nessa montagem que tem supervisão de Letícia Guimarães e está em cartaz às sextas-feiras no Voz Plena em Copacabana. O problema é que, aos poucos, vai-se percebendo que o exagero das construções interpretativas não leva propriamente para espaço algum, pois não há uma curva dramática que sustente a audiência para além dos momentos iniciais de reconhecimento da história infelizmente.

Tudo é muito exagerado. Os movimentos, as expressões, as intenções, os volumes da voz, as direções de olhar, tudo tem muita força. No início, o efeito é positivo, porque pode querer expressar a gana desses personagens em vencer na vida, em obter o sucesso que almejam e pelo qual parecem se esforçar apesar do desamparo. Na dramaturgia, eles estão criando um espetáculo e já estão cansados de ensaiar. Nota-se uma relação de poder entre o personagem de Diego Braga em relação ao interpretado por Luciana Fontenelle, mas isso também não evolui. Apreendida a situação inicial, o público acaba por ficar como os personagens: desolado.

São visíveis os bons trabalhos de corpo e de voz em Braga e em Fontenelle na viabilização dos personagens-atores. Dentro do proposto, “Pequenas imperfeições” acaba por exibir um bom material de atuação para quem for ver a peça. O senão fica para o fato de que, como uma estrutura cênico-narrativa, a peça acaba por não funcionar, pois o ritmo é regular, monótono e sem justificativas claras.

“Pequenas imperfeições” positivamente se passa em uma sala de ensaios. O espaço, uma sala de aula (e de apresentações) da Voz Plena, serve bem para o que a narrativa propõe. As carências de luz e de caixa cênica, a disposição das cadeiras, o piano ao fundo, todos os elementos estéticos contribuem eficientemente para a narrativa. No entanto, o figurino contribui para o fortalecimento de uma potência que acaba não se estabelecendo. O personagem de Diego Braga não se desgrenha, mas mantém-se com a roupa inicial quase em modificações.

O título “Pequenas imperfeições” sugere um tom humano para o encontro desses dois personagens, recuperando um desejo do público para que eles consigam o que querem. Nesse sentido, a relação da plateia com os personagens acaba por ser próxima da com os intérpretes. Em uma boa narrativa, o herói parte em busca dos seus objetivos ou ao caminhar é levado. Nessa história, esses personagens ficam no desejo. É uma pena.

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Ficha técnica:
Supervisão Letícia Guimarães
Texto e Atuação: Diego Braga e Luciana Fontenelle
Assessoria de Imprensa: Diego Braga
Produção: Cia Umbigo de Édipo
Operação de som e luz: Julio Angelo
Fotos: Lara Barboza e Julio Angelo
Apoio: Voz Plena e A gata de biscuit

sábado, 12 de abril de 2014

À sombra das chuteiras imortais (RJ)

"À sombra das chutarias imortais" se passa na Copa de 1958
Foto: divulgação

Uma justa homenagem ao amor pelo futebol

“À sombra das chuteiras imortais”, de Henrique Tavares a partir de Nelson Rodrigues, chega aos palcos cariocas para falar de Copa do Mundo com a certeza adulta de que ela realmente acontecerá. Em paralelo a todos os problemas que o país vêm enfrentando por causa e apesar do maior evento esportivo do planeta, o povo quer a Copa, precisa da Copa, anseia pela Copa à revelia do que a pseudo-intelectualidade venha a dizer sobre o assunto. Na dramaturgia de Tavares, o prólogo é a narração do jogo final de 1950, em que o Brasil perdeu para o Uruguai, jogando no Maracanã. Por melhor que seja o currículo lattes, não há brasileiro que não escute aquele jogo e não se entristeça com o resultado. Daí veio a sanha de vencer em 54, na Suíça, e, depois, em 58, na Suécia. Em um tempo em que o jogo só chegava aqui dias depois e que os resultados vinham pelos jornais, a linguagem do narrador e do cronista empata com o resultado das partidas já conhecido. Se o futebol era uma arte, a narração e a crônica futebolística eram também poesia. “À sombra das chuteiras imortais”, em cartaz no Teatro do Sesi, no centro do Rio de Janeiro, é uma homenagem a isso. Uma bela homenagem ao futebol, uma das maiores paixões do brasileiro.

O texto é uma adaptação para teatro das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, tendo, como trama central, o conto “O grande dia de Otacílio e Odete”, além de trechos das crônicas “Complexo de vira-latas”, “O craque na capelinha” e “O mais belo futebol da Terra”. Na história, Otacílio (Gláucio Gomes) e Odete (Ingrid Conte) são recém casados quando começa a Copa de 1958. Antes da união, ele havia procurado uma cartomante que lhe dissera que ele seria traído por uma loira. Uma segunda consultora, tempos depois, lhe prevenira da traição por uma morena. Odete é morena e, assim, o casamento aconteceu com desconfianças, mas não só no que diz respeito ao enlace. No brilhantismo do texto rodrigueano, a honra de homem casado divide aqui espaço com a cabeça de torcedor brasileiro, pois, oito anos depois da Copa de 50, ninguém poderia ter certeza de que o Brasil venceria na Suécia. A notícia de que era traído chega nas mãos de Otacílio na véspera do jogo final. Qual verdade importa mais para esse homem: a traição da esposa ou a vitória na Copa? Sem medo de dar às palavras o brilho que elas merecem, a direção de Tavares impõe um ritmo lento e levemente irregular que estrutura a trama com potência e movimenta a atenção para o final positivamente. A cada nova cena, a dúvida sobre as duas questões vai se tornando a verdadeira protagonista e esse é o maior mérito do texto visto em cena.

