quarta-feira, 30 de julho de 2014

Marlene Dietrich – As pernas do século (RJ)

Foto: divulgação
Sylvia Bandeira é Marlene Dietrich em espetáculo de Aimar Labaki


De volta, o excelente espetáculo sobre Marlene Dietrich

O ótimo “Marlene Dietrich – As pernas do século” volta em cartaz no Teatro Maison de France. O musical, com Sylvia Bandeira interpretando com excelência a diva alemã, tem como maior destaque a coragem do dramaturgo Aimar Labaki e do diretor William Pereira em contar essa história dessa forma. O ritmo lento, aliado à constituição de números repletos de beleza, “fisga” o espectador aos poucos, oferecendo-lhe ao final um espetáculo de altíssimo bom gosto.

Sylvia Bandeira interpreta o personagem desde 2010 quando a peça estreou. A beleza e o ótimo uso da voz no uso dos idiomas francês e alemão ficam ao lado de um trabalho de interpretação sutil, mas vigoroso que se vê ao longo de toda a encenação. O diálogo de Labaki é coberto de não-ditos, de escapes de sentido, de ironia, mas, por outro lado, na situação dramática inicial, temos uma senhora de noventa anos e um jovem amedrontado conversando. A peça começa com Marlene Dietrich (1901-1992) já velha e reclusa em seu apartamento em Paris quando um entregador entra fazendo o seu serviço. Os dois iniciam um diálogo e Marlene percebe que o jovem rapaz não sabe quem é ela, oportunidade ideal para uma revista do passado. 

Trata-se de um desafio. William Pereira tem o mérito de não transformar isso em um espetáculo além do que ele já é, esquivando-se de aparecer mais que o texto, privilegiando a peça como ela se torna ser. Aos poucos, a poltrona vai sendo abandonada e a Marlene dos anos 90 vai dando lugar para a dos anos 20, 50, 60 com mais frequência. Com segurança, a narrativa se dá aos poucos, delicadamente, mas se estabelece ao longo do tempo em uma estrutura firme, sólida e sedutora. Sai-se com o desejo de “quero mais!”.

José Mauro Brant completa o elenco com ótima participação, interpretando o jovem com perspectivas limitadas, e que poderá sair do apartamento da grande diva renovado. Sua qualidade vocal, em equilíbrio com a agilidade dos seus movimentos, dão a graça que ajuda a manter o clima favorável.

Os personagens pequenos se multiplicam, movimentando a história que revela para o jovem e para o público vários trechos da vida de Marlene Dietrich que podem ser desconhecidos para o público de hoje e no Brasil. Para nós, o ponto alto pode ser a apresentação no Copacabana Palace, quando ela contou em português. Para outros, pode ser a participação na guerra ou sua primeira visão por sobre a Berlin destruída. Sem dúvida, a interpretação de “Where have all the flowers gone” é um dos números mais bonitos do espetáculo, em que se interpretam mais de vinte canções célebres do século XX.

Outro destaque de “Marlene Dietrich – As pernas do século” é o figurino de Marcelo Marques. O guarda-roupa que veste os quatro atores (Marciah Luna Cabral e Silvio Ferrari completam o elenco) atende a requisitos históricos e narrativos precisos, mas também sustenta a peça em alta qualidade estética. Marlene conta a história do ponto de vista de seu apartamento-refúgio nos anos 90, mas o ar sombrio desse momento é amplamente colorido pelo entrar e sair de figurinos que ajudam a dar à peça o ar de espetáculo. Na direção musical, Roberto Bahal concorda com a dramaturgia e com a direção, modificando o ritmo aos poucos, mas mantendo positivamente aceso o interesse sobre como a história vai terminar.

“Marlene Dietrich – As pernas do século” é uma biografia como sucessivas outras têm preenchido a programação de teatro carioca. Nem todas elas, infelizmente, têm a qualidade dessa. Aplausos.

*

Ficha Técnica:
Texto: Aimar Labaki
Direção e Cenografia: William Pereira

Elenco:
Sylvia Bandeira
Marciah Luna Cabral
José Mauro Brant
Silvio Ferrari

Direção Musical e Arranjos: Roberto Bahal
Figurino: Marcelo Marques
Visagismo: Beto Carramanhos
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Preparação Vocal: Marciah Luna Cabral
Preparação Corporal: Marcia Rubin
Coreografia do Tango: Paulo Masoni

Músicos:
Piano - Roberto Bahal;
Clarinete - Mauriicio Silva
Violoncelo – Flavia Chagas

Produtores Associados: Minouskine Produções Artísticas

Vianninha conta o último combate do homem comum (RJ)

Foto: divulgação
No centro, de camisa branca, Isio Ghelman
em excelente trabalho de interpretação


Essencial espetáculo sobre a velhice

“Vianninha conta o último combate do homem comum”, espetáculo dirigido por Aderbal Freire-Filho, celebra os 40 anos de falecimento do dramaturgo brasileiro Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e marca o avanço do projeto de revitalização da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) que consiste na representação de obras dos “autores da casa”. Escrita com o nome de “Em família” por Vianninha, Paulo Pontes e por Ferreira Gullar no início dos anos 70, o texto se modificou e teve sua encenação oficial em março de 1972 com dramaturgia assinada apenas por Vianninha e com o título de “Nossa vida em família”. Paulo Autran e Carmen Lúcia interpretavam o casal de pais que reunia quatro dos cinco filhos para comunicar que a casa onde moraram por toda a vida precisaria ser desocupada em dois dias. Na montagem atual, os atores Cândido Damm e Vera Novello, em excelentes trabalhos, protagonizam esse agridoce espetáculo sobre a velhice. Há 42 anos, dois meses depois da estreia, o pai de Vianninha faleceu aos 80 anos. Lá se ia o dramaturgo paulista Oduvaldo Vianna (1892-1972), autor de incontáveis espetáculos célebres de uma parte da história do teatro brasileiro pouco ouvida. “Vianninha conta o último combate do homem comum” é uma metáfora para várias histórias.

Uma das primeiras questões sobre Vianninha, um dos autores da primeira versão do sitcom global “A grande família”, é o ritmo que ele impõe as suas narrativas. Esse autor não investe na narrativa clássica. Embora o agora chamado “Vianninha conta o último combate do homem comum” parta de uma situação problema, o desenvolvimento não conduz a um ápice que resolve necessariamente a questão primeira. Ao invés disso, o desenvolvimento e o fim da peça apontam para um retrato social, sugerindo uma reflexão sobre as relações e sobre as políticas públicas sociais a partir de personagens e de ações representativas. Assim, quem espera por uma história que se conte equilibrada e ascendentemente, encontrará um ritmo alargado, um tanto lento e bastante evasivo. E nem por isso ruim.

Fernando Mello da Costa constrói aqui um dos cenários mais poéticos do primeiro semestre teatral carioca. As muitas janelas emperradas e a quantidade vasta de objetos em desuso empilhados nos cantos do palco querem mais do que apenas preencher os vazios. De um lado, a pergunta: “O que fazemos com as coisas quando elas ficam velhas e não as queremos mais?” e de outro “Para onde vão nossos filhos quando por eles já fizemos tudo?” estruturam dois dos vários lados da narrativa. Os cinco filhos de Sousa (Damm) e de Lu (Novello), quatro em reunião, decidem que a mãe ficará hospedada na casa do filho mais velho, e o pai ficará com a filha que mora em São Paulo por dois meses. Ao longo da peça, esse período se multiplica e a solução não se divide. Pai e Mãe já idosos vão se tornando um fardo cada vez mais pesado. Nesse sentido, o teatro social de Vianninha tem o mérito de ser uma belíssima obra estética, mas que também se esforça em construir um debate que seja vital em termos de sociedade.

Aderbal Freire-Filho manteve a peça no início dos anos 70, com seus valores em cruzeiros e suas expressões de época. Além do cenário, “Vianninha conta o último combate do homem comum” apresenta um pontual trabalho de figurino em que as cores variam em tons de cinza, com sutis citações ao verde musgo ou ao bordô. Esse quadro pode remeter à televisão em preto e branco, outra opção estética que respinga na forma de fruição. A imagem em preto e branco dos filmes antigos é mais distante da realidade. Essa distância dá maior segurança para o espectador dialogar com a obra uma vez que “o papo” está acontecendo longe do mundo real. O resultado é que, de volta ao mundo em cores, o espectador está modificado, o que corrobora com o texto conforme tratado no parágrafo anterior. O desenho de luz dura, a trilha sonora que pontua o entre-cenas e a movimentação limpa são outros pontos que bem articulam a tese que a peça propõe.

