sábado, 19 de abril de 2014

E se elas fossem pra Moscou? (RJ)

Isabel Teixeira, Julia Bernat, Stella Rabello e Paulo Camacho
Foto: divulgação

O melhor de Christiane Jatahy

No futuro, saberemos que Christiane Jatany fez tanto para o teatro brasileiro quanto Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Ao fundar o teatro brasileiro moderno, na famosa encenação de “Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues, o diretor dividiu o palco em planos e ofereceu a plateia algo não só diferente do que já se tinha visto, mas algo bom para a história do espetáculo nacional. Há cinquenta anos, projeções de vídeo fazem parte do teatro no Brasil, mas ninguém usa de forma tão inteligente esse elemento como Christiane Jatahy. E “Se elas fossem pra Moscou?” é o seu melhor espetáculo também nesse sentido. Escrito a partir de “As três irmãs”, texto fundamental do russo Anton Tchekhov, a peça em cartaz na Sala Mezanino do Espaço Sesc Copacabana atualiza o texto original no que de mais rico esse conceito tem para oferecer. Com belíssimas interpretações de Isabel Teixeira, Stella Rabello e de Julia Bernat, a produção conta ainda com excelentes trabalhos de direção de arte (Marcelo Lipiani, Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues) e de direção de som (Denilson Campos).

O rompimento com o realismo psicológico de Tchekhov se dá na cena de abertura quando as três atrizes entram em cena, se sentam em um sofá bastante próximo do público e o encara nos olhos. No gênero que melhor lê o texto original, temos o espectador observando o mundo a partir do olhar das protagonistas (Irina, Masha e Olga). Na adaptação de Jatahy, a situação de fruição permanece positivamente a mesma: estamos observando o mundo através de Irina. A conversa banal de Tchekhov esconde uma crítica afiada à sociedade, aos valores, à hipocrisia da época. A conversa banal de Jatahy esconde vulcões em erupção. Moscou é, para os personagens de Tchekhov, a válvula de escape para não enfrentar a realidade. Jatahy, no entanto, não fala (quase) de saudade, mas questiona o que fazer para modificar a vida e por que isso é tão difícil. Nesse sentido, com aproximações e com distâncias da obra russa, “E se elas fossem para Moscou?” é um novo espetáculo, que independe do primeiro, o critica, o analisa e que, sob determinados aspectos, vai além.

No início da peça, Irina (Julia Bernat) está completando 20 anos no exato dia em que se lembra o primeiro ano de falecimento de seu pai. Olga (Isabel Teixeira), a filha mais velha, faz uma festa para Irina, a qual atendem Maria (Stella Rabello), a irmã do meio, como também outros convidados (o público). Entre o serviço de bolos e taças de champagne, as três irmãs se destroem mutuamente e também se abraçam como em toda boa família. Maria mostra-se primeiro: o público sabe que seu casamento está prestes a acabar e, diante dessa situação, ela tem dificuldade em se concentrar. A preocupação de Olga em cuidar dos outros revela, em seguida, um relapso em cuidar de si própria: a personagem está ficando velha, acima do peso, solitária e triste. Então, apresentados os conflitos menores, a peça de Jatahy volta a sua atenção para o seu conflito central: o de Irina. Olhando para o público, Julia Bernat informa o público qual é a questão por trás de sua personagem e, com isso, situa o espetáculo em um outro lugar conceitual.

“E se elas fossem pra Moscou?” propõe, entre outras questões, uma discussão sobre o real e o virtual. Sem ser mais uma peça “cabeçuda” (e pretensiosa) como tantas a que se assiste, essa tem a maturidade de não se esquecer de que é arte mesmo ao dissertar sobre um tema. Na peça, as atrizes estão corporalmente presentes diante do público. Ao mesmo tempo, um filme é realizado e exibido em outra sala. Nele, as atrizes estão presentes através de um jogo de luzes que chamamos de cinema. Ao discutir a presença (A pessoa nem sempre está onde o corpo está.), essa montagem se pergunta e questiona sobre virtual (o que está em vias de ser ou imanente na presença) e atual (aquilo que é resultante de uma confluência entre tempo e espaço e que não é sinônimo de contemporâneo), sobre real (o estruturado a partir de regras que são próximas do além da narrativa) e irreal (aquilo que foge dessas regras). E destaca a responsabilidade do ato de estar presente. Sem suportar a realidade, Irina de Jatahy adota uma válvula de escape bem mais profunda do que simplesmente falar dos anos vividos em Moscou, como a de Tchekhov.