Os atores dividem seus trabalhos de interpretação entre os personagens e os narradores. As quebras de um para o outro apresentam-se bastante marcadas no início e se mantêm assim até o final, o que indica uma concepção de direção que é bem articulada. A complexidade de Otacílio não se destaca felizmente da superficialidade dos demais personagens, esses joguetes narrativos de Nelson e de Tavares. A narrativa é, por isso, equilibrada. Vemos cada personagem em seu pequeno universo, entendemos a história e nos interessamos pelo final: têm-se aí marcas de uma história bem contada.

Há quem vá supor que o furor da vitória de 1958 tirou a atenção do Brasil das dívidas internacionais que Jucelino fazia para construir Brasília. Ou que contribuiu para a eleição de Jânio Quadros. Perversa ou só alienante, a Copa do Mundo une os brasileiros na imensidão do seu tamanho e na diversidade de suas preferências esportivas e de entretenimento. “À sombra das chuteiras imortais” tem o seu lugar garantido nas reflexões e nos aplausos do ano devidamente.

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Ficha Técnica:
Textos de Nelson Rodrigues
Adaptação e Direção Henrique Tavares
Cenografia José Dias
Iluminação Aurélio de Simoni
Figurinos Patricia Muniz
Assistente de Direção Alfredo Boneff
Realização Janeiro Produções

Elenco:
Gláucio Gomes (Otacílio)
Ingrid Conte (Odete)
Anderson Cunha (Cunha)
Crica Rodrigues (Cartomante)
César Amorim (Tio e Homem da Capelinha)

Febril (RJ)

A nova adaptação de "O idiota", de Dostoiévski
Foto: divulgação

Sobre a mudança de eixo

“Febril” é mais uma versão de “O idiota”, de Dostoiévski, que se apresenta no Brasil (seguida, principalmente, da versão de Cibele Forjaz e da de Eimuntas Nekrosius). A produção atual tem méritos em explorar um eixo diferente da narrativa do que o que foi escrito pelo romancista russo, o que justificaria o título diverso, mas apenas esse mérito. Se, na versão inicial, o Príncipe Míchkin é o protagonista (a partir de quem se vê o mundo), aqui a adaptação de Pedro Emanuel quer situar Nastácia Filíppovna como eixo. O desafio é insólito, pois todos os personagens só existem enquanto resultado de uma reação a Míchkin na obra original, ou seja, Fillípovna, como os demais, não têm forças dramatúrgicas que lhe garantam sozinha a existência. Há grandes trabalhos de Pedro Casarin como Gánia e de Julia Mendes como Fillíppovna, mas os demais são ou medianos ou ruins infelizmente. O espetáculo cumpriu temporada no Parque das Ruínas e é mais uma produção da Cia em Obra.

O contexto central da obra de Dostoiévski é a chegada de Míchkin (João Lucas Romero) que ficou por anos longe da Rússia, curando-se de epilepsia (a doença era chamada de idiotia no século XIX quando o romance foi escrito). De grande pureza e larga bondade, diante dele, todos os personagens deixarão ver seus aspectos negativos. Míchkin nada mais é, assim, que um catalisador, isto é, alguém que faz vir à luz o que há de pior nos outros. Fillípovna (Mendes) é uma mulher bonita que encanta os homens facilmente. Além de um primeiro (que é apenas citado na versão de Pedro Emanuel), dois homens brigam por ela: Rogójin (Zeca Richa) e Gánia (Casarin). Um é forte e másculo, o outro é franzino e ardiloso. Vencerá aquele que tiver mais dinheiro. O mesmo tipo de contraste existe nos personagens femininos. No exato oposto de Fillípovna, está Aglaya, não menos ambiciosa, mas aparentemente mais pura. No centro de tudo está Míchkin, odeiado e amado por todos. Ao eleger um personagem que não o protagonista original, caem por terra as oposições e a complexidade da obra de Dostoiévski. Para isso fazer sentido, exige-se a criação de uma história que contextualize Fillípovna e re-hierarquize todos os sentidos de “O idiota” a partir de novos parâmetros. Porque não dá cabo desse enorme desafio, “Febril” acaba por não ficar bem nem em Dostoiévski, nem em Pedro Emanuel. 

Faltam rugas nos atores que não sejam maquiagens ou cabelos coloridos de branco. Zeca Richa (Rogójin), Rubi Schumacher (Varvara Ardaliónovna), Eduardo Parreira (General Iepantchin) e Ana Luiza Cunha (Generala Lisavieta Prokofievna) são mais nervosos do que profundos em seus trabalhos de interpretação, deixando a peça com um tom mais ilustrativo do que propriamente narrativo. Pedro Casarin e Julia Mendes, por outro lado, conseguem bons resultados, fazendo ver as indecisões no caráter de Gánia e a elegância de Fillípovna antes de qualquer outra coisa. João Lucas Romero e Paula Valente apresentam bons trabalhos, mas sem destaques.

“Febril” acontece em frente a uma instalação de Tomás Ribas que contribui como ponto de partida para a narrativa de “O idiota” muito além do vermelho “febril” de sua forma. Do ponto de vista do público, a moldura dentro da moldura dentro da moldura infinitamente situa o homem no interior de si mesmo conceitualmente, o que favorece a narrativa, pois esse é o lugar de onde o leitor vê o mundo do(a) protagonista. A peça tem também um ótimo uso da trilha sonora, essa composta por canções eslavas e russas, cujas sonoridades são positivamente contribuintes para a estrutura da narrativa cênica.

