quarta-feira, 23 de julho de 2014

Ópera do Malandro (RJ)

Léo Bahia (à esquerda) e Fábio Enriquez (à direita)
 são destaques positivos no elenco
Foto: divulgação

O Malandro volta à cena timidamente

A nova montagem de “Ópera do Malandro” é a participação de João Falcão no aniversário de 70 anos de Chico Buarque. O musical, que pré-estreou no congelante Theatro Municipal do Rio de Janeiro, apresenta ótimos trabalhos de interpretação de Adrén Alves (Vitória), Ricca Barros (Duran), Fábio Enriquez (Teresinha), Léo Bahia (Lúcia) e de Eduardo Landim (Geni), mas também vários problemas que tentam tirar o brilho da nova produção da Sarau Agência, a mesma do brilhante “Gonzagão – A Lenda”. A alternativa de usar homens interpretando papéis femininos, ainda que nem sempre se justifique na peça, oferece pontos interessantes de reflexão, alguns dos quais serão tratados aqui. No início de agosto próximo, a montagem estreará no Theatro Net Rio, em Copacabana, muito provavelmente em melhores performances. Oxalá!

Não é difícil entender a história. Duran e Vitória, donos de uma rede de casas de prostituição na Lapa, descobrem que sua filha Teresinha casou-se às escondidas com Max Overseas, contrabandista famoso nesse fictício Rio de Janeiro dos anos 30, e resolvem solucionar o caso com a encomenda da morte do criminoso para o chefe de polícia Tigrão. O que Duran não sabe é que Tigrão também deve alguns favores a Max, o que põe a narrativa em primeiro xeque. No desenrolar disso, as prostitutas de Duran e o bando de Max se unem nas ruas em protesto. Lá pelas tantas, Vitória tenta barrar as manifestações, mas não consegue e é atropelada pela massa. É quando a personagem Vitória e a personagem Atriz Que Interpreta Vitória se confundem. Pressionado pelo dinheiro, João Alegre, o autor da história de Duran, de Max e de Teresinha, deverá mudar os rumos da história que declaradamente se torna mais subversiva. Ou permanecer pobre, mas fiel aos seus ideais estéticos e sociais.

Reduzindo o elenco, sem reduzir o número e a variedade dos personagens, a produção atual coloca atores homens interpretando mulheres, criando uma estrutura irregular. Não são apenas os intérpretes dos homens do bando de Max que também dão vida para as funcionárias de Duran, mas Vitória, Teresinha e Lúcia são interpretadas por homens, enquanto Duran, Tigrão e Max não o são por mulheres (apenas João Alegre o é). Nenhum personagem, além de Geni, é homossexual e os atores também não deixam ver marcas de uma interpretação queer para as suas figuras, o que deixa de construir uma metáfora entre malandragem e transformismo. Por outro lado, o tempo que o espectador gasta pensando nos efeitos estéticos dessa opção sustenta uma fruição menos catártica, menos alienada, mais consciente e mais política que ajuda a construir o famoso distanciamento brechtiano. A escolha do elenco se tornou uma via de mão dupla.

Inspirada na “Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht (por sua vez, inspirada em “A Ópera do Mendigo”, de John Gay), um dos pontos mais relevantes da “Ópera do Malandro” é a celebração da malandragem como parte do DNA do brasileiro. De alguma forma, todos os personagens são malandros, pois tentam tirar proveito das situações sem perder o humor. Vale lembrar, no entanto, que o único personagem que se orgulha de ser malandro é Max, aqui em uma interpretação infelizmente mais tensa que carismática do sambista Moyseis Marques, em seu primeiro trabalho como ator. Adrén Alves (Vitória), Ricca Barros (Duran) e Fábio Enriquez (Teresinha) dominam bem a cena, apresentando trabalhos vigorosos, com intenções claras e agilidade na difícil tarefa de preencher o enorme palco do Theatro Municipal. Em trabalhos menores, Larissa Luz (João Alegre), Davi Guilherme (Big Bem) e Bruce Araújo (Johnny Walker) se destacam. Entre todos, são Léo Bahia (Lúcia) e Eduardo Landim (Geni) que roubam a atenção quando em cena, tornando situações menores em grandes momentos como se imagina terem feito Elba Ramalho e Emiliano Queirós nos anos setenta.

A montagem original apresentou canções que se tornaram parte consagrada do repertório popular nacional, como “Geni e o Zepelim”, “Pedaço de mim”, “Folhetim”, “O meu amor”, entre outras. Na produção de agora, cuja excelente direção musical é de Beto Lemos, todos os méritos do texto e das canções de Chico Buarque são positivamente mantidos. Os figurinos de Kika Lopes retratam os anos 30 com o brilho não exagerado que o grande musical, gênero do qual a peça debocha na cena final, requisita. A iluminação de César Ramires, junto das coreografias de Rodrigo Marques, se esforça para vencer o ritmo lento das cenas impresso no palco na pré-estreia, conseguindo resultado meritoso em mais uma peça cujo cenário (Aurora dos Campos) é pauperrimamente composto de andaimes.

Escrita e apresentada pela primeira vez no governo do presidente-ditador Ernesto Geisel, a “Ópera do Malandro” se estruturava sob nuances que infelizmente desapareceram nessa produção. Os anos 30 foram escolhidos, porque o Brasil também vivia uma ditadura (a de Vargas). A cena final, em que o número de ópera substitui o roteiro original do personagem dramaturgo João Alegre, criticava os espetáculos musicais enlatados cujos cenários vinham ao Brasil de navio. O Malandro fazendo samba batendo os dedos numa caixa de fósforo na abertura pautava a pobreza e a simplicidade do homem à margem da lei, cujos grandes crimes eram (e são!) bastante inferiores aos das autoridades estabelecidas. Essa versão de João Falcão, em que o Malandro é uma Passista de Escola de Samba de Grupo Especial, chega sem crítica além do texto, cenicamente estéril, ainda que com boas interpretações. É uma pena.


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FICHA TÉCNICA:

ADAPTAÇÃO E DIREÇÃO: JOÃO FALCÃO
DIREÇÃO MUSICAL: BETO LEMOS
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO E IDEALIZAÇÃO: ANDRÉA ALVES

COM:
ADRÉN ALVES, ALFREDO DEL PENHO, BRUCE ARAÚJO, DAVI GUILHERMME, EDUARDO LANDIM, EDUARDO RIOS, FÁBIO ENRIQUEZ, LARISSA LUZ, LÉO BAHIA, RAFAEL CAVALCANTI, RENATO LUCIANO, RICCA BARROS E THOMÁS AQUINO.
APRESENTANDO: MOYSEIS MARQUES

CENOGRAFIA: AURORA DOS CAMPOS
FIGURINOS: KIKA LOPES
ILUMINAÇÃO: CESAR DE RAMIRES
COREOGRAFIA: RODRIGO MARQUES
PROJETO DE SOM: FERNANDO FORTES
VISAGISMO: UIRANDÊ DE HOLANDA
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: CLAYTON MARQUES
PROGRAMAÇÃO VISUAL: GABRIELA ROCHA

MÚSICOS:
BETO LEMOS (rabeca, viola e guitarra), DANIEL SILVA (violoncelo e baixo elétrico), RICK DE LA TORRE (bateria e percussão), ROBERTO KAUFF (teclado e acordeon), FREDERICO CAVALIERE (clarineta) e DUDU OLIVEIRA (flauta, sax e bandolim)

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