É singular e definitivo o trabalho de interpretação de Isabel Teixeira, de Stella Rabello e de Julia Bernat. Corpo, voz, intenções, dosagem na expressão das emoções, relação com o público, com o elenco, com os técnicos, com o cenário, enfim, em tudo, os trabalhos de interpretação ratificam uma concepção que aproxima o real da narrativa do real além da peça. O resultado, que não é o hiperrealismo, é uma nova roupagem do realismo psicológico, ao qual Pinter, Mamet, e agora o mundialmente Tracy Letts (“Album de família”) se voltaram em suas obras mais contemporâneas.

É vibrante o resultado estético de “E se elas fossem pra Moscou?”. O cenário é rico em detalhes como se exige do bom teatro realista. A qualidade sonora, com minuciosa dosagem entre a sutileza presencial e a surdez sufocante, cada uma em seu momento claramente pensado, é destacável também. Os figurinos têm seu ponto alto na expressão do universo interior de Olga. A direção de movimento merece destaque pela forma como os técnicos que produzem o filme participam discretamente da cena até desaparecerem, embora estejam sempre presentes. Da mesma forma, a beleza cuidadosa com que os cenários entram e saem, expondo a realidade enquanto ela é questionada pontualmente.

Sobre o filme, que é exibido no mesmo horário da peça em outra sala, nota-se que Jatahy domina também a técnica cinematográfica, construindo uma obra paralela potente, mas apenas auxiliar a essa. Repleto de referências ao sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cuja filmografia vai do surrealismo ao existencialismo, a obra, em separado, consegue ter o mérito de apresentar uma outra e particular estrutura narrativa. No filme, é Maria a protagonista, enquanto à Irina um papel bem menor é legado.  Ao se relacionar com um velho amigo de infância, André (Paulo Camacho, no filme, ganha importância muito maior do que na peça.), ela reflete sobre os anos em que esteve casada e a possibilidade do fim desse ciclo. No mais, tudo o que for válido destacar na obra fílmica só o será em relação à peça, essa, sim, com vida independente e rica.

“E se elas fossem pra Moscou?” diverte, emociona e proporciona reflexão cada vez mais fundamental na contemporaneidade. O elevando apuro estético em nada compromete a profundidade da proposição teórica, ou vice-versa. Oferecendo o seu melhor, cada elemento participa da estrutura como um todo de forma articulada, vibrante, potente. É o melhor trabalho assinado por Christiane Jatahy, essa que não substitui Ziembinski, mas há de ser reconhecida como ao seu lado em tão vital e bem vinda importância ao teatro brasileiro.

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FICHA TÉCNICA:
A partir do texto “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov

Com Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabello

Adaptação, roteiro e edição ao vivo: Christiane Jatahy
Direção de fotografia e câmera ao vivo: Paulo Camacho
Concepção cenário –Christiane Jatahy e Marcelo Lipiani
Direção de arte e cenário – Marcelo Lipiani
Figurino – Antonio Medeiros e Tatiana Rodrigues
Direção Musical – Domenico Lancelotti
Iluminação – Paulo Camacho e Alessandro Boschini
Músico em cena – Rafael Rocha (stand in – Felipe Norkus)
Projeto de som – Denilson Campos
Diretor de palco – Thiago Katona
Coordenação técnica vídeo e pintura de arte cenário– Felipe Norkus
Mixagem ao vivo – Francisco Slade
Assistente de direção e interlocução artística – Fernanda Bond
Assistente de cenário e produção de objetos – Paula Vilela
Consultoria de vídeo – Julio Parente
Projeto Gráfico – Radiográfico
Direção de produção – Tatiana Garcias
Coordenação de produção – Henrique Mariano
Assistente de produção – Náshara Silveira


Elenco de apoio no filme: Paulo Camacho, Rafael Rocha, Felipe Norkus e Thiago Katona
Colaboração no roteiro – Isabel Teixeira, Julia Bernat, Stella Rabello e Paulo Camacho
Co-produção: Le CENTQUATRE-PARIS
Um projeto da Cia Vértice de Teatro
“E SE ELAS FOSSEM PARA MOSCOU?” é patrocinado pelo FATE – Fundo de Apoio ao Teatro da Secretaria Municipal de Cultura.

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