Esse é o terceiro espetáculo da Cia em Obra, grupo que, antes de qualquer outra coisa, tem o mérito de manter-se grupo e esse disposto a por seu trabalho a serviço da experimentação, da descoberta e da pesquisa. Merece atenção. 

*

FICHA TÉCNICA
Direção e Adaptação: Pedro Emanuel
Supervisão de Direção: Fábio Ferreira

Elenco: Ana Luiza Cunha, Eduardo Parreira, João Lucas Romero, Julia Mendes, Mario Terra, Paula Valente, Pedro Casarin, Rubi Schumacher e Zeca Richa.

Banda ao Vivo: Pedrinhu Junqueira (guitarra), Gabriel Balleste (baixo), Silvan Galvão (percussão), Gui Stutz (trumpete) e Henry Schroy (contrabaixo e teclado).
Iluminação: João Gioia
Cenário: Carlos Augusto Campos
Instalação Cênica: Tomás Ribas
Figurino: Tiago Ribeiro
Composição Original das Músicas: Banda Irmãos Fiodorov
Direção Musical: Pedrinhu Junqueira
Direção de Movimento: Rafaela Amodeo
Maquiagem: Ludmila Rocha
Pesquisa do Autor: Marcos Aurélio Derizans
Consultoria de Música Tradicional Eslava: Pablo Emanuel
Assistência de Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Direção de Produção: Mariana Guimarães Nicolas e Pamela Côto
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: ZR Mosaico
Fotos: Chico Monjellos
Apoio: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas
Produção: L7 Produções Artísticas
Realização: Cia Em Obra

Uma vida boa (RJ)

Julianne Trevisol, Daniel Chagas e Amanda Vides Veras em cena
Foto: divulgação

Excelentes interpretações em excelente adaptação

“Uma vida boa” tem belíssimas interpretações em uma preciosa tradução para o teatro do que já foi um livro (“All she wanted”, de 1993) e um filme (“Boys don`t cry”, de 1999) muito conhecidos. Na adaptação para teatro de Rafael Primot, B (Amanda Vides Veras) é um homem que nasceu em um corpo de mulher, mas, tentando viver suas relações heterossexuais, se apaixona por uma menina que, como a maioria, nasceu em corpo de menina. B e L (Julianne Trevisol) se conheceram através de um amigo em comum, J (Daniel Chagas), que, também como a maioria, nasceu em corpo de homem. Desde aí, percebe-se que o mais importante dessa narrativa é justamente refletir sobre a relação do ser humano consigo próprio e, depois, dele com a sociedade. A peça é uma bela história contada no Teatro do Oi Futuro Flamengo e que vale a pena ser vista.

Um conflito nasce a partir do encontro de forças opostas. Individualmente, os três personagens, B, L e J, vivem conflitos internos. J combate o tédio da vida na cidade pequena, L sabe que sua voz não é valorizada nos pequenos shows locais que faz e B finge estar acostumado em abandonar relacionamentos quando se descobre que, na verdade, ele é uma mulher. Porque bastante bem estruturados em uma narrativa não linear que dá tempo para o público fruir o ambiente de cada uma das três figuras, os conflitos individuais darão profundidade para a trama central de “Uma vida boa”. A questão é: depois de todos saberem que B é mulher, ele será feliz com L enfim? Na arena, estão os preconceitos da cidade pequena, a complexidade de um tema como a transexualidade e, por fim, o crime. Primot respeita o final da história como nos originais e positivamente tenta equilibrar os personagens dentro do que lhe é possível, mas seu maior mérito é desviar a atenção do espectador do que é sentido fechado (as resoluções da trama) e privilegiar a discussão, valorizando o que fica em aberto, isto é, considerando o amor entre B e L, tudo aquilo que poderia ter sido, não fosse o que foi.

“Uma vida boa” é um espetáculo romântico no que diz respeito ao seu gênero cênico narrativo. A história contada no livro, no filme e agora na peça tem várias inverossimilhanças (que aliás é justamente o que lhe situa no real além da narrativa) e boas doses de ideal e superficialidades. São os elementos formais que dizem mais sobre os personagens do que eles propriamente. Dos três, apenas L tem uma atitude surpreendente, de forma que os demais fazem o que deles é esperado. Nesse sentido, a peça se estrutura a partir de um ritmo que precisa ser fluente, pois ela é contada a partir de fatos e não de retórica. Em todos os momentos em que a direção de Diogo Liberano valoriza o teatro mais que a narrativa, o ritmo cai. Quando, por exemplo, um personagem grita várias vezes o nome de outro de formas diferentes, é como se Liberano lembrasse o espectador de que ao que ele está assistindo é apenas teatro. Os dois melhores momentos da peça são quando quase nada acontece: um monólogo de B e a cena final de B e de L. Nesses momentos, a direção, que está obviamente sempre presente, parece querer desaparecer e, assim, fazer brilhar a história positivamente. O quadro geral é meritoso.

Daniel Chagas e Julianne Trevisol têm personagens que lhes exigem pouco, mas, dadas as devidas proporções, oferecem resultado final tão bom quanto o trabalho de Amanda Vides Veras, essa com mais desafios a vencer. Vera expõe o ser humano em primeiro lugar, ao lado de Primot e de Liberano, no jeito como olha, no modo como os ombros estão postos e, principalmente, no jeito como o quadril equilibra toda a figura cênica de B que é a protagonista nesse espetáculo. O trabalho é brilhante.

