terça-feira, 8 de julho de 2014

Dois amores e um bicho (RJ)

Foto: divulgação

A excelente dramaturgia do venezuelano Gustavo Ott

Entre outros significados, “Dois amores e um bicho” é sobre a mudança de valor das coisas. O que é válido hoje, amanhã já não é mais. O que pouco importava ontem, hoje suscita muitas controvérsias. Escrita em 2001 pelo venezuelano Gustavo Ott (1963), a peça “Dos amores y un bicho” narra a desintegração de um casamento de mais de trinta anos aparentemente sólido. A montagem dirigida por Guilherme Delgado, a partir de tradução de Carlito Azevedo, conta com as boas interpretações de Vitor Fraga e de Ana Paula Novellino e tem como principal mérito o de nos lembrar que não é só na Inglaterra e nos Estados Unidos que a boa dramaturgia conteporânea está acontecendo. A peça está em cartaz no Galpão das Artes, no Jardim Botânico. Toda a obra de Gustavo Ott pode ser encontrada no site www.gustavoott.com.ar.

Numa terça-feira qualquer, Pablo (Vitor Fraga) vai com sua esposa Karen (Ana Paula Novelino) visitar o zoológico onde trabalha a filha do casal, a médica veterinária Carol (Yndara Barbosa). Lá eles se surpreendem por encontrar um orangotango  em uma jaula separada dos seus iguais. Ao perguntar o motivo, o pai descobre que o macaco não se comportou bem, molestou seus companheiros e, por isso, está de castigo. É quando a filha pergunta ao pai porque ele esteve preso durante quarenta dias há quinze anos. A prisão do pai, acontecida quando a filha ainda era pequena, até então nunca tinha virado uma conversa familiar. Ao vir à tona agora, depois de tanto tempo, essa conversa trará consequências irreparáveis para família de Pablo. Há quinze anos, uma bomba explodiu em uma escola, matando crianças, professores, pais e mães. Na casa de Pablo, a televisão noticiava o crime quando o cachorro Cabral foi surpreendido molestando o cachorro Bandido, ambos animais do mesmo sexo. Em um golpe de fúria, Pablo matou Cabral a pontapés e, por isso, foi preso. Quando a peça começa, a filha (e veterinária) sente que é como se seu pai tivesse morrido com aquela história, pois tudo o que ela pensava dele havia se transformado em algo ruim. Por outro lado, ao lembrar destes momentos, a mãe descobre que já não ama o marido e decide separar-se. Na dramartugia de Ott, os quinze anos em que o assunto ficou encubado são essenciais. Com diálogos afiados, o autor mostra que o valor que as coisas têm se modifica nem sempre pra pior.

O texto de Gustavo Ott e a direção de Guilherme Delgado propõem diversos níveis bastante ricos de fruição, justapondo e opondo conceitos pertinentes ao drama. O assassinato de um cão imediatamente substituiu na TV a pauta da explosão da bomba que matou tantos seres humanos. A homossexualidade ativa do cão Cabral contra o cão Bandido (o segundo mais fraco que o primeiro) ganha destaque em lugar da defesa do cachorro molestado, menor que o outro e mais indefeso. O pai que matou o cachorro porque, na sua opinião, comportava-se mal é julgado a revelia do como a veterinária trata o orangotango que, na opinião dela, também se comporta mal. Animais como cães, macacos, rinocerontes, pandas e aves comovem, enquanto formigas e baratas dão nojo (e também são mortas diariamente). O respeito à orientação sexual hoje não recebe a mesma importância do que outrora, sendo relativamente maior felizmente. E, assim, um por um, os personagens de “Dois amores e um bicho” se contrapõem enquanto constroem uma arena de embates sobre valores, sobre ética, sobre sociedade. O desenrolar dos fatos, em que a simples prisão de um chipanzé é um epicentro para tudo o mais que é revelado, deixa ver camadas sobre camadas de motivos filosóficos que só a boa arte pode sugerir para os seus fruidores.

Guilherme Delgado não utiliza círculos, mas organiza a estética de “Dois amores e um bicho” em linhas retas, no que é inteligentemente auxiliado pelo desenho de iluminação de Daniel Archangelo. Pode ser que o assassinato do cachorro, assim como a prisão do chipanzé, tenha sido um ato voluntário dos seus responsáveis por colocar as coisas no lugar (?), segundo uma lógica que é inerente ao mundo natural, mas própria do homem. Nesse caso, na movimentação cênica da peça, tudo tem o seu lugar e quase não há gestos fora de controle harmoniosamente. Esse conceito aparentemente frio, no entanto, não impede que a emoção venha aos personagens, ela também parte de uma tese defendida pela montagem. Yndara Barbosa (a filha) e Luiz Paulo Barreto (os personagens secundários) oferecem trabalhos de interpretação mais superficiais, sem marcas de crítica que dariam mais vida para as figuras que apresentam. Por outro lado, Ana Paula Novellino e Vitor Fraga obtém melhores resultados nos diálogos e nas pausas, evidenciando personagens mais cheios de contradições.

Como é infelizmente normal, “Dois amores e um bicho” estreia com problemas de ritmo próprio das montagens em início de temporada. Com o tempo, há de melhorar. Desde já, no entanto, tem-se a beleza de um excelente texto defendido com meritosa coragem. A ser visto.

*

Ficha técnica:
Autor: Gustavo Ott
Direção: Guilherme Delgado
Elenco: Vitor Fraga, Ana Paula Novelino, Yndara Barbosa e Luiz Paulo Barreto
Cenografia: Carlos Augusto Campos
Contrarregragem: João Batista
Iluminação: Daniel Archangelo
Assistente de Iluminação - Daniele de Deus
Direção de Produção - Guilherme Delgado
Produção Executiva: Daniel Archangelo
Assessoria de imprensa: Silpert e Chevalier Comunicação
Realização: Tentáculos Espetáculos

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