De todos, não há dúvidas de que as interpretações são o ponto alto. Vera Novello, Paulo Giardini, Gillray Contino têm ótimas atuações, mas Isio Ghelman, Cândido Damm e Kadu Garcia se destacam excelentemente em um elenco todo de trabalhos muito bons. Um dos momentos mais marcantes da peça é um dos discursos finais do filho Jorge, interpretado por Ghelman, que hospeda a mãe. É tocante na amplitude das palavras bem ditas, da movimentação bem feita, dos sentidos bem articulados. Gillray, Damm e Garcia interpretam os personagens que não esmorecem apesar dos desafios, e mantêm o bom humor, o que conceitualmente supõe uma reflexão sobre a resistência humana. Flertando perigosamente com o limite entre o lugar fácil dos personagens estereotipados, esses intérpretes reservam para suas figuras lugares mais nobres.

Todos os atores ficam visíveis durante toda a encenação mesmo quando não aparecem, em um tipo de proposta que ficou célebre na farsa molineresca. Em exata oposição, na dramaturgia, uma das filhas nunca aparece. “Vianninha conta o último combate do homem comum” pode, também assim, falar sobre a presença e sobre a ausência, oferecendo diversas abordagens de reflexão. Todos esses aspectos são marcas de uma direção inteligente, comprometida e talentosa de Freire-Filho, em total parceria com os valores trazidos pelo autor e pelos demais membros dessa equipe tão especial. Muitos aplausos!

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Ficha técnica:
TEXTO: ODUVALDO VIANNA FILHO
DIREÇÃO: ADERBAL FREIRE-FILHO

ELENCO (em ordem alfabética):
ANA BARROSO
ANA VELLOSO
BELLA CAMERO
BETH LAMAS
CÂNDIDO DAMM
GILLRAY CONTINO
ISIO GHELMAN
KADU GARCIA
PAULO GIARDINI
VERA NOVELLO

CENÁRIO: FERNANDO MELLO DA COSTA
FIGURINO: NEY MADEIRA E DANI VIDAL
DIREÇÃO MUSICAL E TRILHA SONORA: TATO TABORDA
ILUMINAÇÃO: PAULO CESAR MEDEIROS
PROGRAMAÇÃO VISUAL: CACAU GONDOMAR
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: LÚDICO PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
REALIZAÇÃO: SESC RIO
ASSESSORIA DE IMPRENSA: JSPONTES COMUNICAÇÃO – JOÃO PONTES E STELLA STEPHANY

Morro da Ópera (RJ)

Foto: divulgação
Marcela Rodrigues assina o texto, o cenário e a direção
nesse espetáculo da Troupp Pas D'argent


Um espetáculo a la Fellini

Impossível não associar “Morro da ópera”, o novo espetáculo da companhia carioca Troupp Pas D’argent, às narrativas fellinianas dos anos 70. Com excelentes interpretações, o espetáculo que tem texto e direção de Marcela Rodrigues conta algumas histórias de um fictício morro fluminense, acompanhando a vida de alguns personagens em uma narrativa com forte tom de memória. Laços que se fazem e que e se desfazem, pessoas que chegam, pessoas que morrem, pessoas que desaparecem, a luta pela vida, a graça de quem luta na vida com coragem. Carolina Garcês, Lilian Meireles, Natalíe Rodrigues e Orlando Caldeira, além da própria diretora, compõem o elenco que terminou recentemente sua feliz primeira temporada no Mezanino do Sesc Copacabana desse bonito espetáculo que há de voltar em cartaz brevemente.

Fruto de um neo-realismo anterior e expoente de um novo simbolismo que preenche o mundo coberto de guerras e de ditaduras, os anos 70 chegaram para a obra de Federico Fellini como um retorno às narrativas, mas agora já altamente impregnado pela poética, pelo lirismo. A peça “Morro da ópera” tranquilamente pode ser vista a partir de aproximações com o cinema novo de Nelson Pereira dos Santos ou com a as peças de Oduvaldo Vianna Filho pelo seu alargamento diegético, pela desimportância que a história parece ter na narrativa cênica que parte do princípio da justaposição de vários personagens em uma situação. Por outro lado, as figuras são simbólicas. Cada ato é representativo de um bloco de outros acontecimentos vindos do real além da narrativa. A mulher que abre uma igreja evangélica ao invés de uma loja de sacolé é representante de uma camada de pessoas que pretende melhorar de vida a quase todo custo. O transexual que não é aceito por parte da comunidade, incluindo a sua mãe, simboliza a resistência de parcela da população em abdicar de seus valores mais tradicionais. E assim por diante: interessam menos os nomes dos personagens. São mais importantes as relações com o fora da história. A obra, assim, se situa como um espelho invertido, torto, que reflete talvez melhor a sociedade. Com um intenso fluxo narrativo bastante bem articulado, “Morro da Ópera” preenche o tempo e o espaço, sugerindo quadros belíssimos de teatro da melhor qualidade.

Carolina Garcês, Lilian Meireles, Marcela Rodrigues, Natalíe Rodrigues e Orlando Caldeira têm excelentes trabalhos de interpretação. Máscaras corpóreo-gestuais são usadas para a multiplicidade de personagens, mas nenhuma delas age com decréscimo à complexidade ou à poesia do espetáculo. Há momentos em que a encenação se utiliza da dança como meio de melhor expressar o que vivem aquelas figuras: é quando a poética parece ganhar maior corpo. Há outros em que a música ou o diálogo corrido faz a história girar mais rápido, trazendo à superfície momentos mais cômicos. Assim, o conjunto de atores viabiliza uma obra que, no seu todo mas também em cada parte, se coloca como síntese da riqueza do mundo real em todas as suas contradições, acontecimentos trágicos e espertezas.

O cenário, também de Marcela Rodrigues, e o figurino de Lilian Meireles e de Orlando Caldeira ajudam a expor essa composição meio simbolista, meio realista que resulta em um certo tipo de surrealismo, que melhor explica esse quadro sem eixo, mas com várias pontas por onde a fruição pode começar. Com uma paleta de cores que fica na oposição entre tons terra e branco, a rotunda e o figurino dão conta de unificar as figuras, contextualizar a situação e principalmente deixar o palco livre para as ações físicas ou para diálogos. A direção musical e trilha sonora de Isadora Medella e a iluminação de Luiz Paulo Nenen dão conta de embalar o ritmo da encenação em um mesmo referencial estético positivamente.

É um prazer conhecer o trabalho da Troupp Pas D’argent. Vale a pena assistir “Morro da Ópera” sem ressalvas.

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FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia e Direção: Marcela Rodrigues
Elenco: Carolina Garcês, Lilian Meireles, Marcela Rodrigues, Natalíe Rodrigues e Orlando Caldeira
Figurino: Lilian Meireles e Orlando Caldeira
Cenário: Marcela Rodrigues
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Trilha Sonora e Direção Musical: Isadora Medella
Confecção de Miniaturas: Lilian Meireles
Colaboração e Confecção de Figurino: Ateliê Fátima e Leo
Produção: Drayson Menezzes
Operador de Luz: Zoatha David
Operador de Som: Jorge Florêncio
Programação Visual: ImpriRio
Fotos: Sandro Arieta
Direção de Produção: Troupp Pas D’argent
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues (aquelaquedivulga.com.br)

domingo, 27 de julho de 2014

Cássia Eller - O musical (RJ)

Foto: divulgação


Tacy de Campos brilha como Cássia Eller

Uma versão ingênua de Cássia Eller

“Cássia Eller – O musical” tem o mérito e o defeito de ser unicamente uma homenagem à cantora carioca Cássia Eller (1962-2001). Assinado por Patrícia Andrade, o texto é ingênuo além de monótono, o que aumenta muito a responsabilidade de Tacy de Campos, que interpreta a protagonista, de seus parceiros de cena e dos músicos. Felizmente, pode-se dizer que Campos, assim como Laila Garin (Elis), Marília Pêra (Carmen Miranda), Solange Badin (Marlene), Tiago Abravanel (Tim Maia) e Clara Santhana (Clara Nunes), consegue apresentar um trabalho de mergulho que resulta em uma boa interpretação do personagem-título. Dirigido por João Fonseca e por Vinícius Arneiro, o espetáculo encerrou no domingo passado a temporada no Rio e se propõe a excursionar pelo país no segundo semestre de 2014.