O tema da transexualidade, diferente da hetero e da homossexualidade, é uma questão primeira de identidade. Enquanto o homossexual se vê diferente dos demais, o transexual se vê diferente de si próprio. Se o individualismo que a contemporaneidade tem trazido, com cada vez mais um número maior de pessoas solitárias e enfurnadas nos seus próprios apartamentos, trouxer algo de bom, que seja então para apaziguar o embate interno do homem consigo mesmo. Que “Uma vida boa” tenha muito sucesso! Viva Pablo Sanábio!

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Ficha técnica
TEXTO___RAFAEL PRIMOT
DIREÇÃO___DIOGO LIBERANO
COLABORAÇÃO ___LÉO MOREIRA

ELENCO:
AMANDA VIDES VERAS, JULIANNE TREVISOL E DANIEL CHAGAS

TRILHA SONORA ORIGINAL___DIOGO AHMED PEREIRA
ILUMINAÇÃO___DANIELA SANCHEZ
FIGURINOS___BRUNO PERLATTO
CENÁRIO___BRUNELLA PROVVIDENTE
DIREÇÃO DE MOVIMENTO ___JOÃO PEDRO
PATROCÍNIO ___ OI E SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA, ATRAVÉS DA LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À CULTURA
APOIO CULTURAL ___ OI FUTURO
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO___ANA LÉLIS E PAULA ROLLO
PRODUÇÃO EXECUTIVA ___ BRUNO MARIOZZ
PRODUTORES ASSOCIADOS___PABLO SANÁBIO, AMANDA VIDES VERAS E ANA LÉLIS
IDEALIZAÇÃO___PABLO SANÁBIO

quarta-feira, 9 de abril de 2014

8o Prêmio APTR de Teatro

O ator curitibano Ary Fontoura homenageado pela APTR
através de discurso proferido pelos atores
 Marco Nanini e Patrícia Pilar
Foto: divulgação

Prêmio APTR de Teatro 2013

Ontem à noite, no Centro Cultural João Nogueira - Imperator - no Méier, na zona norte do Rio, aconteceu a premiação do 8o prêmio APTR de Teatro conferido pela Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro. Foram jurados Angela de Castro Reis, Barbara Heliodora, Daniel Schenker, Gilberto Bartholo, Lionel Fischer, Macksen Luis, Mauro Ferreira, Rafael Teixeira, Reinaldo Ferreira, Tânia Brandão e eu. O homenageado especial da noite foi o ator Ary Fontoura.

Abaixo a lista dos indicados e premiados do ano de 2013.



MELHOR ILUMINAÇÃO:
Luiz Paulo Nenén - Incêndios
Tomás Ribas - Moi Lui
Maneco Quinderé - Elis, A musical
Maneco Quinderé - Jim - VENCEDOR


MELHOR CENÁRIO:
Analu Prestes - Emily
Aurora dos Campos - Conselho de classe
Bia Junqueira - As mulheres de Grey Gardens
Fernando Mello da Costa - Incêndios - VENCEDOR


MELHOR FIGURINO
Antônio Guedes - O médico e o monstro
Beth Filipecki - À beira do abismo me cresceram asas
Rita Murtinho - Emily
Tanara Schonardie - A importância de ser perfeito - VENCEDORA


MELHOR MÚSICA
Edu Lobo - Deixa que eu te ame
Paulo Nogueira - Como vencer na vida sem fazer força
Tato Taborda - Incêndios
Rico Viana - Jim - VENCEDOR


MELHOR AUTOR
Diogo Liberano - Maravilhoso
Júlia Spadaccini - Um dia qualquer
Jô Bilac - Fluxorama
Jô Bilac - Conselho de classe - VENCEDOR


MELHOR DIRETOR
Aderbal Freire-Filho - Incêndios
Daniel Herz - A importância de ser perfeito
Enrique Duaz - Cine_Monstro
Bel Garcia e Susana Ribeiro - Conselho de classe - VENCEDORAS


CATEGORIA ESPECIAL
Casa da Gávea - pelos 20 anos do Ciclo de Leituras Dramatizadas
José Dias - pela publicação do livro Teatros do Rio, Editora Funarte
Leandro Soares - pela tradução e adaptação do texto A importância de ser perfeito, de Oscar Wilde
Camilla Amado - pelos 60 anos de carreira dedicados ao teatro - VENCEDORA


MELHOR ATOR EM PAPEL COADJUVANTE
André Loddi - Como vencer na vida sem fazer força
Isaac Bernat - Incêndios
Márcio Vito - Incêndios
George Sauma - A importância de ser perfeito - VENCEDOR


MELHOR ATRIZ EM PAPEL COADJUVANTE
Adriana Garambone - Como vencer na vida sem fazer força
Sueli Franco - As mulheres de Grey Gardens
Kelzy Ecard - Incêndios - VENCEDORA
Clarisse Derzié Luz - À beira do abismo me cresceram asas - VENCEDORA


ATOR EM PAPEL PROTAGONISTA
Antônio Fagundes - Vermelho
Marcelo Serrado - Rain Man
Emílio Dantas - Cazuza, pro dia nascer feliz
César Augusto - Conselho de classe
Marcelo Olinto - Conselho de classe - VENCEDOR


ATRIZ EM PAPEL PROTAGONISTA
Bárbara Paz - Vênus em visom
Camilla Amado - O lugar escuro
Laila Garin - Elis, A musical
Marieta Severo - Incêndios - VENCEDORA


