sábado, 10 de maio de 2014

Rent (RJ)

Foto: divulgação

Deixa a desejar

“Rent”, produção da CAL e do Mergulho no Musical, é uma realização com poucos méritos infelizmente. Em 1996, na Broadway, o espetáculo veio tirar um atraso de oito anos (desde “O fantasma da ópera”, em 1988) sem um grande musical, marcando uma volta do gênero ao realismo como com “A chorus line”, em 1975. Dirigido por Menelick de Carvalho, a peça original de Jonathan Larson (1960-1996, ele morreu no dia da estreia) não é uma “historinha”, mas uma dissertação sobre o tempo que, democrático, passa para todos indiferente da realidade de cada um. Há a lésbica, o gay e o transexual. O negro que fica com branco, aqueles que se drogam, quem não paga o aluguel, quem não sabe o que fazer, quem faz coisas demais e quem está com AIDS, doença que, na época, significava uma sentença clara de morte física, mas também social. A versão atual, em cartaz na Casa de Artes Laranjeiras, pasteuriza a situação dramática e, infelizmente, faz de “Rent” um tipo de melodrama juvenil monótono. As interpretações de Caio Loki (Angel), Allan Chang (Tom), de Carolina Botelho (Mimi) e, principalmente, de Gabi Porto (Maureen) se destacam positivamente.

Há muitos problemas na dramaturgia cênica, isto é, na forma como o texto chega para quem só assiste a essa versão. Narrada pelo jovem cineasta Mark, a história começa quando, numa noite fria de inverno, os mais pobres sofrem a falta de calefação. Dois dos vários personagens se encontram no drible desse problema: Mimi (Carolina Botelho) vai até a casa de Roger (Ugo Cappelli), seu vizinho, atrás de um fósforo. Os dois se apaixonam e começam a namorar. Citando um exemplo que justifique a falha apontada na direção, quem sai da apresentação atual de “Rent” acha que Roger e Mimi terminam o namoro, alguns meses depois, pelo ciúmes dele em relação a ela com Coffin (André Guedes), o dono do apartamento onde mora. No original, Mimi se afasta de Roger porque, diferente dele, não consegue cuidar de si própria e precisa de alguém que cuide dela. Os dois são soropositivos, mas Mimi não toma AZT nas horas certas e permanece fazendo uso de drogas. Como um gato, ela se afasta de quem ama para morrer. E esse contexto narrativo é muito mais profundo do que as várias DRs que a versão atual expressa.

Outro exemplo: em uma grande cena, Maureen (Gabi Porto), ex-namorada de Mark (Augusto Volcato) e futura namorada de Joanne (Nathalia Serra), está drogada. Seu discurso truncado, cheio de visões fantásticas e repleto de elipses, se diferencia do ritmo narrativo corrente até então, marcando os efeitos da cocaína. Na versão atual, os diversos problemas de som - nem todos os atores têm microfone próprio - e principalmente de dicção fazem com que essa cena não se destaque, mas se misture com as demais, pois nenhum diálogo foi suficientemente claro até o momento. Sem qualquer visão moralista, “Rent” se destacou na história do musical americano por inclusive pautar o uso da droga ilícita como o da legalmente aceita: um lugar de encontro. Sem realmente pontuar a complexidade dos personagens e os conflitos que vêm à tona a partir de suas relações uns com os outros, Menelick de Carvalho perdeu a oportunidade de fazer desse espetáculo algo mais que uma disposição do elenco para o canto.

Além dos destaques, as intepretações são inexpressivas. Ugo Capelli (Roger), Augusto Volcato (Mark), Nathalia Serra (Joanne) e André Guedes (Coffin) deixam ver apenas uma superfície muito rasa dos seus personagens, tornando boa parte de seus números aparentemente mais longos do que belos. Caio Loki (Angel) tem brilhante aparição como Angel, fazendo boa dupla com a carismática e correta interpretação de Tom por Allan Chang. Carolina Botelho merece ter esforço reconhecido em contracenar, mas os melhores momentos de “Rent” são de Gabi Porto em sua versão de Maureen. Cheia de força, com belíssima voz, vibrante agilidade corporal, mas principalmente visível capacidade de prender a atenção do público, a atriz justifica uma excelente atuação.

A produção de “Rent” sofre com as limitações do espaço, mas deixa de tirar bom proveito disso. Quando Larson escreveu um musical sem o elemento da extravaganza (a grandiosidade de cenários que sobem e descem e as coreografias complicadas do jazz), ele estava querendo aproximar a peça do público, sim, mas na ordem da estética (junto dos temas pautados!) e não apenas na relação palco e plateia. Ao espalhar as cenas pelo espaço cênico, colocando a plateia no centro, Menelick exige que apenas uma cena seja vista por vez - porque ou se olha para um lado, ou se olha para o outro. No original, o acontecimento paralelo de várias cenas constrói a sensação de ecossistema, própria do realismo naturalismo ao qual o texto seria lido com muito mais força.

De todos os elementos, o figurino de Maria Penna Firme é o pior usado. A história começa no natal de 1987 e vai até um ano depois em Nova Iorque, nos Estados Unidos, porque é uma peça sobre o tempo (Não é à toa que sua canção-tema é “Seasons of love”). Na versão de Firme, fica muito difícil acompanhar os meses olhando para as roupas dos personagens. Mark usa touca de lã e camisa de flanela tanto no período mais frio do inverno como no mais quente verão americano. Roger usa camiseta em dezembro, casaco em agosto e, depois, camiseta novamente no fim e Tom faz algo próximo disso. Entre as personagens femininas e o coro, a confusão é ainda maior.

É notório que “Rent” é uma produção estudantil, sem fins lucrativos e provavelmente com inúmeros gastos para os realizadores, cujo mérito em fazer deve também ser elogiado, além das interpretações já destacadas de Loki, Chang, Botelho e de Porto. A questão, no entanto, é que, depois dos excelentes “The book of Mormon” e de “A chorus line”, esse último assinado pelo mesmo Menelick de Carvalho, espera-se muito, muito mais.

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