Quando Cássia Eller morreu, há pouco mais de doze anos, os resultados dos exames não foram oficialmente divulgados. Sabia-se que ela tinha quebrado uma porta de vidro, que seus telefones convencionais haviam sido destruídos, que os músculos de seus braços se recuperavam de picadas antigas e recentes. Era de conhecimento público que ela estava em tratamento para se manter livre da cocaína e que o ano de 2001 tinha sido um ano de muito trabalho pesado, o que deixava a cantora exausta em vários sentidos. Nada disso aparece na dramaturgia de Patrícia Andrade para essa versão que se diz biográfica. Segundo o texto do musical “Cássia Eller”, a cantora experimentou maconha quando ainda era adolescente e não gostou. A partir daí, a peça, que ainda levará mais duas horas para terminar, não faz menção alguma ao uso de drogas, no máximo pincelando problemas com o alcoolismo. No fundo do palco, uma imagem minúscula de uma santa compõe o cenário, simbolizando a versão ingênua pela qual essa produção infelizmente optou.

Além disso, não há conflito que movimente a história para além de uma mera oportunidade de inclusão de mais de trinta músicas celebremente gravadas por Cássia Eller. Suas primeiras descobertas homossexuais aparecem apoiadas pela mãe. O apoio dos amigos aparece sempre como maior que suas dificuldades financeiras e que sua timidez. Os produtores sugerem boas ideias para discos ou ela convence facilmente os produtores de suas boas ideias. Ou seja, tudo parece ter sido muito fácil na vida da cantora de modo que esse musical se constrói através de um afastamento da realidade que é enormemente prejudicial ao ritmo da narrativa de Patrícia Andrade.

A direção de João Fonseca e de Vinícius Arneiro tem marcas invisíveis, sem proporcionar um único momento que seja visual e cenicamente interessante. Os cenógrafos Nello Marrese e Natália Lana situam a história dentro de uma caverna escura que é interessante nos primeiros cinco minutos, mas que depois desaparece completamente tamanha a sua neutralidade. Tirando um paupérrimo entra e sai de cadeiras brisas (Tok & Stok) também pretas e a evolução do repertório musical, nada muda. Os atores quase nunca saem totalmente de cena, assistindo às cenas sentados no palco. O figurino se modifica apenas com o acréscimo de algumas peças, mantendo-se firme em um realismo de época que a dramaturgia não expressa.  Confiando unicamente na admiração do público por sobre a personagem-tema, nada muda na narrativa de "Cássia Eller - O musical" ao longo de cento e cinquenta longos minutos. Nem o ponto de vista sobre a personagem, nem o quadro plástico da obra cênica dirigida por Fonseca e por Arneiro, assistidos por João Pedro Madureira.

Tirando a qualidade musical da banda, que uma análise especializada poderá elogiar ainda mais, o único mérito de “Cássia Eller – O musical” é o trabalho de parte do elenco. Evelyn Castro (Mãe/Ana) e Thainá Gallo (Moema/Lan Lan) trazem carisma e boas interpretações a esse elenco que tem grandes destaques em Emerson Espíndola (Marcelo Saback/Executivo/Nando Reis) e principalmente em Tacy de Campos (Cássia Eller). Com jovialidade e graça, esse grupo se esforça e consegue de alguma forma despertar atenção do público para outros pontos que não apenas as interpretações das canções, promovendo um equilíbrio dentro do lhes é possível. Campos constrói uma personagem extremamente doce pela qual é fácil de se apaixonar. Castro, Gallo e Espíndola agem no mesmo sentido felizmente.

Em tempos de Wikipedia e de Banda Larga, um musical que apresenta sem uma dose mínima de complexidade os principais momentos da vida de uma cantora como Cássia Eller, ainda que reproduza belamente seu repertório musical, perde a oportunidade de ser pelo menos interessante. Deixa a desejar.

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Ficha Técnica
PATROCÍNIO: Grupo Segurador Banco do Brasil, Mapfre e Eletrobrás
COPATROCÍNIO: FINEP
APOIO: ONS
REALIZAÇÃO: Ministério da Cultura e Governo Federal
TEXTO: Patrícia Andrade
DIREÇÃO: João Fonseca e Viniciús Arneiro
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Gustavo Nunes
DIREÇÃO MUSICAL: Lan Lan
CODIREÇÃO MUSICAL: Fernando Nunes

ELENCO (ordem alfabética):
Eline Porto (Claudia / Eugênia)
Emerson Espíndola (Ronaldo / Marcelo Saback / Elder / Executivo / Nando Reis)
Evelyn Castro (Nanci (mãe) / Ana)
Jana Figarella (Rúbia / Dora)
Mario Hermeto (Altair Eller / Oswaldo Montenegro / Violonista / Empresário / Guto / Fernando Nunes )
Tacy de Campos (Cássia Eller)
Thainá Gallo (Moema / Lan Lan)

BANDA:
PIANISTA: Felipe Caneca
BAIXISTA: Pedro Coelho
GUITARRISTA: Diogo Viola
BATERISTA: Mauricio Braga
VIOLONISTA: Fernando Caneca

DIREÇÃO DE MOVIMENTO: Márcia Rubin
FIGURINISTA: Marília Carneiro e Lydia Quintaes
CENÓGRAFO: Nello Marrese e Natália Lana
VISAGISMO: Beto Carramanhos
DESIGN DE LUZ: Maneco Quinderé
CENOTÉCNICO: André Salles e equipe
DESIGNER E ENGENHEIRO DE SOM: Carlos Esteves
PREPARADOR ELENCO (Tacy de Campos): Ana Paula Bouzas
PRODUTORA DE ELENCO: Cibele Santa Cruz
PESQUISADORA: Barbara Duvivier
FOTÓGRAFO: Marcos Hermes
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: João Pedro Madureira
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO DE MOVIMENTO: Luar Maria
REPRESENTANTE DO ESPÓLIO DA FAMÍLIA DA CÁSSIA ELLER: Rodrigo Garcia
GERENTE DE PRODUÇÃO: Joana Motta
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Renata Costa Pereira
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Tamara Ganem

EQUIPE MUSICAL:
PREPARAÇÃO VOCAL: Marco Dantonio
PIANISTA ENSAIADOR: Felipe Caneca
IDEALIZAÇÃO: Gustavo Nunes
PRODUÇÃO: Turbilhão de Ideias

sábado, 26 de julho de 2014

Nunca nade sozinho (BA)

Nadja Turenkko (ao centro) dirige Kadu Veiga e Ciro Sales
em texto do mesmo autor de "In On It"
Foto: divulgação

Uma bela contribuição ao texto de MacIvor

“Nunca nade sozinho”, do canadense Daniel MacIvor, concluiu há pouco mais uma temporada no Rio de Janeiro. Essa produção baiana, que veio com direção de Nadja Turenkko, tem Ciro Sales, Kadu Veiga e a própria diretora no elenco. Com forte matriz surrealista, esse é mais um texto do mesmo autor de “Cine-Monstro”, “À primeira vista” e de “In On It” sem o brilho dos dois últimos. Vale a pena refletir sobre o uso do vídeo nessa montagem que, de um jeito delicado, salva o projeto como um todo, que tem também excelentes trabalhos de interpretação.