MELHOR ESPETÁCULO
Cine_Monstro
Conselho de classe
Quem tem medo de Virgínia Woolf?
Incêndios - VENCEDOR


MELHOR PRODUÇÃO (prêmio escolhido pela Associação)
Cia dos Atores e Nevaxa Produções - Conselho de Classe
Fábrica de Eventos - Nem mesmo todo o oceano
Primeira Oágina Produções e o Menino e as Ideias - Edukators
Primeira Página Produções, Teatro Poeira e E-Merge - Incêndios
Oz Produções Artísticas - As mulheres de Grey Gardens
Aventura Entretenimento e Buenos Dias Produções - Elis, A musical - VENCEDORAS

Parabéns a todos os indicados e premiados! Parabéns à APTR! Feliz 2014!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Oleanna (RJ)

Marcos Breda e Luciana Fávero em excelente espetáculo
Foto: Mônica Vilela

Um espetáculo essencial

“Oleanna” é um texto brilhante escrito pelo dramaturgo americano David Mamet (1947) no início dos anos 90 e que, agora, tem versão brasileira dirigida por Gustavo Paso. No elenco, Luciana Fávero interpreta uma aluna de curso superior na faculdade Oleanna que vai até o gabinete do mestre para conversar com ele sobre suas notas baixas. Se ela for reprovada, terá que abandonar os estudos e, em questão, está todo o esforço empregado para estar matriculada onde está. Do outro lado, Marcos Breda e Miwa Yanagizawa se alternam no papel de professor(a), ele interpretando um personagem heterossexual e ela uma homossexual, ambos casados e, no momento, totalmente dedicados à compra de uma nova casa para a sua família. O texto de Mamet é sobre poder e sobre incomunicabilidade, mas a montagem de Paso, pela alternância dos intérpretes do professor  ao longo da temporada, tematizam também os pontos que estruturam a “verdade” e os nossos preconceitos. Em cartaz no Teatro Glaucio Gill, um espetáculo essencial na programação de teatro carioca.

Duas coisas ficam claras na primeira cena: que a aluna não é boa o suficiente em aprender a lição e que o professor não é bom o bastante em ensinar, o que equiparam os dois personagens positivamente para o início da narrativa. Durante quase todo o primeiro quadro, eles falam ao mesmo tempo, se contradizem e não se ouvem com raras exceções: quando o professor (sutilmente?) pede (ou manda?) que ela se sente. Então, o professor resolve que irá ensinar tudo novamente à aluna. Para ele, esse parece ser um sinal de sua humildade diante de suas explicações mal dadas. Para ela, o ato de benevolência dele parece ser uma ofensa assistencialista e burguesa. Ao longo das cenas, a ingenuidade inicial da aluna se tornará possivelmente a ingenuidade das cenas finais do professor. A ardilosidade inicial do professor, em cuja sala se passa toda a peça, será possivelmente a ardilosidade das cenas finais da aluna, que move um processo contra o mestre por assédio sexual. Forças, a princípio independentes, tornam-se opostas e o espectador tem acesso a isso pela sutileza das brilhantes interpretações de Breda e de Fávero. (Há dias específicos em que Yanagizawa está no elenco a que essa análise não assistiu.) No segundo quadro, os reflexos dos não-ditos da cena inicial serão revisados pelo espectador em sua reflexão sobre o que assiste. Por fim, chegará a hora de tomar partido por um dos dois. E, ao assumir uma opinião, corre-se muito mais riscos de se estar errado.

Enquanto teatro, além do que já é como narrativa, a montagem atual de "Oleanna" permite pensar a respeito dos significados da figura dos intérpretes. Como o figurino, como o tom de voz, como o desenho de luz, a forma do intérprete, isto é, sua figura traz para o palco algo que é anterior (e independente) da peça. Breda e Yanagizawa são figuras humanas diferentes, cujos tons de voz (antes mesmo de serem articulados esteticamente para a composição do personagem), cujos corpos, cujos movimentos são diferentes, têm outras potencialidades significativas. Dessa forma, o jogo proporcionado por "Oleanna" lança um questionamento sobre como seria a mesma situação com outras pessoas, o que aprofunda o ponto de vista do espectador da peça que já seria profundo a partir do texto. 

Pelo texto, pela direção e pelas interpretações, “Oleanna”, que também usa bem de todos os demais elementos estéticos, é um ótimo espetáculo. Sua excelência está em vencer os enormes desafios e sua essencialidade, para quem gosta de bom teatro, está no perspicaz trato do tema. Para ver e rever muitas vezes!

*

FICHA TECNICA
TEXTO: DAVID MAMET
TRADUÇÃO: MARCOS DAUD
DIREÇÃO: GUSTAVO PASO
ELENCO: LUCIANA FÁVERO, MARCOS BREDA E MIWA YANAGIZAWA
CENÁRIO: GUSTAVO PASO E TECA FICHINSKI
FIGURINOS: TECA FICHINSKI
ILUMINAÇÃO: PAULO CESAR MEDEIROS
TRILHA COMPOSTA: ANDRE POYART
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: MONICA VILELA
ASSESSORIA DE IMPRENSA: ALESSANDRA COSTA

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Se eu fosse você (RJ)

Nelson Freitas e Claudia Netto se alternando nos papéis
de Helena e de Claudio na primeira direção de Alonso Barros
Foto: divulgação

Com vocês, Alonso Barros!


