sábado, 21 de março de 2015

Boa noite, Mãe (RJ)

Beth Zalcman e Thaís Loureiro
Foto: divulgação

Precisa ser visto

O espetáculo “Boa noite, Mãe” felizmente cumpre segunda temporada no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, na Cinelândia, Rio de Janeiro. O texto, escrito pela americana Marsha Norman em 1983, ganhou o Prêmio Pulitzer daquele ano, além da montagem original ter recebido quatro indicações ao Tony em sua estreia na Broadway (melhor direção, melhores interpretações e melhor peça). Anne Pitoniak e Kathy Bates interpretavam a Mãe (Thelma Cathes) e e a Filha (Jessie Cathes) que dão início à noite mais importante de suas vidas. No Brasil, o texto teve uma primeira célebre versão dirigida por Ademar Guerra, com Nicette Bruno (Mãe) e Aracy Balabanian (Filha) no elenco em 1984. Agora Beth Zalcman e de Thaís Loureiro são quem devem receber os aplausos por suas excelentes interpretações nesse espetáculo dirigido com vários méritos por Hugo Moss. Pela forma como a encenação viabiliza conceitos da potente dramaturgia de Norman, a produção deve ser vista por quem gosta de bom teatro.

Na abertura da peça, Jessie procura a velha arma de seu falecido pai no sótão de casa enquanto sua Mãe se prepara para ter suas unhas feitas em uma noite monótona qualquer. Em seguida, vem a terrível revelação. Jessie avisa para a Mãe que, depois de preparar tudo, e desejar boa noite, irá dar um tiro em si mesma, acabando com a própria vida. Ao longo do texto, o descrédito inicial da Mãe vai recebendo novos contornos de forma que a promessa da Filha vai se tornando cada vez mais cumprível. Dentre as várias maravilhas dessa dramaturgia de Marsha Norman, está o esforço da Mãe em modificar o desfecho. É como se, em algumas horas de narração, toda a vida de ambas passasse a não apenas ser revista, mas precisasse ser modificada a fim do breve futuro ser diferente do planejado. Ao personagem da Filha, recai a beleza de se constituir como estrutura inabalável capaz de fazer sólida oposição aos movimentos em contrário da Mãe. Nesse contexto, força e sensibilidade, dúvida e certeza, passado e futuro se alternam em um desenvolvimento dramatúrgico envolvente, aterrador e coberto de complexidade.

O desafio de Beth Zalcman (Mãe) e de Thaís Loureiro (Filha) é enorme e, porque plenamente vencido, não menores são seus méritos. Não há no texto uma só pitada de melodrama, mas o espectador só poderá reconhecer isso no final. Os diálogos são cheios de ironias e de não-ditos e dão a ver um imenso roll de antecedentes dramáticos como é bastante raro de se encontrar em textos latinos. Dessa forma, Zalcman e Loureiro, para defender bem suas personagens, precisam antes vencer o público mais acostumado com outro tipo de narrativa. E conseguem! Quanto mais a peça avança, mais se percebe que as inúmeras piscadelas e soluços de Jessie não são meras marcas de uma interpretação tipificada, mas verdadeiramente detalhes da realidade em que essa jovem mulher vive. Do mesmo modo, o andar cansado, os cabelos enrolados, a coluna curvada e o tom de voz irritado da Mãe. No melhor momento da direção de Hugo Moss, assistido por Cleiton Echeveste, está a percepção de que essa Mãe e essa Filha só se tocam quando todas as formas de reaproximação já tiverem sido tentadas. Eis aqui um trabalho belíssimo!

“Boa noite, Mãe”, além dos valores já destacados, oferece um uma essencial reflexão sobre o aparato cenográfico na construção de uma peça neorrealista como essa. Ao longo de sessenta minutos de encenação, o espetáculo se passa na sala e na cozinha da casa onde moram Thelma e Jessie. Para a narrativa fluir, o espectador não pode ter dúvidas. Em outras palavras, a torneira precisa funcionar, as gavetas devem abrir, o cigarro precisa acender. No cenário de Luna Santos e do diretor Hugo Moss, todos os armários foram construídos com caixas de papelão, mas o que conceitualmente tinha tudo para ser um fracasso semântico acabou por cumprir vigorosamente sua função. O segredo da dupla talvez esteve em repetir o tom do papelão em quase todos os outros elementos do cenário. No palco, todos os objetos variam na mesma paleta de cor: do marron ao amarelo, passando pelo verde e pelo laranja. A extrema unidade na direção de arte resultou, assim, no apagamento das caixas de papelão que potencialmente dão a ver os armários como deveria ser. O figurino criado pelas atrizes e o desenho de luz de Aurélio de Simoni ratificam o realismo e fazem bem, como o cenário, à narrativa.

“Boa noite, Mãe”, produzido pelo Grupo Assik, que vem desenvolvendo no Brasil as ideias do mestre russo Michael Chekhov, é uma ótima surpresa na programação de teatro carioca. Precisa ser visto.

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Ficha técnica:
Texto: Marsha Norman
Tradução: Hugo Moss e Thaís Loureiro
Direção: Hugo Moss
Elenco: Beth Zalcman e Thaís Loureiro
Assistente de direção: Cleiton Echeveste
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenografia: Hugo Moss e Luna Santos
Figurinos: Beth Zalcman e Thaís Loureiro
Fotografia: Hugo Moss
Identidade visual: Thaís Loureiro
Produção: Roseane Milani
Realização: Michael Chekhov Brasil e Gam Produções

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