O título “Nunca nade sozinho” é um conselho. Ao entrar no mar, é bom ter alguém olhando por você para o caso de se precisar de ajuda. O mote parte de um acontecimento no passado, em que, no último dia de mais um verão, dois rapazes, Bill e Frank, toparam apostar uma corrida até o mar sugerida por uma moça que veio a se afogar porque um dos dois não a segurou mais firmemente. A culpa que um se acostumou a jogar por sobre o outro terminou a amizade entre os dois que agora se encontram adultos. O diálogo escrito em 1991 se apresenta em treze rounds. Os dois personagens inimigos usam terno e gravata, têm empregos bem remunerados, uma maleta, mas, na metáfora de MacIvor, apenas um deles tem uma arma dentro dela. Ambos disputam o lugar de “Primeiro Homem”, sobrando para o outro a vergonhosa segunda posição. A disputa entre perdedor e vencedor faz parte da cultura recente em povos sob influência norte-americana e é criticada aqui nesse texto pelo autor candense. Ao longo do narrativa, os dois personagens acumulam vantagens que conduzirão para um tipo de desfecho que não é propriamente uma vitória. Como nos demais textos célebres desse dramaturgo, a curva não é ascendente, mas difusa, cheia de eixos a partir dos quais a narrativa pode ser reorganizada. Esse todo surrealista quer sugerir um posicionamento sobre a sociedade, sobre os valores, sobre os laços e principalmente sobre a amizade. Sem dúvida, uma metáfora muito bonita que só não é melhor, porque o esforço em construir um diálogo mais abstrato e menos factual é um tanto quanto cansativo. É aqui que entra o mérito da encenação de Nadja Turenkko.

No fundo do palco, em vários momentos da peça, vídeos produzidos nos ensaios são projetados. Neles, os atores, olhando para a câmera, fazem confissões sobre impressões que o trabalho ainda em processo lhes causa. O feito constrói um ponto de apoio que, em momento algum, se cruza com o diálogo de MacIvor, mas que é paralelo e principalmente próximo do público. Ciro Sales, Kadu Veiga e Turenkko falam sobre o que sentem na evolução da peça que se constrói no grupo, nas relações, no modo como o olhar por sobre si e por sobre o outro se modifica. O resultado dos vídeos cria uma lente que pode ser usada para enxergar a inimizade entre os personagens Bill e Frank, assim como a disputa entre eles pode ser referência para interpretar um determinado aspecto da relação entre o trio de atores. Usando uma via alternativa, muito inteligente e bastante interessante, “Nunca nade sozinho”, assim, talvez chegue melhor ao ponto previsto por MacIvor com os vídeos.

Ciro Sales e Kadu Veiga têm excelentes trabalhos de interpretação. Os atores apresentam uma potente desenvoltura corporal, viabilizando uma partitura gestual complexa que, sendo metáfora, se equilibra com os diálogos herméticos e frios. O texto é bem dito, com focos claros e, dentro do possível, com sentidos precisos. A estrutura em treze rounds de MacIvor é desafiadora, porque alongada, mas a multiplicidade de diagonais no cenário de Maurício Cardoso Junior e o figurino de Solon Diego, ratificando o estilo do texto, articulam a narrativa com mais firmeza positivamente. No surrealismo, parte-se do realismo para dar privilégio ao impossível. Essa ideia está presente de forma brilhante nos ternos que os personagens vestem.

No texto de MacIvor, as leis de causa e de consequência não servem para explicar o que aconteceu nesse dia de verão do passado, tampouco para tratar dos anos que se seguiram na vida de Bill e de Frank. Coberta de pontos isolados e nem sempre precisos, é o espectador que precisa dar sentido à obra e atribuir–lhe por sua conta algum tipo de lógica. Porque contribui sem deturpar, esse “Nunca nade sozinho” vence o desafio de encenar um texto tão duro.

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Ficha Técnica
Texto: Daniel MacIvor
Direção: Nadja Turenkko
Elenco: Ciro Sales, Kadu Veiga e Nadja Turenkko
Tradução: Ciro Sales e Kadu Veiga
Revisão da tradução: Celso Jr.
Assistência de Direção: Wanderley Meira
Preparação de Elenco: Saulo Moreira (MCD)
Cenografia: Maurício Cardoso Junior
Cenotecnia: Adriano Passos
Costura cênica: Agnaldo Queiroz
Trilha sonora: André Santana
Figurino e adereços: Solon Diego (Soddi)
Iluminação: João Sanches
Iluminotécnica: Luciano Reis (Total Stage)
Caracterização: Luiz Santana
Direção de Produção: Ciro Sales e Kadu Veiga
Produção Executiva: Fernanda Borges e Wanderley Meira
Direção de Imagens: André Guerreiro Lopes
Fotografia: Valéria Simões e Renan Ribeiro
Realização: Curta Produções e Otimistas Artes e Projetos

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Atrás da porta (RJ)

Maria Eduarda de Carvalho interpreta Júlia
Foto: divulgação

Ótima estreia em Copacabana

“Atrás da porta” estreia sem parecer estreia felizmente. Em cartaz no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, a peça foi escrita por Fernando e por Guilherme Scarpa, pai e filho, há oito anos e revela uma dramaturgia tão madura quanto inteligente. Dirigida por Emilio Orciollo Netto, o espetáculo tem Bruno Padilha, Maria Eduarda de Carvalho, Leandro Baumgratz e Luiza Scarpa no elenco. Na conversa de dois casais de amigos, está uma reflexão sobre o poder do equilíbrio. Vale a pena ver.

Ao chegar em casa do trabalho, Marcos (Bruno Padilha) se serve de whisky em seu pequeno bar particular e se prepara para relaxar. É quando sua esposa Julia (Maria Eduarda Carvalho) avisa que vai embora, que o casamento acabou. Chico (Leandro Baumgratz) e Regina (Luiza Scarpa) chegam a casa de Marcos para uma noite, como tantas, de bebedeira e de conversas aleatórias, mas também para consolá-lo diante da separação iminente. O álcool e o cigarro, na situação da peça, relaxam os reguladores sociais e fazem vir à superfície verdades mantidas em silêncio de uns por sobre os outros. Valas vão aparecendo entre os quatro personagens, mas, dentre elas, uma se torna fundamental. Como um iceberg, Julia (o exato oposto da Júlia de Strindberg) não se embriaga, não se apaixona, não se comove. E o melhor desta dramaturgia é que o público vai embora com a tarefa de descobrir em si o que fazer com esse ideal materializado de equilíbrio, sobriedade e de conveniência que os livros de auto-ajuda, a moral e que as terapias psicológicas tanto almejam construir em nossa sociedade.

Na estreia, destacam-se Maria Eduarda de Carvalho e Luiza Scarpa em interpretações repletas de ótimos usos dos tempos, das marcas, dos espaços como pontos que dão liga às relações da narrativa. Como um todo, o elenco deixa ver bom domínio dos personagens e principalmente das intenções de cada cena, estruturando um ápice a que se chega em bom ritmo crescente. Emilio Orciollo Netto apresenta um trabalho de direção que é sólido na construção de uma tese estética infelizmente um tanto rara hoje em dia. Nem o texto se esgota sem a encenação, nem o teatro subverte o texto.

Como todo bom espetáculo realista, cenário e figurino não se esforçam em aparecer, mas, sim, em fazer aparecer a história. Nesse sentido, são ótimas as contribuições de Fernando Scarpa e de Maria Luz Gómez  no cenário, e de Manoela Pessoa no figurino. Ambos ilustram a situação e seus personagens sem causar entraves ao ritmo da narrativa, mas facilitando que ele corra rápido positivamente.

“Atrás da porta” parece uma peça simples, mas sabe-se que não há facilidade em tratar de um tema complexo. Sem pretensões estéticas, ela se torna uma obra ainda mais importante. O projeto merece aplausos. A ver!

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Ficha técnica
Texto: Fernando Scarpa e Guilherme Scarpa
Direção: Emilio Orciollo Netto
Elenco: Maria Eduarda de Carvalho, Bruno Padilha, Leandro Baumgratz e Luiza Scarpa
Cenário: Fernando Scarpa e Maria Luz Gómez
Figurino: Manoela Pessoa
Iluminação: Luciano Xavier
Trilha sonora: Plínio Profeta
Produção: Guilherme Scarpa

A dama do mar (RJ)

João Vitti (Estrangeiro) e Tânia Pires (Ellida) em cena
Foto: divulgação

Outro “A dama do mar”

A versão assinada por Mauro Arruda Mendonça para “A dama do mar”, do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), mexe em time que sempre esteve ganhando. Originalmente a peça é a defesa do seu autor pelo direito do homem de escolher o seu próprio destino. A montagem dirigida por Paulo de Moraes pauta, nessa adaptação, justamente o oposto: o homem está à sorte do destino. Produzida pela Talu Produções, a peça está em cartaz no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, no Rio de Janeiro.