“Se eu fosse você” abre com excelência o ano de 2014 em termos de grandes musicais. Baseado no filme homônimo de 2006, dirigido por Daniel Filho, o espetáculo vem dirigido e coreografado por Alonso Barros, aqui em seu primeiro trabalho como diretor. Feito inteiramente com sucessos de Rita Lee, a história permanece a mesma do filme: Helena (Claudia Netto) e Cláudio (Nelson Freitas) são casados há vinte anos e estão nas vésperas de conseguir finalmente fazer a sua lua de mel quando um grande contrato na empresa de Claudio pode estragar tudo mais uma vez. Decepcionada com o marido, Helena o expulsa de casa e, em uma de suas brigas, os dois trocam de corpos. Cláudio começa a habitar o corpo de Helena e ela o dele. O tema requentado das diferenças entre homens e mulheres se torna interessante pela forma como vem à baila nesse texto assinado por Flávio Marinho. Com excelentes interpretações, essa nova produção da Aventura Entretenimento é divertida, honesta e cuidadosa. Sem dúvidas, um ótimo programa para todas as idades.

O gênero comédia musical americana é fruto da confluência de cinco gêneros anteriores. Um deles é a extravangaza, um tipo de espetáculo quase sem narrativa e com muita beleza que entretém os espectadores pela grandiosidade estética de seus números (ver os trabalhos de Florenz Ziegfeld no início do século XX e os desfiles das escolas de samba da Marquês de Sapucaí atuais). Interessa, nessa questão, que o espectador queira estar no lugar daqueles personagens, isto é, cantando lindamente, dançando brilhantemente, fazendo parte de momentos incríveis enquanto vive a sua vida cotidiana quase como as pessoas reais. Para contar a história de Helena e de Cláudio através de um musical, a dramaturgia desse espetáculo se alarga corretamente para dar espaço para os números de canto e de dança, mas também para abrigar a grandiosidade dos cenários, dos quadros, dos convites à emoção e da catarse mais simples. “Se eu fosse você” tem o mérito de vencer esse desafio tão terrível: manter a atenção do público firme apesar dos tempos tão esticados. A evidência disso aparece principalmente no segundo ato, quando a história praticamente já acabou. Os números musicais de Claudia Netto (Helena) e de Kakau Gomes marcam definitivamente o sucesso dos objetivos da produção, pois são apresentados sem nada além de suas vozes. Em outras palavras, se, nas cenas iniciais, a peça precisou usar de muitos recursos para dizer a que veio, nos momentos finais, já está em alto grau nas considerações da plateia e pode economizar, voltando a essência.

Alonso Barros constrói bastante bem a caminhada do sucesso. O cenário frio (quase sempre cinza) de Chris e de Nilson Aizner e de Paulo Corrêa ganha pela sua grandiosidade que preenche bem o palco do teatro Oi Casa Grande onde a peça está em cartaz, entrando e saindo nos momentos certos, o que ratifica o bom ritmo da dramaturgia, das canções e das coreografias. Os números de dança surgem sutis, mas criativos e têm seu melhor momento no quadro Ascott Gavote da peça, em que, lá pelas tantas, Nelson Freitas canta ao lado de um brilhante sapateado em pés de pato. Os 132 figurinos de Marcelo Pies vestem os 22 atores, mantendo os valores da peça dentro do roteiro previsto pelo gênero: em uma comédia musical americana tradicional como essa, o idealismo precisa estar preservado - nada está fora do lugar, tudo é bem feito. O visagismo de Beto Carramanhos situa esteticamente a produção em um lugar correto: em “Se eu fosse você”, a narrativa do marido no corpo da esposa e vice-versa é a protagonista e todos os outros elementos (figurinos, cenários, cabelos, dança e canto) podem ser belos, mas precisam ocupar o lugar de coadjuvante.

Os trabalhos de interpretações são excelentes. Fafy Siqueira (a mãe), Carla Daniel (a sogra da filha), Lua Blanco (a filha), Eduardo Leão (o amigo de Claudio), Kakau Gomes (a romântica) e Marya Bravo (a analista) têm participações marcantes que sinalizam a grandiosidade do espetáculo mesmo nas articulações menores. Nelson Freitas (Cláudio), que não é cantor, conquista a plateia com seu grande carisma e é uma das portas de entrada do público para fruir bem a peça. Claudia Netto, o grande nome da produção, oferece à audiência tudo aquilo que dela se espera: a excelência de uma das nossas melhores cantoras, atrizes e, agora também, comediantes. O único senão é Bruno Sigrist, cuja interpretação é apagada, sem sex appeal, e menor em relação à Blanco, sua parceira de cena.

O filme “Se eu fosse você”, com roteiro de Adriana Falcão, Renê Belmonte, Carlos Gregório, de Daniel Filho e de Roberto Frota, que consta também como criador da ideia original, foi a primeira maior bilheteria do cinema brasileira desde a retomada, somente superado por “Tropa de elite”. Essa produção de teatro musical, com composições da brasileira Rita Lee (sem ser mais uma biografia!), pode, sim, partir de um gênero originariamente americano, mas em nada perde a oportunidade de orgulhar o público teatral do país. Para se divertir!

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Ficha técnica
Supervisão artística – Daniel Filho
Direção e coreografia – Alonso Barros
Direção Musical – Guto Graça Mello
Texto adaptado – Flavio Marinho, baseado em personagens e situações criados por Carlos Gregório e Roberto Frota, a partir de uma ideia original de Roberto Frota.
Conceituação Artística : Chris e Nilton Aizner
Cenógrafo Associado: Paulo Correa
Figurino – Marcelo Pies
Design de som – Carlos Esteves
Iluminação – Paulo Cesar Medeiros
Visagismo – Beto Carramanhos
Casting – Marcela Altberg
Elenco – Claudia Netto, Nelson Freitas, Lua Blanco, Bruno Sigrist, Alberto Goya, Carla Daniel, Carlos Arruza, Eduardo Leão, Giselle Lima, Igor Pontes, João Corrêa, Kacau Gomes, Lana Rodes, Lucas Drummond, Mariana Amaral, Marya Bravo, Neusa Romano, Nicola Lama, Osvaldo Mil, Thati Lopes e Vanessa Costa. Participação especial: Fafy Siqueira
Realização – Aventura Entretenimento, sob licença da Total Entertainment

terça-feira, 1 de abril de 2014

Humor (MG)

Marcos Coletta em cena
Foto: divulgação

Teatro da melhor qualidade

Mais do qualquer coisa, “Humor” é muito inteligente. De forma bastante rara, a nova produção do grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum é sobre a incapacidade de qualquer linguagem de viabilizar um sentido em sua totalidade. Em outras palavras, a peça é uma metáfora para a situação de quando queremos falar algo e, no meio da fala, nos arrependemos, porque não há palavras que possam descrever bem o que desejamos. Com texto de Assis Benevenuto e de Marcos Coletta, a peça está em cartaz no teatro da Caixa Cultural, no centro do Rio.

Uma história dentro da história. Quatro personagens sem nome e sem forma (Marcos Coletta, Rejane Faria, Assis Benevenuto e Italo Laureano) tentam contar a historia de um homem (Marcos Coletta) que não fala, não se mexe, não reage há anos. Uma empregada (Rejane Faria) cuida de suas necessidades básicas, um médico (Assis Benevenuto) o visita com frequência e também um advogado (Italo Laureano) tenta administrar seus bens. O desafio inicial do espectador é estabelecer as pontes entre uma narrativa e outra e, enquanto está absorto nesse vai e vem de significação, é pego de surpresa por “Humor”, que cria, assim, bases semânticas para falar a que veio.

As teorias em torno do devir já estão balzaquianas, mas tão jovens como nunca. Nelas, os fatos que acontecem não podem ser vistos como desvinculados de uma situação que os antecede e os precede, nem tampouco das várias situações paralelas. O universo é, pois, muito mais complexo. “Humor” vai atrás dessas pistas, dessas marcas, dessas “pegadas” de significado que, no passado, ainda não significavam, mas fizeram sentido no além. Quatro personagens contam uma história, mas sabem que o ato de narrar aprisionará o sentido dentro de um universo formal: a oralidade é, por exemplo, um dispositivo, um meio regular de comunicação que tem regras e, por isso, nem sempre expressa o significado em sua potência ideal. Por isso, frequentemente, no meio das falas, esses personagens narradores confessam uns para os outros e todos para o público: “Não posso mais, não posso mais continuar!” Fica para diante dessas interrupções o mesmo que havia antes do início das sentenças: o sentido imanente, o desejo de algo em ser expresso e a insatisfação por sobre o que foi expresso ou sua forma. Nesse sentido, a oposição entre a vontade de acontecer na materialidade versus o prejuízo que esse acontecer causa consiste no conflito dramático que “Humor” viabiliza. 

São bastante positivos os trabalhos de interpretação, porque os dois níveis de narração são muito claros: o interpretativo (o homem apático, a empregada, o médico e o advogado) e o prosódico (os narradores). Os intérpretes mudam claramente as tensões de lugar, dando a ver figuras mais próximas e mais distantes do público, ambas com dicção clara, tempos bem usados, gestual limpo. A cenografia de Ed Andrade participa ativamente da construção do sentido, porque parece ter sido feita de objetos que já existiam além da peça e só foram rearticulados para o seu uso. A impressão de paredes de uma casa feita a partir de janelas velhas, cujos vidros estão boa parte quebrados, preenche o visual de um significado que em tudo tem a ver com a peça apresentada. Os móveis desse cenário e os figurinos de Mariana Blanco situam uma das histórias em um lugar do tempo mais antigo, o que auxilia o espectador a ler o contexto como algo que já se passou, o que também é positivo. A trilha sonora original de Lucas Yoganand age na mesma direção, enriquecendo a produção com boa dose de poesia, isto é, na via indireta do sentido.

A iluminação de Marina Arthuzzi é definitiva para “Humor”, espetáculo que teve orientação criativa de Rodrigo Campos. Na cena final, uma sequência longa e brilhante, vemos a peça “iluminar” lugares onde outrora estiveram objetos e pessoas, onde histórias se passaram ou histórias foram contadas. O que iria acontecer já aconteceu e não acontece mais e a poesia está em refletir sobre esse caminho de duas pontas difusas. Eis aqui teatro da melhor qualidade.