Escrita em 1888, “A dama do mar” conta a história de Ellida que precisa escolher entre partir com o Estrangeiro, revivendo emocionantes aventuras amorosas, ou permanecer com seu marido em uma pequena cidade litorânea da Noruega, em uma vida morna e sem grandes acontecimentos. Ibsen cria uma personagem que tem escolha apresentando outros pessoas cujas vidas são resultantes dos seus destinos. Há um médico que não salva vidas, jovens que não vão a festas, um artista que não faz arte em oposição à Ellida, que não quer ser como eles. Na diferença, está o conflito na dramaturgia desse texto realista.

Apesar do figurino vermelho e do cabelo ruivo, Ellida (Tânia Pires) não se destaca na peça, mas, sim, as enteadas Hilda (Andressa Lameu) e Bolette (Renata Guida). Nessa montagem, elas têm muito mais força, sendo as protagonistas de uma das cenas mais bonitas da produção: a que ambas olham para o público e listam acontecimentos importantes no mundo no ano de 1888. Presas em suas vidas, nada resta às duas jovens a não ser cumprir seus destinos. Em uma época da história da arte em que o realismo refletia posicionamentos diferentes sobre o mundo, Ibsen foi para um outro lado que não esse que agora se apresenta. Para o norueguês, era o homem e não o meio em que ele vive que comandava a própria vida. Baseados na premissa de que o texto teatral é apenas pretexto para a encenação, Mauro Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes assinam um outro “A dama do mar”, apesar do título e dos personagens homônimos.

O ritmo da montagem é lento, estruturando um tipo de narrativa com intenções simbólicas. Dois aquários marcam as diagonais do palco inclinado. Em um deles, peixes reais nadam. Em outro, um homem e uma mulher mergulhados pontuam o início. O cativeiro de peixes é um símbolo do determinismo, do realismo-naturalismo do francês Émile Zola, pensamento e estilo opostos ao de Ibsen, mas aparentemente coerentes com a proposta da dupla de encenadores. No mais, toda a encenação se apresenta sem cenários nem objetos.

O momento mais complicado da encenação é uma cena em que, ao invés dos personagens dizerem suas falas, comentam a situação e reproduzem o que seria a fala dos outros, usando a terceira pessoa. Sem alguma justificativa visível no contexto cênico-narrativo, o mérito dessa opção dramatúrgica fica apenas no exercício de uma linguagem descolada tanto da versão de Ibsen quanto da própria versão de Mendonça e de Moraes até aí. 

Não há maus trabalhos de interpretação nessa montagem, mas também não há destaques positivos. O figurino de Carol Lobato subverte, coerentemente com a direção, o gênero realista, talvez objetivando o simbolismo. Os paletós dos homens têm manchas nas bases inferiores, expressando algo pouco claro. Cada um dos três vestidos das personagens femininas segue uma concepção diferente. Nesse sentido, as roupas ajudam a retirar alguma força que ainda resta no texto. A iluminação de Maneco Quinderé tira óbvio proveito da água transparente nos aquários.

O maior mérito desse “A dama do mar” é manter, no espectador, a necessidade de ler o original, o que não é algo ruim.

*

Ficha técnica
Texto: Henrik Ibsen
Versão: Maurício Arruda Mendonça
Direção cênica e concepção: Paulo de Moraes

Elenco:
Tânia Pires –Ellida
Zeca Cenovicz – Wangel
Joelson Medeiros – Professor Arnon
Renata Guida - Bolette
Andressa Lameu – Hilda
Leonardo Hinckel –Lyngstrand
João Vitti (ator convidado) – Estrangeiro

Cenografia: Paulo de Moraes
Iluminação:Maneco Quinderé
Figurinos: Carol Lobato
Trilha Sonora:Ricco Viana
Produção: Vetor Produções
Realização: Talu Produções

Ópera do Malandro (RJ)

Léo Bahia (à esquerda) e Fábio Enriquez (à direita)
 são destaques positivos no elenco
Foto: divulgação

O Malandro volta à cena timidamente

A nova montagem de “Ópera do Malandro” é a participação de João Falcão no aniversário de 70 anos de Chico Buarque. O musical, que pré-estreou no congelante Theatro Municipal do Rio de Janeiro, apresenta ótimos trabalhos de interpretação de Adrén Alves (Vitória), Ricca Barros (Duran), Fábio Enriquez (Teresinha), Léo Bahia (Lúcia) e de Eduardo Landim (Geni), mas também vários problemas que tentam tirar o brilho da nova produção da Sarau Agência, a mesma do brilhante “Gonzagão – A Lenda”. A alternativa de usar homens interpretando papéis femininos, ainda que nem sempre se justifique na peça, oferece pontos interessantes de reflexão, alguns dos quais serão tratados aqui. No início de agosto próximo, a montagem estreará no Theatro Net Rio, em Copacabana, muito provavelmente em melhores performances. Oxalá!

Não é difícil entender a história. Duran e Vitória, donos de uma rede de casas de prostituição na Lapa, descobrem que sua filha Teresinha casou-se às escondidas com Max Overseas, contrabandista famoso nesse fictício Rio de Janeiro dos anos 30, e resolvem solucionar o caso com a encomenda da morte do criminoso para o chefe de polícia Tigrão. O que Duran não sabe é que Tigrão também deve alguns favores a Max, o que põe a narrativa em primeiro xeque. No desenrolar disso, as prostitutas de Duran e o bando de Max se unem nas ruas em protesto. Lá pelas tantas, Vitória tenta barrar as manifestações, mas não consegue e é atropelada pela massa. É quando a personagem Vitória e a personagem Atriz Que Interpreta Vitória se confundem. Pressionado pelo dinheiro, João Alegre, o autor da história de Duran, de Max e de Teresinha, deverá mudar os rumos da história que declaradamente se torna mais subversiva. Ou permanecer pobre, mas fiel aos seus ideais estéticos e sociais.

Reduzindo o elenco, sem reduzir o número e a variedade dos personagens, a produção atual coloca atores homens interpretando mulheres, criando uma estrutura irregular. Não são apenas os intérpretes dos homens do bando de Max que também dão vida para as funcionárias de Duran, mas Vitória, Teresinha e Lúcia são interpretadas por homens, enquanto Duran, Tigrão e Max não o são por mulheres (apenas João Alegre o é). Nenhum personagem, além de Geni, é homossexual e os atores também não deixam ver marcas de uma interpretação queer para as suas figuras, o que deixa de construir uma metáfora entre malandragem e transformismo. Por outro lado, o tempo que o espectador gasta pensando nos efeitos estéticos dessa opção sustenta uma fruição menos catártica, menos alienada, mais consciente e mais política que ajuda a construir o famoso distanciamento brechtiano. A escolha do elenco se tornou uma via de mão dupla.

Inspirada na “Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht (por sua vez, inspirada em “A Ópera do Mendigo”, de John Gay), um dos pontos mais relevantes da “Ópera do Malandro” é a celebração da malandragem como parte do DNA do brasileiro. De alguma forma, todos os personagens são malandros, pois tentam tirar proveito das situações sem perder o humor. Vale lembrar, no entanto, que o único personagem que se orgulha de ser malandro é Max, aqui em uma interpretação infelizmente mais tensa que carismática do sambista Moyseis Marques, em seu primeiro trabalho como ator. Adrén Alves (Vitória), Ricca Barros (Duran) e Fábio Enriquez (Teresinha) dominam bem a cena, apresentando trabalhos vigorosos, com intenções claras e agilidade na difícil tarefa de preencher o enorme palco do Theatro Municipal. Em trabalhos menores, Larissa Luz (João Alegre), Davi Guilherme (Big Bem) e Bruce Araújo (Johnny Walker) se destacam. Entre todos, são Léo Bahia (Lúcia) e Eduardo Landim (Geni) que roubam a atenção quando em cena, tornando situações menores em grandes momentos como se imagina terem feito Elba Ramalho e Emiliano Queirós nos anos setenta.

A montagem original apresentou canções que se tornaram parte consagrada do repertório popular nacional, como “Geni e o Zepelim”, “Pedaço de mim”, “Folhetim”, “O meu amor”, entre outras. Na produção de agora, cuja excelente direção musical é de Beto Lemos, todos os méritos do texto e das canções de Chico Buarque são positivamente mantidos. Os figurinos de Kika Lopes retratam os anos 30 com o brilho não exagerado que o grande musical, gênero do qual a peça debocha na cena final, requisita. A iluminação de César Ramires, junto das coreografias de Rodrigo Marques, se esforça para vencer o ritmo lento das cenas impresso no palco na pré-estreia, conseguindo resultado meritoso em mais uma peça cujo cenário (Aurora dos Campos) é pauperrimamente composto de andaimes.

Escrita e apresentada pela primeira vez no governo do presidente-ditador Ernesto Geisel, a “Ópera do Malandro” se estruturava sob nuances que infelizmente desapareceram nessa produção. Os anos 30 foram escolhidos, porque o Brasil também vivia uma ditadura (a de Vargas). A cena final, em que o número de ópera substitui o roteiro original do personagem dramaturgo João Alegre, criticava os espetáculos musicais enlatados cujos cenários vinham ao Brasil de navio. O Malandro fazendo samba batendo os dedos numa caixa de fósforo na abertura pautava a pobreza e a simplicidade do homem à margem da lei, cujos grandes crimes eram (e são!) bastante inferiores aos das autoridades estabelecidas. Essa versão de João Falcão, em que o Malandro é uma Passista de Escola de Samba de Grupo Especial, chega sem crítica além do texto, cenicamente estéril, ainda que com boas interpretações. É uma pena.


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FICHA TÉCNICA:

ADAPTAÇÃO E DIREÇÃO: JOÃO FALCÃO
DIREÇÃO MUSICAL: BETO LEMOS
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO E IDEALIZAÇÃO: ANDRÉA ALVES

COM:
ADRÉN ALVES, ALFREDO DEL PENHO, BRUCE ARAÚJO, DAVI GUILHERMME, EDUARDO LANDIM, EDUARDO RIOS, FÁBIO ENRIQUEZ, LARISSA LUZ, LÉO BAHIA, RAFAEL CAVALCANTI, RENATO LUCIANO, RICCA BARROS E THOMÁS AQUINO.
APRESENTANDO: MOYSEIS MARQUES

CENOGRAFIA: AURORA DOS CAMPOS
FIGURINOS: KIKA LOPES
ILUMINAÇÃO: CESAR DE RAMIRES
COREOGRAFIA: RODRIGO MARQUES
PROJETO DE SOM: FERNANDO FORTES
VISAGISMO: UIRANDÊ DE HOLANDA
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: CLAYTON MARQUES
PROGRAMAÇÃO VISUAL: GABRIELA ROCHA

MÚSICOS:
BETO LEMOS (rabeca, viola e guitarra), DANIEL SILVA (violoncelo e baixo elétrico), RICK DE LA TORRE (bateria e percussão), ROBERTO KAUFF (teclado e acordeon), FREDERICO CAVALIERE (clarineta) e DUDU OLIVEIRA (flauta, sax e bandolim)

terça-feira, 15 de julho de 2014

A prostituta respeitosa


Foto: divulgação

Sartre com cara de Tennessee

“A prostituta respeitosa” é uma pérola do dramaturgo francês Jean Paul Sartre (1905-1980) escrita em 1946 e que recebe montagem dirigida por Marco Aurélio Hamellin, que estreia na direção. Em cartaz no Solar de Botafogo, a peça tem alguns pontos positivos, mas expõe uma falta de reflexão mais aprofundada do grupo por sobre o espetáculo proposto à programação do teatro carioca. Uma pena!

Disposta a ficar longe de problemas, a prostituta branca Lizzy Mac-Kay parte de Nova Iorque para uma pequena cidade no sul dos Estados Unidos. Ao amanhecer, enquanto seu Primeiro Cliente já está no banheiro, um Homem Negro aparece em sua casa. A partir daí, ficamos sabendo que, no caminho, ela testemunhou um crime do qual esse Homem agora é acusado injustamente. O verdadeiro culpado é Thomas, o primo do Primeiro Cliente, cuja família há de se esforçar para defender, incluindo subornar a única testemunha, a prostituta respeitosa. Menos sobre segregação racial e muito mais sobre a arte da política, a cena central da peça é quando o senador Clark, parente do criminoso, convence com palavras bem usadas Lizzy a assinar um depoimento forjado contra o Negro. Até então, o dinheiro e a força não tinham sido capazes de fazer a prostituta mentir. Com isso, naquele início de pós-guerra, Sartre mandava um aviso ao mundo: o verdadeiro poder não estava nas trincheiras e nas bombas, mas na política.

Na direção de Hamellin, há algumas incoerências graves. Se Lizzy foi embora de Nova Iorque para fugir de problemas e, pelos mesmos motivos, quererá fugir da cidade onde hora se encontra, é porque ela se arrepende das coisas que fez. Portanto, a peça não pode terminar ao som de “No, no regrets”, de Piaf. Para que a frase “Meu nome é Fred” tenha certo impacto no final, é preciso que o diálogo “Fred, é você?”, “Sim, sou eu!” do início não seja ouvido por Lizzy. O Primeiro Cliente só pode dizer que prefere a luz do quarto se houver mudança na luz do ambiente quando Lizzy abre as cortinas da janela. E, assim, vários outros pequenos problemas aparecem, revelando “buracos” nos acordos de verdade que a peça precisa fazer com a plateia para ser uma boa atualização do neorrealismo. (“A prostituta respeitosa” é um Sartre diferente de “As moscas” e de “Entre quatro paredes”.)

No que concerne às interpretações, todos os trabalhos apresentam problemas no uso do tempo. As expressões não surgem como materialização de uma reação, mas parecem partir de um roteiro pré-estabelecido e geralmente sem lógica. Thiago Detofol, em um trabalho exageradamente emocional, apresenta o personagem Fred com marcas de uma culpa sem motivos claros durante toda primeira cena e com poucas variações na sequência. A interpretação de Frederico Baptista exibe uma falta de consciência corporal, intenso demais e sem profundidade. Sérgio Fonta e Anita Terrana, que já interpretaram o Senador Clark e a protagonista Lizzy em montagem recente, fazem bom uso das palavras e trazem expressões mais vivas. Terrana tem movimentação cênica ruim, equilibrando-se no sapato de salto alto, aparentemente pouco à vontade no espaço.

O cenário e o figurino de Marcelo Marques são bastante bons, principalmente porque fazem uma boa crítica ao lugar e ao personagens. Embora a peça se passe nos anos 40, a história acontece no interior dos Estados Unidos. Os móveis pesados, antigos, gastos expressam o nível inferior desse quarto alugado pela prostituta recém chegada. Os figurinos agem no mesmo sentido, deixando claro também um certo conservadorismo da família Clark. Nesse sentido, as evidências do realismo não são um esforço para construir um documento verídico, mas a disposição de parte da peça em possibilitar uma estrutura verossímil.

“A prostituta respeitosa”, esse texto Sartre com gosto de Tennessee Williams, vale a pena ser conhecido.

*

FICHA TÉCNICA
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradutor: Miroel da Silveira
Diretor: Marco Aurélio Hamellin
Assistentes de direção: Frederico Baptista e Jairo Vicente
Elenco:Anita Terrana, Sergio Fonta, Thiago Detofol, Cláudio Bastos e Frederico Baptista.
Preparação corporal: Cecília Terrana
Trilha sonora: Marco Aurélio Hamellin
Fotografia: Paulo de Tarso
Cenário e Figurinos: Marcelo Marques
Assistente de figurino e costureira: Sônia Lourenço Coutinho
Assistente de cenografia: Jennyfer Baptista
Iluminação: Leysa Vidal
Programação visual: Marcelo Marques
Arte final: Augusto Batista (Art Press Design)
Produção Executiva: Beth Bessa
Assistentes de produção: Augusto César de Oliveira e Cecília Terrana
Divulgação/assessoria de imprensa: Ana Gaio
Coordenação do Projeto: Anita Terrana
Realização: Sereníssima Produções Artísticas

terça-feira, 8 de julho de 2014

Dois amores e um bicho (RJ)

Foto: divulgação

A excelente dramaturgia do venezuelano Gustavo Ott

Entre outros significados, “Dois amores e um bicho” é sobre a mudança de valor das coisas. O que é válido hoje, amanhã já não é mais. O que pouco importava ontem, hoje suscita muitas controvérsias. Escrita em 2001 pelo venezuelano Gustavo Ott (1963), a peça “Dos amores y un bicho” narra a desintegração de um casamento de mais de trinta anos aparentemente sólido. A montagem dirigida por Guilherme Delgado, a partir de tradução de Carlito Azevedo, conta com as boas interpretações de Vitor Fraga e de Ana Paula Novellino e tem como principal mérito o de nos lembrar que não é só na Inglaterra e nos Estados Unidos que a boa dramaturgia conteporânea está acontecendo. A peça está em cartaz no Galpão das Artes, no Jardim Botânico. Toda a obra de Gustavo Ott pode ser encontrada no site www.gustavoott.com.ar.