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Ficha técnica:
Direção e Atuação: Assis Benevenuto, Italo Laureano, Marcos Coletta, Rejane Faria
Texto: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Orientação criativa: Rodrigo Campos
Iluminação: Marina Arthuzzi
Cenografia: Ed Andrade
Cenotécnico: Nilson Santos
Assistente de Cenografia: Morgana Mafra
Figurinos: Mariana Blanco
Confecção de Figurino: Marcia Correa
Trilha Sonora Original: Lucas Yogananda
Workshop de Improvisação: Gustavo Miranda
Fotografia: Guto Muniz
Design Gráfico: Espaço Lampejo – Filipe Costa e Flora Lopes
Produção: Maria Mourão
Realização: Grupo Quatroloscinco - Teatro do Comum
Patrocínio: Caixa Econômica Federal e do Governo Federal

Cora e Adélia – receita de poesia em um dedo de prosa (RJ)

Sônia de Paula e Nica Bonfim em cena
Foto: divulgação

Uma leitura espetacular

A coisa mais deliciosa do espetáculo “Cora e Adélia – receita de poesia em um dedo de prosa” é a honestidade. Ao se assumir como uma leitura dramática, o espetáculo transpira teatro naturalmente. O espectador só espera ver duas atrizes lendo poemas de Cora Coralina (1889-1985) e de Adélia Prado (1935). Porém, além de sair com isso, leva no coração muito mais. E esse é o maior mérito dessa produção que agora está em cartaz no Centro Cultural dos Correios, no centro do Rio.

Sônia de Paula e Nica Bomfim interpretam duas professoras já donas de casa em tempo integral, mulheres apaixonadas por poesia e pelos hábitos da vida simples. Quando uma visita a outra, decidem improvisar um mini sarau em que apenas as duas são convidadas. Nele, lerão trechos de poemas de suas autoras favoritas. O encontro se dá na casa de uma delas: a mesa de escrever, cadeiras, fogão e janela. No belíssimo cenário, o signo da janela, lugar de onde se vê o mundo que passa lá fora, explora o bucolismo que climatiza os textos lidos, o feminimo e o íntimo. Em mundo de rebeliões, golpes e manifestações, a literatura de Cora Coralina e de Adelia Prado venceu  perdeu o risco do desvínculo com a história, mantendo seu lugar na contemporaneidade ao voltar-se para dentro, para o lar, para a família. Ao deixar claro que a verdadeira revolução acontece no interior do ser humano, a dramaturgia de Jackson Costa merece elogios pela cuidadosa escolha dos trechos e por sua localização na narrativa.

A direção de Rafaela Amado não estava pronta na sessão de estreia. Nica Bomfim (que lê Adélia) olha para Sônia de Paula (Cora), deixando claro para o público que é a vez da outra falar. O jogo não é compartilhado por Sônia, que não faz o mesmo à Nica e, por isso, é negativo. Além disso, Sônia mantém um tom regular, começando todas as falas com muita força, essa que diminui ao longo do verso no falar da intérprete. O resultado é a sensação de que o ritmo foi eleito antes do texto ao invés de vir através dele. Positivamente, destacam-se a movimentação das atrizes no espaço cênico, pois o trabalho mostra acreditar em si mesmo e em sua potência, enfrentando com coragem o desafio de manter as duas intérpretes sentadas em boa parte do tempo. Com isso, a exemplo da literatura, o teatro parece querer também valorizar a calma, os encontros, o momento presente.

“Cora e Adélia – receita de poesia em um dedo de prosa” tem ainda excelente trilha sonora assinada por Marcelo Alonso Neves. O elemento parece unir as duas personagens em um amálgama natural que surge a partir dos lugares poéticos que Cora Coralina e Adélia Prado dividiram e o qual compartilham com o público. A antessala do lugar onde a peça se apresenta prepara o público para o universo do espetáculo igualmente de forma rica e apropriada. O espetáculo, em sua simplicidade assumida, disfarça uma estrutura complexa que é coesa e coerente, firme e bem articulada. Além de delicado e doce. Viva!

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Ficha técnica:
Idealização: SÔNIA DE PAULA
Autoras dos poemas: CORA CORALINA e ADÉLIA PRADO
Texto Original: JACKSON COSTA
Atrizes: SÔNIA DE PAULA e NICA BOMFIM
Direção: RAFAELA AMADO
Pesquisa e Seleção de textos: RAFAELA AMADO e JACKSON COSTA
Cenografia e Figurino: ESPETACULAR PRODUÇÕES & ARTES – NEY MADEIRA, DANI VIDAL e PATI FAEDO
Ambientação da Sala de Leitura: MARCELO AOUILA 
Iluminação: LUIZ PAULO NENEN
Direção Musical e Música Original: MARCELO ALONSO NEVES
Musicista: GRASIELA MÜLLER
Intérprete de LIBRAS: SIMONE MODESTO
Operação de Luz: GENILSON BARBOSA
Cabeleireiro: RICARDO SOUZA
Maquiagem: RAY 
Projeto Gráfico: ESSESGAROTO AOUILA
Fotos divulgação: GIÚLIA OLIVEIRA
Fotos de cena: ROGÉRIO BELÓRIO
Registro videográfico: ANDERSON FERNANDES PINTO
Tradução dos textos para o Inglês: FÁBIO BERROGAIN
Assessoria de Imprensa: KASSU PRODUÇÕES
Assistente de cenografia e figurino: BRUMA NATTRODT
Costura de figurino e cenário: ATELIER 3 MENINAS
Cenotécnica: ANDRÉ SALLES & EQUIPE
Pintura de Arte e adereços de cena: MARCELA FAUTH
Assistentes de Produção: LOURDES BARROS, JONAS VENÂNCIO e LUIZ PAULO ROSÁRIO Contador: MARCOS AURÉLIO DOS SANTOS ROSSI
Assessoria Jurídica: MAS ROSSI ASSESSORIA
Produção Executiva: SIMONE VIDAL
Coordenação e Direção de Produção: MARCELO AOUILA
Produção: ASSOCIAÇÃO CULTURAL SOMAR IDEIAS