Numa terça-feira qualquer, Pablo (Vitor Fraga) vai com sua esposa Karen (Ana Paula Novelino) visitar o zoológico onde trabalha a filha do casal, a médica veterinária Carol (Yndara Barbosa). Lá eles se surpreendem por encontrar um orangotango  em uma jaula separada dos seus iguais. Ao perguntar o motivo, o pai descobre que o macaco não se comportou bem, molestou seus companheiros e, por isso, está de castigo. É quando a filha pergunta ao pai porque ele esteve preso durante quarenta dias há quinze anos. A prisão do pai, acontecida quando a filha ainda era pequena, até então nunca tinha virado uma conversa familiar. Ao vir à tona agora, depois de tanto tempo, essa conversa trará consequências irreparáveis para família de Pablo. Há quinze anos, uma bomba explodiu em uma escola, matando crianças, professores, pais e mães. Na casa de Pablo, a televisão noticiava o crime quando o cachorro Cabral foi surpreendido molestando o cachorro Bandido, ambos animais do mesmo sexo. Em um golpe de fúria, Pablo matou Cabral a pontapés e, por isso, foi preso. Quando a peça começa, a filha (e veterinária) sente que é como se seu pai tivesse morrido com aquela história, pois tudo o que ela pensava dele havia se transformado em algo ruim. Por outro lado, ao lembrar destes momentos, a mãe descobre que já não ama o marido e decide separar-se. Na dramartugia de Ott, os quinze anos em que o assunto ficou encubado são essenciais. Com diálogos afiados, o autor mostra que o valor que as coisas têm se modifica nem sempre pra pior.

O texto de Gustavo Ott e a direção de Guilherme Delgado propõem diversos níveis bastante ricos de fruição, justapondo e opondo conceitos pertinentes ao drama. O assassinato de um cão imediatamente substituiu na TV a pauta da explosão da bomba que matou tantos seres humanos. A homossexualidade ativa do cão Cabral contra o cão Bandido (o segundo mais fraco que o primeiro) ganha destaque em lugar da defesa do cachorro molestado, menor que o outro e mais indefeso. O pai que matou o cachorro porque, na sua opinião, comportava-se mal é julgado a revelia do como a veterinária trata o orangotango que, na opinião dela, também se comporta mal. Animais como cães, macacos, rinocerontes, pandas e aves comovem, enquanto formigas e baratas dão nojo (e também são mortas diariamente). O respeito à orientação sexual hoje não recebe a mesma importância do que outrora, sendo relativamente maior felizmente. E, assim, um por um, os personagens de “Dois amores e um bicho” se contrapõem enquanto constroem uma arena de embates sobre valores, sobre ética, sobre sociedade. O desenrolar dos fatos, em que a simples prisão de um chipanzé é um epicentro para tudo o mais que é revelado, deixa ver camadas sobre camadas de motivos filosóficos que só a boa arte pode sugerir para os seus fruidores.

Guilherme Delgado não utiliza círculos, mas organiza a estética de “Dois amores e um bicho” em linhas retas, no que é inteligentemente auxiliado pelo desenho de iluminação de Daniel Archangelo. Pode ser que o assassinato do cachorro, assim como a prisão do chipanzé, tenha sido um ato voluntário dos seus responsáveis por colocar as coisas no lugar (?), segundo uma lógica que é inerente ao mundo natural, mas própria do homem. Nesse caso, na movimentação cênica da peça, tudo tem o seu lugar e quase não há gestos fora de controle harmoniosamente. Esse conceito aparentemente frio, no entanto, não impede que a emoção venha aos personagens, ela também parte de uma tese defendida pela montagem. Yndara Barbosa (a filha) e Luiz Paulo Barreto (os personagens secundários) oferecem trabalhos de interpretação mais superficiais, sem marcas de crítica que dariam mais vida para as figuras que apresentam. Por outro lado, Ana Paula Novellino e Vitor Fraga obtém melhores resultados nos diálogos e nas pausas, evidenciando personagens mais cheios de contradições.

Como é infelizmente normal, “Dois amores e um bicho” estreia com problemas de ritmo próprio das montagens em início de temporada. Com o tempo, há de melhorar. Desde já, no entanto, tem-se a beleza de um excelente texto defendido com meritosa coragem. A ser visto.

*

Ficha técnica:
Autor: Gustavo Ott
Direção: Guilherme Delgado
Elenco: Vitor Fraga, Ana Paula Novelino, Yndara Barbosa e Luiz Paulo Barreto
Cenografia: Carlos Augusto Campos
Contrarregragem: João Batista
Iluminação: Daniel Archangelo
Assistente de Iluminação - Daniele de Deus
Direção de Produção - Guilherme Delgado
Produção Executiva: Daniel Archangelo
Assessoria de imprensa: Silpert e Chevalier Comunicação
Realização: Tentáculos Espetáculos

Temporada de verão (RJ)

Letícia Cannavale, Adassa Martins e Camila Gama em cena
Foto: divulgação

Uma pauta teatral elevada

A ótima peça “Temporada de verão” encerrou sua temporada no Teatro de Arena do Espaço Sesc em Copacabana, fazendo o público pensar. Dirigido por Renato Livera, a partir de texto de Maria Paula Leão (com colaboração de Sandro Pampanet), o espetáculo é um instigante motivo para reflexão sobre a sensibilidade humana independente do gênero. Com excelente interpretação de três grandes jovens atrizes, a peça conta a história da lutadora Fabrícia (Adassa Martins) que chega em um país distante especialmente para participar de uma entrevista sobre seu trabalho com a apresentadora Natasha (Letícia Cannavale). Na verdade, a entrevista será uma constrangedora exposição da vida pessoal da entrevistada, tendo a intérprete Penélope (Camila Gama) como mediadora. Eis aí uma bela produção do mesmo grupo responsável pelo premiado espetáculo “Savana Glacial”.

A plateia é dividida em dois setores, homens e mulheres, deixando claro desde o início que a boa parte da história será, afinal, sobre o quanto as mulheres ainda sofrem sob o jugo do homem. A entrevista de Natasha (Cannavale) com Fabrícia (Martins) acontecerá partindo de dois contextos: Fabrícia sofre no mundo olímpico, porque ela é uma mulher que nasceu em corpo de homem. Sendo uma transexual, ela depende de certificados médicos que comprovem para o comitê esportivo que ela pode lutar com outras lutadoras sem vantagens naturais. No entanto, o tempo passa e esses papéis não chegam e, enquanto isso, o assunto divide as opiniões dos torcedores e dos esportistas. Por outro lado, Natasha lidera uma equipe de profissionais que, entre outros, está organizando esse programa de entrevistas em que estamos. Reinando entre homens, sua fragilidade feminina precisa ser normalmente escondida, substituída por um tipo de defesa muitas vezes grosseira, mas quase sempre eficaz até então. Chega, porém, uma gravidez que, enquanto cresce, vai expondo a sua fragilidade que é ridicularizada pelo aumento dos cuidados que as pessoas têm sobre ela. O que Fabrícia pode ensinar para Natasha é simples: é preciso ouvir as opiniões dos outros sobre si, mas nem todos esses pontos de vista precisarão ser levados em conta. Como duas figuras aparentemente opostas, é bonito ver como, aos poucos, elas vão se aproximando. Penélope (Camila Gama) é a chave que une Fabrícia e Natasha, mas também que as desune nessa preciosa e afiada dramaturgia de Maria Paula Leitão.

Fabrícia (Adassa Martins) e Natasha (Letícia Cannavale) não falam o mesmo idioma. No texto, o encontro se dá no país da segunda, um lugar distante do Brasil. A língua desse outro país é um interessantíssimo jogo de trocas de sílabas das palavras em português, gerando sons diferentes, estranhos, mas bonitos. Cannavale e Camila Gama (Penélope) têm destacável trabalho de viabilização desse novo idioma, criando entonações realistas que são expressas com fluência admirável. As cenas exibem, de um lado, o estranhamento entre a entrevistadora e a entrevistada. De outro, a proximidade entre a entrevistadora e sua assistente e finalmente a proximidade entre a assistente e a entrevistada. A tese é nobre: os diferentes idiomas e culturas não são suficientes para impedir que os seres humanos se identifiquem em suas forças e em suas sensibilidades.

A direção de Renato Livera expõe um diálogo profícuo entre as personagens, apesar dos elementos simbólicos atrasarem o ritmo. O texto inicial, a tentativa de metáfora do aquário com a sociedade (o peixe Beta, o domínio do território) e do esqueleto com o que está para além da discussão de gênero, bem como as relações com o filme “2001 – uma odisseia no espaço” (Stanley Kubrick, 1968) são esforços em provar que os realizadores são inteligentes e têm referencias, mas que pouco contribuem com a dramaturgia em si. Adassa Martins, Letícia Cannavale e Camila Gama são intérpretes cujos níveis expressivos dos seus trabalhos são altíssimos e é nelas que se dá entre elas que está o bom de teatro de Livera em “Temporada de verão”.

Ao final, há que se fazer positivo destaque para o figurino de Bruno Perlatto aqui em mais um ótimo trabalho. Natasha e Penélope usam calças e sapatos altíssimos, expressando feminilidade e força. Fabrícia tem, no vestuário, referências orientais que dizem respeito ao seu esporte e à questão da defesa pessoal a que ela se dedica enquanto pesquisadora. No todo, o figurino dá a sua contribuição à narrativa em que há mulheres nascidas homens e tornadas femininas por intervenções médicas e nascidas mulheres, mas tornadas brutas pela sociedade preconceituosa e dura.

O título vem de uma pergunta que Natasha faz à Fabrícia. Como uma transexual esconde o pênis no verão, quando vai à praia? Para longe de uma curiosidade apenas mórbida, a questão tem em si altíssima dose de complexidade que eleva o assunto da pauta teatral carioca. Que venham novas temporadas!

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FICHA TÉCNICA
Texto: MARIA PAULA LEÃO, com colaboração de SANDRO PAMPONET
Orientação de dramaturgia e supervisão: JÔ BILAC
Direção: RENATO LIVERA

Elenco:
ADASSA MARTINS / Fabrícia
CAMILA GAMA / Penélope
LETÍCIA CANNAVALE / Natasha

Iluminação: RENATO MACHADO
Cenografia: ANDRÉ SANCHES
Figurino: BRUNO PERLATTO
Trilha incidental e mixagem: RENATO LIVERA
Consultoria: BRUNO NETTO DOS REYS
Direção de Produção: CAMILA GAMA
Produção Executiva: RAFAEL MOSÉ
Realização: SESC RIO, META PRODUÇÕES e CIA. FÍSICO DE TEATRO
Assessoria de Imprensa: JSPONTES COMUNICAÇÃO - JOÃO PONTES E STELLA STEPHANY

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir (RJ)

Saulo Rodrigues e Ângela Câmara em belo espetáculo dOs Dezequilibrados
Foto: divulgação

Luminosamente belo!

“Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir” é o novo excelente espetáculo do grupo Os Dezequilibrados, companhia que completa, em 2014, dezoito anos. Em cartaz em um casarão do início do século na Ladeira da Glória, ao lado do Outeiro, no Rio de Janeiro, o texto partiu de uma esquete escrita pelo norte-americano Tennessee Williams (1911-1983). Dirigido por Ivan Sugahara, a peça fala de um jeito muito poético e bastante sensível sobre um casal que não consegue mais se comunicar um com o outro, sobre a solidão que permanece através da união e não necessariamente afasta o amor que existe entre os dois. No elenco, Ângela Câmara e Saulo Rodrigues constroem imagens belíssimas nas cenas que se distribuem pela casa sob o sol do entardecer. As sessões são aos sábados e aos domingos, às 14h e às 16 horas.


Ivan Sugahara usa com inteligência os quadros do pintor neorrealista norte-americano Edward Hopper (1882-1967) para fazer vir à luz os personagens do Marido e da Esposa de “Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir”. Assim como Tennessee Williams, Hopper celebra o período da depressão americana em sua maior potência estética. Os mágicos e gloriosos anos de 1920 deram lugar à extrema pobreza e austeridade depois da queda da bolsa de Nova Iorque em 1929. Nos anos 30 e 40, as pessoas da nação transcontinental que é os Estados Unidos se olhavam nos olhos de igual para igual, sem dinheiro, sem trabalho, com fome. Falando quase nada de política, mas tematizando esse lugar de encontro sensível e honesto, Williams e Hopper souberam dar cor a uma situação que ultrapassa o tempo e a geografia. Esse Marido e essa Esposa sabem que ambos estão sufocados em problemas, em angústias, em desolação. Os olhares de um que fogem do outro fogem antes de si próprios, mas se encontram em algum lugar desse casamento.

Quando a peça começa, o Marido acorda de uma noite de bebedeira e conta para Esposa o sonho que teve, em que ele se via à deriva, em mar aberto. Depois, ele pede que ela conte de si para ele. A Esposa então narra com o quê tem sonhado: ela sozinha, em um hotel distante, sem contato com ninguém, envelhecendo vestida de branco e lendo romances. Assim como os personagens, o público sabe que essas imagens que um abre para o outro, do mar e do hotel, querem dizer algo mais que apenas um sonho. O amor que existe entre eles convive com a solidão que ambos sentem, contrariando as versões mais tradicionais de ambos os sentimentos. Ao longo da peça, o público passeia por sensações diferentes desse contexto, nutrindo-se de um certo tipo de sugestão da montagem a esse quadro. O resultado é luminosamente belo.

Os diálogos de Williams e de outros autores ditos por Saulo Rodrigues e por Ângela Câmara rasgam o silêncio e se colocam ao lado de suas expressões faciais, de seus movimentos, do cenário (André Sanches), da paisagem natural, da trilha sonora (Sugahara, Lívia Paiva e Samuel Toledo), do figurino (Tarsila Takahashi) e da forma como cada um desses elementos bem expressam alguma intenção narrativa ou figurativa de construir cada quadro. O todo é equilibrado, mantendo o ponto de fuga para a próxima sequência, cheio de delicadeza, elegância, carinho. As pessoas se emocionam, tocadas pela beleza do que veem, com motivos cênicos para isso.

A internet fornece à contemporaneidade muitas coisas, mas esse banquete informativo muitas vezes desvia a atenção do homem por sobre ele mesmo. A solidão hoje não tem o mesmo sabor que tinha antes do fim do século passado, mas a sua semente ainda está em nós. “Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir” é um tipo de grito de socorro que alguém perdido em alto mar ou em um hotel distante envia para alguém quando vislumbra uma possível saída. Mais de nós se encontram nessa situação do que realmente pensamos. Esse espetáculo é essencial. 


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FICHA TÉCNICA
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Gisele Freire
Direção: Ivan Sugahara
Elenco: Ângela Câmara e Saulo Rodrigues
Cenário: André Sanchez
Iluminação: Renato Machado
Figurino: Tarsila Takahashi
Trilha Sonora: Ivan Sugahara e Lívia Paiva
Direção de Movimento: Duda Maia
Preparação Vocal: Ricardo Góes
Assistência de Direção: Lívia Paiva e Samuel Toledo
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Programação Visual: Thiago Ristow
Fotografia: Dalton Valério
Marketing Digital: Laura Limp
Coordenação de Produção: Tárik Puggina
Direção de Produção: Carla Torrez Azevedo
Produção Executiva: Aline Mohamad
Assistência de Produção: Carolina Kern
Administração Financeira: Amanda Cezarina
Realização: Nevaxca Produções e Athus Produções
Idealização: Os dezequilibrados